O STF na Era do Ativismo Judicial: Debates em Torno da ADPF 402/DF

Por Alberto de Mello - 20/12/2022 as 10:08

O propósito deste trabalho consistiu em analisar a ocorrência de ativismo judicial no julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da ADPF 402/DF. Para tanto, partindo-se de uma perspectiva predominantemente dedutiva, foram analisados, a partir de revisão bibliográfica e jurisprudencial, os conceitos e definições afetos à separação de poderes, ao ativismo judicial e à judicialização da política, entre outros temas correlatos. Também foi estudada a evolução institucional do Supremo Tribunal Federal, ao longo da História Constitucional do Brasil, de maneira a viabilizar mais precisa análise da atual conjuntura jurídico-política do Tribunal. Por fim, foi realizada análise casuísta da ADPF 402/DF, onde, a partir do exame das decisões do STF e das suas repercussões, ficou evidente que, ao julgar aquela ação, o Tribunal exerceu atividade de legislador positivo, uma vez que estabeleceu regra jurídica inexistente na Constituição de 1988. De fato, Carta Federal não veicula qualquer norma que impeça parlamentares réus de ocuparem a linha sucessória da presidência da República. Além disso, como ficou demonstrado, é tecnicamente inviável qualquer analogia que pretenda aplicar a regra de afastamento cautelar do Presidente da República (art. 86, §1º, I, CF) aos substitutos eventuais que ostentem a condição de réus. Ademais, o caso evidenciou os perigos do ativismo judicial para a separação e harmonia entre os poderes do Estado, tendo em vista que provocou uma tensão escancarada entre o Supremo Tribunal Federal e o Senado da República, que se recusou a cumprir a decisão daquela Corte. Dessa forma, concluiu-se que o ativismo judicial continua representando um fenômeno jurídico-forense a ser desencorajado e coibido com as necessárias alterações constitucionais e legais, de modo a preservar a independência entre os poderes, sobretudo a do Legislativo, e garantir a soberania da vontade popular, expressada através de representantes eleitos.

O significado do Poder Judiciário, enquanto um dos três poderes estatais, sofreu alteração substancial nos últimos séculos. A atividade judicante, antes confinada à função de “boca que pronuncia as palavras da lei” (MONTESQUIEU, 1973, p. 179), adquiriu um protagonismo sem precedentes com o advento do constitucionalismo. 

O Judiciário, designadamente através das Cortes Constitucionais, passou a assumir o lugar de guardião da Constituição e, por conseguinte, da estabilidade política dos Estados soberanos, mister que antes estava reservado aos monarcas. No Brasil, essa transição ocorreria tardiamente, tendo em vista a introdução do Poder Moderador, pela Constituição Imperial de 1824 . 

Com efeito, foi somente após a emergência da ordem constitucional de 1988 que o Poder Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal, assumiria posição central na regulação das instituições político-jurídicas, à luz da Constituição. 

A Carta Política de 1988 alargou e consolidou o processo objetivo de controle de constitucionalidade de leis em abstrato. Ademais, colocou à disposição dos cidadãos diversos instrumentos jurídicos aptos a viabilizarem o acesso à justiça, para a efetivação de direitos introduzidos no próprio texto da Constituição. 

E, como esse rol de direitos revela-se extenso e amplo, verificou-se aumento exponencial de demandas propostas perante as Cortes de Justiça, fato que, somado à consolidação do exame de constitucionalidade de leis em tese, atraiu o que se pode considerar uma externalidade negativa de um judiciário forte e atuante. 

Trata-se, pois, do ativismo judicial, fenômeno pelo qual o Judiciário, através de suas decisões, acaba encampando funções que, por sua própria natureza, competem a outros poderes. E tal pode significar um grande problema para a liberdade política, na medida em que o Poder Judiciário, através de um corpo de magistrados não eleito, acaba suplantando a vontade do Poder Legislativo, legítimo tradutor das vozes do povo.

