As Supostas Omissões Legislativas e o Problema da Legitimidade Democrática

Por Alberto de Mello - 20/12/2022 as 10:09

Um argumento recorrentemente utilizado para justificar o comportamento ativista das cortes de justiça é o que de que o Legislativo se omite diante dos problemas sociais. Nesse sentido, escreveu Luís Roberto Barroso (2012, p. 27) que: 

Nos últimos anos, uma persistente crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Legislativo tem alimentado a expansão do Judiciário nessa direção, em nome da Constituição, com a prolação de decisões que suprem omissões e, por vezes, inovam na ordem jurídica, com caráter normativo geral.

Quando, porém, é possível concluir que o Congresso Nacional está omisso?

O caso do Mandado de Injunção 712/PA ilustra situação de efetiva inércia legislativa, onde o STF atuou legitimamente, através da via judicial própria, para garantir o exercício de direito expressamente estabelecido na Constituição. 

No rol das garantias fundamentais introduzidas pelo constituinte originário, situa-se o remédio do mandado de injunção, cabível “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” (CR, art. 5º, LXXI). Como assinalam corretamente Mendes e Branco (2015, p. 1224, grifou-se): “o mandado de injunção há de ter por objeto o não cumprimento de dever constitucional de legislar (...)”. Não se cuida, portanto, de qualquer silêncio do legislador, mas das hipóteses em que há mandamento constituição de elaboração normativa. 

Pois bem. O art. 37, VII, da Constituição da República deferiu aos servidores públicos o direito de greve, reservando a lei específica a regulamentação do seu exercício. 

Trata-se, portanto, de norma constitucional de eficácia limitada, cuja plena aplicação impõe a edição de diploma legal.   

Até o ano de 2007, porém, o Congresso Nacional não havia cumprido a reserva legal imposta pela Constituição, de sorte que o exercício do direito estabelecido no inciso VII do art. 37 restava inviabilizado. 

Nesse caso, reconhecendo a inequívoca omissão legislativa e valendo-se do legítimo instrumento do mandado de injunção, posto à disposição da sociedade pelo próprio legislador constituinte, o STF deferiu o pleito formulado nos autos do MI 712/PA, determinando a aplicação da Lei Geral de Greve aos servidores públicos até que o Congresso Nacional edite a lei específica voltada aos servidores públicos. 

É de se concluir, ante todo o exposto, que houve autêntica omissão, porquanto o Poder Legislativo deixou de atender a expressa reserva legal estabelecida no art. 37, VII, da Constituição do Brasil. Por outro, a atuação do STF revelou-se em perfeita harmonia com a sistemática da separação de poderes impressa na Constituição de 1988, uma vez que deferiu o pleito nos termos e nos limites do remédio constitucional instituído pelo próprio constituinte originário (o mandado de injunção). Nesse sentido, o relator do MI 712/PA, Ministro Eros Grau, arremata, com escorreita didática, que: 

Não há que falar em agressão à “separação dos poderes”, mesmo porque é a Constituição que institui o mandado de injunção, e não existe uma assim chamada “separação dos poderes” provinda do direito natural. Ela existe, na Constituição do Brasil, tal como nela definida. Nada mais. No Brasil vale, em matéria de independência e harmonia entre os poderes e de “separação dos poderes”, o que está escrito na Constituição, não esta ou aquela doutrina em geral mal digerida por quem não leu Montesquieu no original.  

Por outro lado, não há que se falar em omissão quando o Supremo Tribunal Federal, valendo-se de artifícios hermenêuticos, subverte o sentido das normas higidamente produzidas pelo Legislativo ou quando verdadeiramente cria regras novas a partir das convicções do colegiado. 

A hipótese que melhor traduz uma certa perversão hermenêutica é a decisão proferida no bojo da ADPF 54, que viabilizou o aborto de fetos anencefálicos.

