Por Alberto de Mello 20/07/2021 as 11:54
O advento da ordem constitucional de 1988 atraiu para o STF um protagonismo sem precedentes. Diversos fatores jurídicos, políticos e sociais corroboraram para esse estado de coisas.
O alicerce jurídico-constitucional sobre o qual o STF construiria a sua autoridade repousa, segundo Barroso (2016, p. 229), em dois fatores precípuos. De um lado, a característica abrangente e analítica da Carta de 1988, que possibilita a judicialização dos mais diversos aspectos da vida. A outro giro, foi consagrada ampla possibilidade de acesso ao judiciário, uma vez que a constituição introduziu uma série de instrumentos processuais a viabilizarem o manejo da via judicial .
Por conseguinte,
Quase todas as questões de relevância política, social ou moral foram discutidas ou já estão postas em sede judicial, especialmente perante o Supremo Tribunal Federal. A enunciação que se segue, meramente exemplificativa, serve como boa ilustração dos temas judicializados: (i) instituição de contribuição dos inativos na Reforma da Previdência (ADI 3.105-DF); (ii) criação do Conselho Nacional de Justiça na Reforma do Judiciário (ADI 3.367-DF); (iii) pesquisas com células-tronco embrionárias (ADI 3.510-DF); (iv) liberdade de expressão e racismo (HC 82.424-RS — caso Ellwanger); (v) interrupção da gestação de fetos anencefálicos (ADPF 54/DF); (vi) restrição ao uso de algemas (HC 91.952-SP e Súmula Vinculante n. 11); (vii) demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol (Pet 3.388-RR); (viii) legitimidade de ações afirmativas e quotas sociais e raciais (ADI 3.330); (ix) vedação ao nepotismo (ADC 12-DF e Súmula 13); (x) não recepção da Lei de Imprensa (ADPF 130-DF). A lista poderia prosseguir indefinidamente, com a identificação de casos de grande visibilidade e repercussão, como a extradição do militante italiano Cesare Battisti (Ext 1.085-Itália e MS 27.875-DF) (...) (BARROSO, 2016, p. 230).
Naturalmente, o Tribunal, assim como os atores que a ele recorrem, levou algum tempo para se adaptar às novas possibilidade descortinadas pela Carta de 1988.
Assim, foi a partir da década de 2000 que o Tribunal passou a ganhar notoriedade e, sobretudo a partir de 2004, passou a ocupar as manchetes jornalísticas por ocasião de julgamentos com graves repercussões de âmbito nacional .
Nesse contexto, arremata corretamente Vieira (2008, p. 442) que:
Embora o Supremo tenha desempenhado posição relevante nos regimes constitucionais anteriores, com momentos de enorme fertilidade jurisprudencial e proeminência política, como na Primeira República, ou ainda de grande coragem moral, como no início do período militar, não há como comparar a atual proeminência do Tribunal, com a sua atuação passada.
O arranjo institucional que viabiliza essa concentração de poderes na figura do STF foi apelidado por Oscar Vilhena Vieira (2008, p. 444) de Supremocracia, pois:
O Supremo, que a partir de 1988, já havia passado a acumular as funções de tribunal constitucional, órgão de cúpula do poder judiciário e foro especializado, no contexto de uma Constituição normativamente ambiciosa, teve o seu papel político ainda mais reforçado pelas emendas de no. 3/93, e no. 45/05, bem como pelas leis no. 9.868/99 e no. 9.882/99, tornando-se uma instituição singular em termos comparativos, seja com sua própria história, seja com a história de cortes existentes em outras democracias, mesmo as mais proeminentes. Supremocracia é como denomino, de maneira certamente impressionista, esta singularidade do arranjo institucional brasileiro.
Nesse contexto, muitos analistas vêm alertando que essa concentração de poderes na figura do STF vem provocando desajustes no sistema de separação de poderes.
Como já debatido no capítulo anterior, diversos precedentes evidenciam que o STF vem extrapolando a sua função de intérprete do direito para fazer-se criador de regras jurídicas.
Nessa toada, “o Supremo não apenas vem exercendo a função de órgão de ‘proteção de regras’ constitucionais, face aos potenciais ataques do sistema político, como também vem exercendo, ainda que subsidiariamente, a função de ‘criação de regras’ (VIEIRA, 2008, p. 446; GARAPON, 1996).
Com esse agir, o Tribunal acabou por investir-se no exercício de funções típicas dos poderes políticos, sem, no entanto, estar submetido aos respectivos mecanismos de controle democrático.
Deve ser destacado que o atual STF, com a conformação jurídica que lhe emprestou a Constituição de 1988, representa uma experiência nova na história nas instituições brasileiras. Jamais a Suprema Corte desempenhou funções tão relevante ou gozou de semelhante prestígio como nestes tempos.
É interessante notar que o STF não apresentou, como seria de se supor, uma evolução institucional lenta e gradual. Antes, o Tribunal experimentou um processo de ascensão relativamente vertiginoso nos anos que se seguiram à promulgação da Carta de 1988 – e mesmo em razão dela.
É bem verdade, como foi observado por Vieira (2008, p. 442), que, em seus primeiros anos, na República Velha, o Tribunal ganhou algum destaque no trato das liberdades civis; a fortiori, contudo, essa efervescência inicial não demorou a esmorecer. O STF se converteria por longos anos no “outro desconhecido”.
Hodiernamente, a Corte ganhou relevante espaço na República, em virtude do desempenho do alto ministério que lhe foi atribuído pela Constituição de 1988. E de todo esse poder surgiram, evidentemente, os excessos, a partir dos quais introduziu-se a era da “supremocracia”.
Bacharel em Direito-UFRRJ e Servidor Público na Defensoria Pública do Rio de Janeiro.