Têm se avolumado as críticas a esse tipo de atuação pelo Supremo Tribunal Federal, que, ao longo dos últimos anos, progressivamente amplia a prática do ativismo judicial em seus julgados. Nesse diapasão, destaca Vieira (2008, p. 451) que “o Supremo vem expandido sua atividade legiferante, com ênfase naquela de impacto constitucional, ou seja, passando do campo do exercício da autoridade para o exercício do poder”.

Assim, os onze ministros do STF, não eleitos e não sujeitos a qualquer tipo de controle, vêm proferindo decisões que, muita vez, contrariam os ideais dos representantes políticos e, frequentemente, da própria maioria da população, sob o signo de abraçarem uma “atuação iluminista” . 

Esse não é, contudo, o único problema que se divisa ao analisar o ativismo no STF. Pinheiro (2009, p. 20) apud Yamada e Villares (2010. p. 149) assevera corretamente que: 

O Poder Judiciário sempre é festejado quando rompe a clássica doutrina da separação de poderes e toma a iniciativa ao implementar direitos sociais, mediante provimentos jurisdicionais que acabam por inovar a legislação existente, complementando direitos geralmente expressos em textos de grande abertura.

No julgamento da ADPF 54 , o STF legislou ao criar excludente de ilicitude para o caso do aborto de fetos anencefálicos, medida que, por mais razoável pareça, não poderia prescindir do regular processo legislativo. A decisão foi efusivamente celebrada por diversos nichos políticos e sociais. 

No entanto, ficou a inquietante pergunta formulada, ainda em 2010, por Yamada e Villares (2010, p. 149): “mas será também [o STF] festejado quando limitar esses mesmos direitos sociais, impondo restrições não previstas constitucionalmente?”

A indagação guardou ares premonitórios. Os mesmos segmentos políticos que celebraram a ADPF 54 e outras ações de mesma índole migraram para as críticas ácidas quando o Tribunal, no ano de 2016, em outro rompante ativista, ignorou o texto expresso da Constituição e validou a antecipação da prisão após condenação em segunda instância . Assim, percebe-se que o problema do ativismo judicial não tem um lado e que toda fuga da legalidade pode representar um perigo para a liberdade política e mesmo a civil.  

Por seu turno, se propõe a analisar, a partir de um recorte jurisprudencial, a hipótese da prática de ativismo judicial pelo Supremo Tribunal Federal. Pretende-se, concretamente, o exame da ADPF 402/DF, de molde a investigar se o STF atuou como legislador positivo, criando regra de substituição presidencial não estabelecida na Constituição da República. 

Não se ambiciona, evidentemente, questionar a legitimidade das altas funções reservadas ao Supremo Tribunal Federal pela Constituição democrática de 1988. Sobretudo quando essa Corte, porque guardiã do regime liberdades que suplantou uma era funesta de arbitrariedades, personifica a expressão civilizatória do cedant arma togae

E dessa maneira o é não por mera afirmação abstrata, mas porque a Corte efetivamente não se acovardou quando chamada a deliberar sobre graves questões nacionais , ainda que, na realização desse mister, se tenha feito necessário impor a autoridade da Constituição aos demais poderes da República. 

O presente estudo foi elaborado em perspectiva predominantemente dedutiva, sem embargo de manejos pontuais de indução, a partir, sobretudo, de revisão bibliográfica e jurisprudencial. 

 

O Fenômeno do Ativismo Judicial e seus Contornos Gerais

Antes de examinar especificamente os conceitos afetos ao ativismo judicial, mister faz-se traçar breves notas acerca do tema da separação de poderes (ou funções) do Estado. Isso porque, com efeito, a problemática do ativismo judicial somente ganha sentido no contexto da separação de poderes.

