O Supremo Tribunal Federal: De um “Outro Desconhecido” à “Supremocracia”

Por Alberto de Mello - 20/12/2022 as 10:10

De fato, a consolidação da fortaleza institucional do Supremo Tribunal Federal foi condição indispensável para que a Corte tomasse a dianteira em decisões de grave repercussão nacional. 

A partir de um processo evolutivo relativamente curto, o Tribunal Constitucional impôs o seu domínio na relação entre os poderes, cristalizando a qualidade de emissor da última palavra nas demandas políticas. 

É certo que esse processo foi determinante para que o Tribunal avançasse em decisões ativistas, valendo-se da autoridade judicial conquistada para aventurar-se em substituir a vontade do legislador.    

Nesse diapasão, para melhor compreender a atual situação da Corte no contexto da relação entre os poderes, é indispensável visitar, conquanto brevemente, a sua evolução institucional.

 

Antecedentes Históricos: a Casa de Suplicação do Brasil e o Supremo Tribunal de Justiça

Durante a fase colonial, o Brasil não possuía, como é natural supor, um órgão judiciário de cúpula, com poderes para decidir litígios em instância irrecorrível. Na verdade, a organização jurídica e administrativa da colônia era extremamente difusa e inexata. 

Como destaca Nunes Leal (2012, p. 97), havia ali imprecisões na delimitação de competências das autoridades públicas, o que não raro ocasionava a sobreposição de poderes administrativos, judiciais e de polícia nas figuras dos mesmos agentes, dispostos em ordem hierárquica amiúde inomogênea. A propósito dessa estrutura, é conveniente destacar, à guisa de aprofundamento, as palavras de Wolkmer (2003, p. 61): “Em verdade, a especificidade da estrutura colonial de Justiça favoreceu um cenário institucional que inviabilizou, desde seus  primórdios,  o  pleno  exercício  da  cidadania participativa  e  de   práticas  político-legais  descentralizadas,  próprias  de  sociedade  democrática e  pluralista. Naturalmente, o padrão político-administrativo alienígena, instaurado pela administração portuguesa e incorporado paulatinamente por nossas instituições, acabaria assumindo, por seu formalismo retórico e por seu tecnicismo, um perfil de teor predominantemente excludente. Sem dúvida, seria, assim, marcado por ambivalências e contradições que sintetizariam, permanentemente, a singularidade de uma cultura jurídica, formada, de um lado, por procedimentos de raiz conservadora – herança do burocratismo patrimonial  do  Brasil-Colônia  –, e de outro,  por valores de matiz liberal – propagados durante o Império e nos primórdios da República”.

Nessa toada, além dos diversos órgãos de 1ª instância, os Tribunais da Relação constituíam o segundo e último grau recursal da colônia, com competência para julgar recursos ou embargos. 

É dessa maneira que “o Tribunal de Justiça Superior, de terceira e última instância, com sede na Metrópole, era representado pela Casa da Suplicação, uma espécie de tribunal de apelação” (WOLKMER, 2003, p. 52). Era, pois, em Portugal que se situava a Casa da Suplicação, mais elevada corte de justiça a quem competia o exame dos conflitos ocorridos na colônia. 

Com a chegada da família real portuguesa no Brasil, em 1808, houve grande desenvolvimento do aparelho judiciário (NUNES LEAL, 2012, p. 98), sendo a criação da Casa da Suplicação do Brasil o acontecimento mais relevante. 

Nesse diapasão, ensina Blaschek (2008, p. 418) que: 

Foi mediante Alvará Régio de 10 de maio de 1808, na Regência do Príncipe D. João, que o órgão jurisdicional supremo do Brasil Imperial, sob a denominação de Casa da Suplicação do Brasil, com sede no Rio de Janeiro. Sua composição numérica era de 23 (vinte e três) juízes. A Casa da Suplicação do Brasil foi investida da mesma competência atribuída à Casa de Suplicação de Lisboa. 