Nesse ponto, é conveniente destacar que a crítica formulada neste ensaio não se dirige ao objeto da decisão, de modo que não se pretende emitir qualquer juízo valorativo quanto à pertinência de políticas públicas, como é o caso do aborto. O que se coloca em debate é o moyen de parvenir, isto é, o mecanismo pelo qual se busca alcançar a concretização desse tipo de agenda, furtando-se ao debate pluralístico das esferas representativas. 

Com efeito, a redação dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal (CP) veicula a intenção explícita e inequívoca do legislador de criminalizar a prática do aborto, independentemente da situação do feto (os referidos dispositivos assim rezam: “Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de um a três anos. (...) Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maios de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. (...) Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”). 

As duas únicas hipóteses taxativas que excluem a ilicitude da prática de aborto são aquelas veiculadas no art. 128 do CP, isto é, quando não for possível, de outro modo, salvar a vida da gestante e quando a gravidez resultar de estupro. Como ensina Damásio de Jesus (2000, p. 420): “trata-se de causas excludentes da ilicitude, sendo, portanto, lícita a conduta daquele que pratica o aborto nas duas circunstâncias relacionadas no texto legal”. 

Essas hipóteses, sem embargo, não legitimam “o chamado aborto eugenésico, ainda que seja provável ou até mesmo certo que a criança nasça com deformidade ou enfermidade incurável” (DELMANTO et al, 2003, p. 268). 

Assim, não há qualquer omissão legislativa no tocante à tipificação penal do aborto de fetos anencefálicos: é de solar evidência que o legislador pretendeu a criminalização dessa conduta. A corroborar, traga-se à baila excerto do voto divergente proferido Ministro Ricardo Lewandowski, no julgamento da ADPF em comento: 

E não se diga que à época da promulgação do Código Penal ou de sua reforma, levadas a efeito, respectivamente, por meio do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, e da Lei 7.209, de 11 de junho de 1984, não existiam métodos científicos para detectar eventual degeneração fetal. Como se sabe, os diagnósticos de deformidades ou patologias fetais, realizados mediante as mais distintas técnicas, a começar do exame do líquido amniótico, já se encontram de longa data à disposição da Medicina. 

De fato, caso desejasse, o Poder Legislativo, legítimo tradutor da vontade popular, teria modificado os dispositivos da Lei Penal de molde a excluir a ilicitude do aborto de fetos anencefálicos. 

Sua resposta parece haver sido no sentido de que a vontade dos representantes do povo era pela manutenção da tipificação penal do aborto de fetos anencefálicos. Não há omissão quando há lei regendo a matéria, embora se discorde da disciplina que o legislador emprestou ao tema. 

Como ensina corretamente Luís Roberto Barroso (2004, p. 192), que atuou como patrono do requerente da ADPF 54: “Deveras, foi ao Poder Legislativo, que tem o batismo da representação popular e não o Judiciário, que a Constituição conferiu a função de criar o direito positivo e reger as relações sociais”. 

Não houve interpretação, senão a inequívoca substituição do legislador pelo juiz. Como escreveu o Ministro Lewandowski, na já referida assentada, o autor da ADPF 54 pretendia que o Supremo elaborasse “uma norma abstrata autorizadora do aborto eugênico nos casos de suposta anencefalia fetal, em outras palavras, que usurpe a competência privativa do Congresso Nacional para criar, na espécie, outra causa de exclusão de punibilidade ou, o que é ainda pior, mais uma causa de exclusão de ilicitude (...)”. 

Por todo o exposto, é preciso que se distingam as verdadeiras omissões. Quando o legislador silencia quanto a reservas legais estabelecidas na Constituição, há flagrante omissão. Quando, porém, há inércia do Legislativo quanto a leis existentes, válidas e eficazes, não existe omissão a ser suprida. Qualquer alteração nesses diplomas, à margem da Constituição, é abusiva. 