A dogmática da separação de funções tem por finalidade precípua assegurar a liberdade de toda a população do Estado, de sorte que vulnerar a tripartição significa ameaçar essa liberdade. A mácula central do ativismo judicial consiste precisamente na usurpação de atribuições típicas e exclusivas do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário. Logo, o ativismo judicial vulnera a separação de poderes e, ipso facto, a liberdade de todos os indivíduos.

 

Evolução, Conceito e Finalidades da Doutrina da Separação de Poderes

Para melhor discutir a finalidade prática da teoria da separação de poderes, é indeclinável, ainda que en passant, tecer breves notas acerca da sua evolução histórica, de modo que se apreenda o valor axiomático de que hodiernamente goza esse instituto.    

Com efeito, os primeiros rudimentos da doutrina da separação de poderes remontam à obra de Aristóteles , que preleciona, na Política (1988, p. 260, tradução nossa):

Em todas as constituições, há três elementos sobre os quais deve meditar o bom legislador, de modo a acomodá-los da maneira mais conveniente a cada regime. Se estes elementos estiverem bem estabelecidos, necessariamente também o estará o regime, e os regimes diferenciam-se uns dos outros no que difira cada um desses elemento. Desses três elementos uma questão é o que delibera sobre os assuntos da comunidade; a segunda é a referente às magistraturas (isto é, quais devem haver, sobre que assuntos devem ser soberanas e como deve ser sua eleição), e a terceira à administração da justiça .  

Dessa maneira, Aristóteles elaborou um esquema de governo composto pelas funções de a) deliberar sobre os negócios públicos, b) exercer a magistratura e c) administrar a justiça. 

A função deliberativa estaria vocacionada a “decidir soberanamente da guerra, da paz, da aliança, da ruptura dos tratados, promulga as leis, pronuncia a sentença de morte, o exílio, o confisco e encaminha as contas do Estado” (ARISTÓTELES, 1988, p. 260, tradução nossa). O próprio filósofo confunde-se em precisar as tarefas cometidas à magistratura, recorrendo a uma série de exemplos que lhe prestam as feições típicas de um poder executivo (ARISTÓTELES, 1988, p. 265-274). Por fim, dá conta de discorrer acerca dos diversos tipos de tribunais e das suas respectivas atribuições. 

No contexto da doutrina de Aristóteles, todavia, não há verdadeiramente uma separação de poderes. Como bem observa Azambuja (2015, p. 177), a Assembleia dos cidadãos (Ekklesia) concentra todo o poder da polis, sendo as atribuições da magistratura e do judiciário meras delegações do corpo deliberante, sem competências claramente definidas. 

Somente no século XVII foi formulado por John Locke o primeiro estudo sistemático acerca da separação de poderes. Na concepção do autor inglês, são quatro os poderes existentes: o Poder Legislativo, o Poder Executivo, o Poder Federativo e um quarto designado como “o poder de fazer bem ao público sem se subordinar a regras” (LOCKE apud DALLARI, 2017, p. 216). 

Por muito que a teoria de Locke represente significativa evolução relativamente à doutrina de Aristóteles, obtempera Mello (2006, p 87, grifos do autor) que de acordo com a doutrina do filósofo britânico:

(...) Cabe igualmente à maioria escolher o poder legislativo, que Locke, conferindo-lhe uma superioridade sobre os demais poderes, denomina de poder supremo. Ao legislativo se subordinam tanto o poder executivo, confiado ao príncipe, como o poder federativo, encarregado das relações exteriores (guerra, paz, alianças e tratados). Existe uma clara separação entre o poder legislativo, de um lado, e os poderes executivo e federativo, de outro, os dois últimos podendo, inclusive, ser exercidos pelo mesmo 

A teoria de Locke, portanto, ainda conserva o estabelecimento de hierarquia entre as funções do Estado, sujeitando o exercício das funções executiva, federativa e da função discricionária ao arbítrio do Poder Legislativo. 