De fato, como arremata Camarinhas (2014. p. 239), “a Casa da Suplicação do Rio de Janeiro adotou para si toda a estrutura e modos de funcionamento da sua congénere de Lisboa”, o que “transformou o aparelho judicial português numa estrutura bicéfala, com uma cabeça em cada lado do Atlântico”, tendo em vista a subsistência da Casa da Suplicação de Lisboa.

Dessa forma, a Casa da Suplicação do Brasil consistiu na primeira Corte suprema da história brasileira, no sentido gozar do poder de decidir, em instância irrecorrível, os litígios ocorridos na colônia. 

Contudo, foi sob os auspícios do Império Brasileiro que ocorreu a inauguração, pela da Carta Constitucional de 1824, do Supremo Tribunal de Justiça, Corte que pode ser considerada o embrião do Supremo Tribunal Federal. E essa caracterização parece, com efeito, bastante apropriada àquele Tribunal ainda muito incipiente, uma vez que, conquanto sendo a cúpula do sistema de justiça, não escapava às fragilidades que maculavam todo o judiciário imperial.  

Ao examinar a Constituição de 1824, Nogueira (2012, p. 26) pontua que “não se pode dizer que o Judiciário constituísse, na prática, um poder independente, na forma como hoje se concebe a harmonia e independência que preside os diferentes poderes do Estado democrático”. Isso porque o Imperador, valendo-se da faculdade conferida pelo Poder Moderador, poderia intervir em praticamente todas as instituições estatais, inclusive no Judiciário.

E, após examinar os dispositivos da Constituição Imperial que tratam das garantias da magistratura, observa que “o texto constitucional negava, na prática, duas garantias tradicionais da Magistratura – a vitaliciedade e a inamovibilidade (...) – ainda que duas disposições diferentes lhes garantissem, teoricamente, tanto uma quanto outra” (NOGUEIRA, 2012, pp. 26-27). 

De fato, houve, ao longo do período imperial, aposentadorias e remoções ex officio de magistrados que contrariaram os interesses da Coroa. E também o Supremo Tribunal de Justiça experimentou essa sorte reprimenda. Em 1863, vários juízes da Corte foram aposentados por decreto.  

Na ocasião, “alegava-se que o Supremo Tribunal de Justiça não acataria o ato do Executivo, e no Senado foi tão intensa a reação que os conservadores aconselhavam a desobediência ao decreto do Governo, o que, de fato, terminou não ocorrendo” (NOGUEIRA, 2012, p. 27). 

A própria conformação legal do Tribunal explicitava profunda fragilidade no âmbito de suas competências. A essa Corte falecia, inclusive, competência para uniformizar a jurisprudência do país, função que foi constitucionalmente atribuída ao Poder Legislativo, mas, porque nunca exercida, acabou sendo absorvida pelo Executivo. Nessa toada, o magistério de Blaschek (2008, p. 424) aponta que a competência do Supremo Tribunal era “limitada a conceder ou não uma revisão mais supervisionada das causas apresentadas”. 

Somente em 1875 foi aprovada lei que autorizou o Supremo Tribunal de Justiça a “tomar assentos”, isto é, a uniformizar a jurisprudência do Império, de modo a dirimir as milhares de consultas formuladas por órgãos judiciários de todo o país (NOGUEIRA, 2012, p. 30). 

A partir desse momento, a atividade do Supremo restou voltada à uniformização de jurisprudência, passando ao largo de qualquer possibilidade de o judiciário avaliar a constitucionalidade de leis ou atos do governo, como ocorreria anos mais tarde. 

Verifica-se, portanto, que a mais alta Corte de justiça do Brasil Imperial apresentava feições extremamente tímidas no tocante às atribuições dos órgãos judiciários de cúpula, constatação que muito a afasta da Suprema Corte que seria criada a partir do advento da República.  

Parece inegável, entretanto, que o Supremo Tribunal de Justiça deva ser considerado o embrião do Supremo Tribunal Federal, até porque, como assinala Emília Viotti da Costa (2006, p. 25), muitos dos juízes que integraram a primeira composição do STF eram remanescentes do Supremo Tribunal de Justiça.