Atualmente, encontra-se em curso no Supremo Tribunal Federal proposta ainda mais ousada. Trata-se da ADPF 442, que pode autorizar o aborto no curso das doze primeiras semanas da gestação. O tribunal, repetindo o arremedo de instância democrática ocorrido durante o trâmite da ADPF 54, convocou audiências públicas para debate do tema. Em tópico sugestivamente intitulado de “A nova ágora”, Vieira (2008 pp. 452-454) introduz valorosa crítica à ofensiva política do STF. Refletindo sobre o manejo de consultas pública no julgamento da Lei de Biossegurança (ADI 3.510), pondera: “O primeiro fato a ser destacado aqui se refere à naturalidade com que o Supremo se colocou para avaliar a escolha política substantiva, no caso, com ampla repercussão moral, previamente realizada pelo legislador ordinário. Esta questão foi suscitada da tribuna, de forma expressa, por Luiz Roberto Barroso, advogado em um dos amici. Para o ilustre professor, o Tribunal deveria levar em consideração o fato de que a lei havia sido aprovada por uma esmagadora maioria do Congresso Nacional, após um amplo processo de consultas e debates, inclusive com a realização de audiências públicas, em que foram ouvidas as diversas posições da sociedade brasileira. Não havendo inconstitucionalidade flagrante, mas apenas ponderação legislativa legítima, o Tribunal deveria abster-se de substituir a decisão do legislador pela sua. Antes de iniciar o seu voto, a Ministra Carmem Lúcia afastou com veemência este argumento, sendo explicitamente acompanhada pelo Ministro Marco Aurélio. Logo, não se abriu qualquer espaço para uma discussão sobre deferência, muito comum em outros tribunais constitucionais ao redor do mundo. Entendida por deferência a postura respeitosa que muitos tribunais demonstram em relação ao legislador, democraticamente eleito. O que não significa omissão, mas, sim, o estabelecimento de claros parâmetros de separação de poderes, em que o judiciário sabe que a ele não foi conferido um poder de inovar na ordem jurídica. Embora o Supremo tenha desde muito cedo em sua história tido uma postura de se permitir substituir decisões do legislador35, especialmente quando estas afrontam direitos, o fato é que não costumava eliminar de forma tão radical argumentos que tomassem em consideração a necessidade de uma conduta deferente. O que ficou claro é que o Supremo não se vê apenas como uma instituição que pode vetar decisões parlamentares claramente inconstitucionais, mas que pode comparar a qualidade constitucional das decisões parlamentares com as soluções que a própria Corte venha a imaginar, substituindo as decisões do parlamento caso entenda que as suas são melhores.”.

Nesse ponto, impende discutir precisamente o problema da legitimidade democrática do Poder Judiciário.   

Em abril de 2018, ministros do Supremo Tribunal Federal foram surpreendidos por um debate insólito e constrangedor, provocado pelo chefe de Estado da República do Chile, enquanto visitava as dependências da Corte. A seguir transcreve--se o trecho pertinente da conversa, a partir de reportagem publicada pelo jornal O Estado de São Paulo, em 27 de abril de 2018: 

“Quando falha a Suprema Corte, a quem se recorre?”, questionou Piñera aos ministros. Depois de Cármen e Fachin [ministros do STF, a primeira sua então presidente] responderem que não cabe recurso, o presidente do Chile insistiu: “Então cabe a Deus?”
Nesse momento, o ministro Edson Fachin interveio na conversa e ressaltou que a “a última palavra, no sentido amplo e largo, é da sociedade”. O chileno então retrucou, indagando se a sociedade poderia revogar uma decisão da Suprema Corte. Os ministros responderam que não (MOURA & PUPO, 2018, s/p).

Não obstante, pensa Luís Roberto Barroso (2014, p. 442) que: 

A legitimidade democrática do Judiciário, sobretudo quando interpreta a Constituição, está associada à sua capacidade de corresponder ao sentimento social. Cortes Constitucionais, como os tribunais em geral, não podem prescindir do respeito, da adesão e da aceitação da sociedade.  