Mais tarde, sob inspiração do pensamento iluminista, Charles-Louis de Secondat, o Barão de Brède e de Montesquieu, elaborou a mais robusta e difundida teoria da separação de poderes, a qual converteu-se em verdadeiro parâmetro de aferição do caráter democrático das Constituições, sendo adotada até os dias atuais por grande parte dos Estados, observadas adaptações tópicas (De acordo com José Afonso da Silva (2005, p. 109), a tripartição em análise “tornou-se, com a Revolução Francesa, um dogma constitucional, a ponto de o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 declarar que não teria constituição a sociedade que não assegurasse a separação de poderes, tal a compreensão de que ela constituiu técnica de extrema relevância para garantia dos Direitos do Homem, como ainda o é”. ).

Consoante os estudos de Montesquieu (1996, p. 167-168):

Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Com o primeiro, o Príncipe ou Magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado. 

A construção teórica de Montesquieu teve o condão de fixar em número de três os poderes do Estado – Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – e melhor delimitar os seus domínios. Sem embargo, o vanguardismo de seu trabalho consistiu mormente em dois aspectos, a saber: a um, na autêntica independência franqueada a cada poder; a dois, na concepção orgânica pela qual eles se devem relacionar, de maneira a garantir a liberdade política. 

Relativamente ao primeiro aspecto, não se vislumbra no pensamento do Barão de Brède a concentração do poder em um único órgão, em torno do qual orbitariam as demais funções, como propunha Aristóteles. Tampouco prospera a noção, como queria Locke, de um poder supremo, capaz de subjugar os demais. De fato, Montesquieu estabeleceu a separação de poderes e a independência entre eles como conditio sine qua non para o Estado de Direito, de modo que a equivalência entre eles “consiste em que essas três funções deveriam ser dotadas de igual poder” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 119).  

No tocante ao segundo aspecto, ou seja, ao relacionamento entre os poderes, explica didaticamente Althusser (1972, p.132; 134-135, grifos do autor -   O mesmo autor, socorrendo-se do magistério de Eisenmann, refuta o pensamento predominante no século XIX e princípios do século XX, o qual equivocadamente compreendia a teoria tripartite de Montesquieu como uma separação absoluta entre os poderes. Nessa toada, explica em pormenores, chegando a qualificar a separação de poderes como um “mito”: “A tese de Eisenmann é a de que a teoria de Montesquieu, e muito particularmente o célebre capítulo sobre a Constituição de Inglaterra, engendrou um verdadeiro mito: o mito da separação dos poderes. Encontramos toda uma escola de juristas, particularmente no fim do século XIX e princípio do XX, que adoptaram um certo número de fórmulas de Montesquieu para lhe atribuir um modelo teórico, puramente imaginário. O ideal político de Montesquieu coincidiria com um regime, no qual seria rigorosamente assegurada esta separação dos poderes. Deveriam existir três poderes: o executivo (o rei, os seus ministros), o legislativo (a câmara baixa e a câmara alta) e o judicial (o corpo de magistrados). Cada poder recobriria exactamente uma esfera própria, isto é, uma função própria, sem qualquer interferência. Cada poder seria assegurado em cada esfera por um órgão rigorosamente distinto dos outros órgãos. Não só não se poderia conceber nenhuma interferência do executivo no legislativo ou no judiciário, nem nenhuma interferência recíproca da mesma natureza; mais ainda, nenhum dos membros que fazem parte de um órgão pode pertencer a outro órgão. Por exemplo, não só o executivo não poderia intervir no legislativo, por meio de propostas de lei, ou no judiciário por pressões, etc., como também nenhum ministro poderia ser responsável perante o legislativo; além disso, nenhum membro do legislativo poderia, a título pessoal, assumir funções executivas e judicial, isto é, tornar-se ministro ou magistrado, etc. Deixo de lado o pormenor desta lógica sempre viva em alguns espíritos. A primeira audácia de Eisenmann consistiu em mostrar que esta famosa teoria muito simplesmente não existia em Montesquieu. Basta ler atentamente os seus textos para descobrir, com efeito: 1. Que o executivo interfere no legislativo, porque o rei goza do direito de veto. 2. Que o legislativo pode, em certa medida, exercer um direito de vigilância sobre o executivo, pois controla a aplicação das leis que votou e sem que se trate de «responsabilidade ministerial» pode pedir contas aos ministros perante o Parlamento 3. Que o legislativo interfere seriamente no judicial pois, em três circunstâncias particulares, erige-se em tribunal: em todas as matérias, os nobres, cuja dignidade é necessário proteger de todo o contacto com as opiniões dos magistrados populares, serão julgados pelos seus pares da câmara alta; em matéria de amnstia; e em matéria de processos políticos, que serão julgados perante o tribunal da câmara alta, sob a acusação da câmara baixa. Não se percebe muito bem, como conciliar semelhantes e tão importantes interferências dos poderes com a pretendida pureza da sua separação” (ALTHUSSER, 1972, p. 129-132, grifos do autor):

