Por Alberto de Mello 20/12/2022 as 10:08
Como adverte Hesse (1998, p. 368), o exame do princípio da separação de poderes “não pode prescindir da análise da configuração e dos contornos que lhe dá a ordem concreta de certo Estado”. Nessa toada, é somente mediante a análise dos dispositivos constitucionais que regulam a relação entre os poderes que se poderá, em determinado Estado, precisar a substância normativa do cânone da divisão de poderes, tal como, inclusive, corroborado pelo Supremo Tribunal Federal (A esse propósito, veja-se excerto extraído do acórdão proferido nos autos da ADI 138, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence (BRASIL, 1997, grifou-se): “O princípio da separação e independência dos Poderes não possui uma fórmula universal e apriorística e completa: por isso, quando erigido, no ordenamento brasileiro, em dogma constitucional de observância compulsória pelos Estados-membros, o que a estes se há de impor como padrão não são concepções abstratas ou experiências concretas de outros países, mas sim o modelo brasileiro vigente de separação e independência dos Poderes, como concebido e desenvolvido na Constituição da República”).
Em brevíssimo escorço histórico, preleciona Bulos (2014, p. 517) que:
Desde a Carta imperial de 1824 que o princípio vem reconhecido entre nós. Nessa época, por influência de Benjamin Constant, adotou-se a quadripartição funcional do poder. Nas Constituições seguintes a fórmula consagrada foi a de Montesquieu, com a doutrina tripartite das funções estatais do poder político. O constituinte de 1988 manteve o pórtico, contudo o enunciou de maneira um pouco diferente em relação aos textos constitucionais passados, que prescreviam o jargão "Salvo as exceções previstas nesta Constituição, é vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições; quem for investido na função de um deles não poderá exercer a de outro".
O texto da Constituição de 1988, com efeito, abandonou a fórmula “salvo as exceções previstas nesta Constituição”. A Carta de 1988 consagrava à enunciação dos três poderes a qualificação de “independentes e harmônicos entre si”, expressão posteriormente suprimida, porquanto se estava adotando o sistema parlamentarista de governo, que pressupõe mais colaboração do que independência entre os poderes. Tendo prosperado o presidencialismo, ocorreu de, na Comissão de Redação, como relembra Afonso da Silva (2005, p. 106), o então Deputado Federal Michel Temer sugerir a reinserção da regra da harmonia e independência.
Dessa forma, como sedes materiae do dogma da separação de poderes aparece o artigo 2º da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Da exegese do referido cânone constitucional extrai-se, primeiramente, a adoção da divisão tripartite de poderes, seguindo a lição clássica de Montesquieu. Impende analisar ainda a essência normativa do aposto “independentes e harmônicos entre si”.
A harmonia entre os poderes “verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito” (SILVA, 2015, p. 110).
Por outro lado, a independência de cada Poder:
Delineia-se: pela investidura e permanência das pessoas num dos órgãos do governo, as quais, ao exercer as atribuições que lhes foram conferidas, atuam num raio de competência próprio, sem a ingerência de outros órgãos, com total liberdade, organizando serviços e tomando decisões livremente, sem qualquer interferência alheia, mas permitindo colaboração quando a necessidade o exigir. Em última análise, a independência das funções do poder político, uno e indivisível, exterioriza-se pelo impedimento de uma função se sobrepor à outra, admitidas as exceções participantes dos mecanismos de freios e contrapesos (BULOS, 2014, p. 517).
Nesse diapasão, o artigo 2º da Lex Mater introduz a regra geral da convivência entre os poderes da República, ou seja, uma interação pautada por independência harmônica. Como corolário desse cânone, a fisiologia institucional deve ser pautada pelo respeito e autocontenção de cada poder relativamente à invasão de atribuições dos demais.
Nesse passo, tem-se que a independência harmônica de fato não obsta a existência dos mecanismos dos freios e contrapesos, desde que estabelecidos pela própria Constituição. Enfatize-se: sendo a independência a regra geral, somente a própria Constituição pode pretender relativizá-la, através dos mecanismos de checks and balances consagrados em seu texto (José Afonso da Silva (2005, p. 110-111) cita exemplos do funcionamento desse mecanismo na Constituição, aludindo ao instituto do veto presidencial (art. 66, §1º, CF), à derrubada do veto (art. 66, 4º), à possibilidade de o presidente requerer regime de urgência na tramitação dos projetos que ele apresentar ao parlamento (art. 64, §1º), à possibilidade de os tribunais declararem a inconstitucionalidade de leis (art. 101, §2º, v.g.) e à nomeação de membros de tribunais pelo presidente da República (art. 52, III, a)).
Isso porque o dogma da separação de poderes ocupa lugar de maior eminência na axiologia constitucional, tendo sido, inclusive, gravado com cláusula de intangibilidade pelo constituinte originário, como extrai-se do art. 60, §4º, da Carta da República: “§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) III - a separação dos Poderes”.
Por fim, analisando o paradigma de separação de poderes extraído da experiência brasileira, dele descobrem-se dois corolários, de acordo com o magistério de Barroso (2013, p. 199):
A especialização funcional e a necessidade de independência orgânica de cada um dos poderes em face dos demais. A especialização funcional inclui a titularidade, por cada poder, de determinadas competências privativas. A independência orgânica demanda, na conformação da experiencia presidencialista brasileira atual, três requisitos: (i) uma mesma pessoa não poderá ser membro de mais de um poder ao mesmo tempo, (ii) um poder não pode destituir os integrantes de outro por força de decisão exclusivamente política; e (iii) a cada poder são atribuídas, além de suas funções típicas ou privativas, outras funções (chamadas normalmente de atípicas), como reforço de sua independência frente aos demais poderes.
Bacharel em Direito-UFRRJ e Servidor Público na Defensoria Pública do Rio de Janeiro.