De fato, a imposição de decisões, como é inerente ao funcionamento do Poder Judiciário – e é bom que o seja, desde que se trate de um judiciário que atue nos limites da Constituição –, é incompatível com o modus operandi das instâncias democráticas. 

A arena democrática, além de eleita, é plural e sensível aos anseios sociais. Nos diversos parlamentos pelo mundo, os representantes eleitos chegam como mensageiros das aspirações de seus eleitores e, durante todo o mandato, permanecem diuturnamente atentos às reações populares. Dessa maneira, evidentemente depurando as opiniões mais exacerbadas, os parlamentares transportam a vontade do povo às instâncias do Estado. Transformam valores, costumes, hábitos, anseios e sonhos em normas vocacionadas à realização do bem comum., perdendo o assento no parlamento quando deixam de corresponder a esses anseios. 

O Poder Judiciário não possui semelhantes preocupações. Em nada lhe afeta o julgamento da opinião pública quanto a suas decisões. Não é típico de sua estrutura, nem deve sê-lo, atentar para o clamor popular – o Judiciário não tem que representar ninguém. Os membros da magistratura gozam de uma série de prerrogativas que os socorrem de quaisquer reprimendas. E assim o é pela mesma razão que os impede legislar: espera-se que a magistratura cumpra e faça cumprir as leis que foram democraticamente elaboradas pelo povo. 

É por tais razões que acertou o estadista Chileno ao sentenciar que somente o próprio Deus é capaz de corrigir falhas da Suprema Corte brasileira, uma vez que, como igualmente percebeu o presidente Piñera, o povo não pode revogar as decisões do Tribunal. 

As massas populares são volúveis e portadoras das mais diversas paixões, de modo que o transporte dos seus anseios para o plano do Estado depende da já debatida dinâmica dos parlamentos. Quando o Judiciário pretende fazer-se porta-voz do povo, ele verdadeiramente empresta a sua espada a grupos de interesses, sem o filtro da representação política.

Assim, o que se pretende enfatizar é que o Poder Judiciário tem uma missão própria no Estado Democrático de Direito. Essa missão, todavia, não envolve representar a vontade popular. Envolve apenas o cumprimento da lei. Como arrematam Streck, Tassinari e Lepper (2015, p. 59): “não se pode admitir que um julgador deixe de lado o texto constitucional em benefício de qualquer outro fundamento. Senão, está ferindo as regras do jogo de¬mocrático, do qual ele, por determinação constitucional, é exatamente o guardião”. 

De resto, é mister enfatizar que o Poder Judiciário não possui legitimidade democrática que o autorize a criar normas no ordenamento jurídico. Os seus membros não são escolhidos pela população, de forma que não veiculam a vontade popular, o que decorre da sua própria função no arranjo do Estado, como já exaustivamente exposto.      

É preciso compreender a dinâmica do jogo democrático, de molde a situar cada ator social em seu respectivo lugar. Como eximiamente sintetizam Streck, Tassinari e Lepper (2015, p. 59): 

A democracia tem seus bônus e seus ônus. Em ambos existe elemento de princípio que jamais pode ser violado: o respeito às regras preestabelecidas (uma questão de princípio ou o sentimento de pertença que se vê na fala de Sócrates, no Críton). Claro, em tempos de ativismo judicial desenfreado, instaura-se uma espécie de império da vontade. O ativismo deita suas raízes no utilitarismo supostamente moral e na vontade de poder de quem o pratica, algo muito perigoso ao regime democrático. A violação à Constituição é sempre uma ameaça à democracia. O senso comum costuma pensar a Democracia como um processo cujo fim é a sua conquista, ou como algo do qual a coletividade se apropria. Não é visto tal qual é: uma relação, sempre instável e sujeita a altos e bai¬xos, a avanços e retrocessos, a continuidades ou rupturas. Nossa história mostra isso. A democracia precisa ser vista numa perspectiva histórica e de lutas políticas.