(...) Na verdade, em Montesquieu não se tratava de separação, mas de combinação, de fusão, e de ligação dos poderes. (...) Assim se esclarece o famoso problema do governo moderado. A verdadeira moderação não é nem a estrita separação dos poderes nem a preocupação e o respeito jurídico da legalidade.  (...)  É o equilíbrio dos poderes, isto é, a divisão dos poderes entre as potências, e a limitação ou moderação das pretensões de uma potência pelo poder das outras.

O relacionamento entrosado entre os poderes, i. e., uma relação de interdependência entre eles, tem, como exposto alhures, a função de garantir a liberdade de toda a comunidade através da contenção recíproca dos poderes uns pelos outros, mecanismo que ficou conhecido como Checks and Balances System (sistema de freios e contrapesos). Como preleciona o próprio Montesquieu (1996, p.  166, grifo nosso): 

A liberdade política só se encontra nos governos moderados. Mas ela nem sempre existe nos Estados moderados; só existe quando não se abusa do poder; mas trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. (...) Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder. 

Com efeito, como bem observou Limongi (2006, p. 250), a doutrina de Montesquieu ainda não se havia desapegado completamente da chamada teoria do “governo misto”, segundo a qual as funções de governo deveriam ser distribuídas consoante os diferentes estratos sociais (realeza, nobreza e povo), de molde a garantir a liberdade e a convivência pacífica. A correlação possível entre a teoria do governo misto e a separação de poderes, e tal parece ser a Inglaterra descrita por Montesquieu, é que cada uma das forças sociais fique responsável por um dos poderes. É por tal razão que Althuesser (1972, p. 135) considera um mito a separação de poderes em Montesquieu, obtemperando que “a famosa separação dos poderes não passa da divisão ponderada do poder entre potências determinadas: o rei, a nobreza, o «povo»”.

Nesse diapasão, houve a necessidade de que a doutrina do filósofo franco se adaptasse à ordem emergente, designadamente porque, nos Estados Unidos da América, onde se reconhecia a necessidade da separação de poderes como instrumento de garantia da liberdade, não de divisavam as condições sociais para um esquema de governo misto. Assim, foi forjado um conjunto de mecanismos constitucionalmente estabelecido de contenção de um poder pelos outros, como se explica n’O Federalista (2003, p. 318): “é preciso opor ambição à ambição e travar de tal modo o interesse dos homens, com as obrigações que lhes impõem os direitos constitucionais dos seus cargos, que não possam ser o fendidas as últimas sem que o primeiro padeça”.

Hodiernamente, com a ampliação da esfera de atuação do Estado e a complexificação de sua estrutura, o princípio da separação de poderes ganhou novos contornos, sendo regulada e garantida por diversos institutos constitucionais de autocontenção e controle recíproco entre os poderes. Nessa toada, arremata Afonso da Silva (2005, p. 109, grifos do autor) que:

Hoje, o princípio não configura aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação de poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente se prefere falar em colaboração de poderes, que é característica do parlamentarismo, em que o governo depende da confiança do parlamento (Câmara dos Deputados), enquanto no presidencialismo desenvolveram-se técnicas de independência orgânica e harmonia dos poderes.  

Pois bem. Feita esta breve resenha histórica, impõe-se analisar mais detidamente a finalidade prática da separação de poderes. 

É o próprio Montesquieu (1996, p. 168) a dar a mais completa e didática explicação, ensinando que:
 
A liberdade política, em um cidadão, é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe essa liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo de principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares. 

Dessa sorte, o dogma da separação de poderes tem a precisa função de garantir a liberdade de todos os indivíduos em face do poder outorgado ao Estado, funcionando de molde que le pouvoir arrête le pouvoir, como escreveu Montesquieu. 

A ausência desse esquema, isto é, quando os poderes são concentrados em alguma figura, tal como descrito por Montesquieu, “gerava o despotismo, a desigualdade, a injustiça. Fazia surgir atos detrimentosos à liberdade do indivíduo, enquanto tal” (TEMER, 2015, p. 121).  

Assim, destacando o significado da separação de poderes para a garantia da liberdade política, arremata Streck (2003, p. 163-164):

(...) É necessário termos presente que a estratégia de distinguir as funções do Estado, atribuindo-as a órgãos diversos, pode ser entendida como mais um dos instrumentos de dispersão do poder, no sentido de evitar que a sua concentração compactua com a sua absolutização. Ou seja, a organização funcional da atividade estatal, para além de um mecanismo de racionalização administrativa, atua, também, como um elemento de garantização para o asseguramento democrático do poder político. É neste sentido que precisa ser visto desde a sua origem, colocando-se como uma estratégia de desconcentração do poder político. Por óbvio que outros aspectos precisam ser considerados, mas é este, talvez, o de maior repercussão (...). 

Por tudo quanto exposto, não resta dúvida de que a preservação da separação de poderes, a bem da liberdade de toda a coletividade, é medida que se impõe, devendo o seu horizonte estar sempre presente nas rotinas dos órgãos do Estado, em todos os níveis de governo. 

Antes de avançar no exame do tema, porém, é conveniente anotar breve advertência, respeitante à imprecisão terminológica de se falar em divisão de poderes, embora esteja difundido o uso dessa locução. Como bem observou Jellinek (2000, p. 452, tradução nossa), Montesquieu, ao elaborar a sua doutrina, “(...) não fundamenta sua teoria nem aclara, em geral, a questão acerca da unidade do Estado e da relação dos poderes com essa unidade”. Com efeito, é forçoso reconhecer que:

Equivocam-se os que utilizam a expressão “tripartição de poderes”. É que o poder é uma unidade. Como já vimos, é atributo do Estado. A distinção é entre órgãos desempenhantes de funções (TEMER, 2015, p. 120). 

Dessa sorte, não há que se falar, propriamente, em uma cisão do poder do Estado. O que há é a normal e necessária pluralidade de órgãos a exercerem esse poder, preservada a sua unidade e indivisibilidade (DALLARI, 2013, p. 214-215). Por conseguinte, parece mais preciso falar-se em distribuição ou divisão de funções. Assim, sintetiza Bonavides (2000) que:

 A distinção acima enunciada faculta compreender a contradição aparente que resultaria do postulado essencial da unidade do poder contraposto ao princípio da chamada separação de poderes consagrado pela teoria constitucional e elaborado por Montesquieu em Do Espírito das Leis (1748). O poder do Estado na pessoa de seu titular é indivisível: a divisão só se faz quanto ao exercício do poder, quanto às formas básicas de atividade estatal. Distribuem-se através de três tipos fundamentais para efeito desse mesmo exercício as múltiplas funções do Estado uno: a função legislativa, a função judiciária e a função executiva, que são cometidas a órgãos ou pessoas distintas, com o propósito de evitar a concentração de seu exercício numa única pessoa.