Ativismo Judicial: Evolução, Conceito e Implicações na Separação de Poderes

Por Alberto de Mello - 27/04/2024 as 15:04

A expressão judicial activism foi forjada em 1947 por Arthur Schlesinger Junior, no artigo intitulado The Supreme Court: 1947, publicado na popular revista Fortune. O objetivo do ensaio era retratar o perfil da então composição da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, após as nomeações de sete novos justices pelo presidente Franklin Delano Roosevelt em 1937. 

Para Schlesinger Junior (1947, p. 74), os justices distinguiam-se em dois grupos: os ativistas (activists) e os autocontrolados (self-restrain). Aqueles se caracterizariam por imprimirem nas decisões as suas próprias concepções de bem comum, ao passo que estes últimos buscavam preservar a margem de conformação do legislador (No artigo, Schlesinger introduz a foto de cada um dos magistrados e, abaixo delas, faz uma breve descrição de perfil. Ao comentar o perfil do justice Hugo Black, escreve: “lidera a ala que acredita que a Corte deve intervir ativamente para proteger os indefesos e carentes, ainda que dessa forma se aproxime de uma correção judicial dos erros legislativos” (SCHLESINGER JUNIOR, 1947, p. 75)).

Com efeito, o ensaio de Schlesinger consagrou o uso da expressão “ativismo judicial”, por muito que os casos de abuso judiciário já fossem denunciados muito antes de 1947. Nesse diapasão, obtempera Green (2009, p. 1209, tradução nossa), antes de citar diversos precedentes, que “embora a proeminência do ativismo judicial se deva em grande medida a eventos posteriores a 1947, o termo também traduziu preocupações muito mais antigas que o ensaio de Schlesinger” .

Se é certo que o sentido originalmente emprestado por Schlesinger à expressão “ativismo judicial” seja dúbio (como aduz Green (2009, p. 1208-1209, tradução nossa), “Schlesinger originalmente alegou neutralidade sobre se o ativismo é desejável ou não, mas analistas modernos consideram não haver nada mais óbvio sobre o ativismo do que o fato de que ele é ruim”), a fortiori os acontecimentos posteriores à publicação de seu artigo corroboraram para a fixação e popularização da expressão e para a substantivação de seu significado como crítica à atuação do judiciário. Nesse sentido, ainda de acordo com Green (2009, p. 1208, tradução nossa):

Outro fator que redirecionou a atenção para a terminologia de Schlesinger apareceu sete anos depois: em 1954, Warren substituiu Vinson como presidente da Suprema Corte, e o Tribunal derrubou a segregação racial no processo Brown vs. Board of Education . Desde então, a “atividade” dos tribunais federais no tratamento de questões sociais tem sido uma preocupação dominante. Assim, o que quer que o “ativismo” de Schlesinger tenha significado originalmente, o termo surgiu em um momento oportuno .

Dessa maneira, a oportuna expressão passou a ser empregada negativamente, de molde a comportar três acepções, como leciona Campos (2014, p. 58):

Primeiro, nos casos nos quais os tribunais invalidam a legislação, através do controle de constitucionalidade das leis. Segundo, em casos nos quais os tribunais não seguem ou, às vezes, ignoram seus próprios precedentes. Por fim, para descrever a usurpação das funções legislativas pelos juízes, sob o manto de uma suposta interpretação jurídica, na qual fariam prevalecer suas próprias concepções de justiça, em consideração ao bem-estar social.

Com o avanço do constitucionalismo, consagrando a supremacia da Constituição no âmbito de um ordenamento jurídico (de acordo com Luís Roberto Barroso (2013, p. 106-107, grifos do autor), (...) a supremacia da Constituição é postulado sobre o qual se assenta o próprio direito constitucional contemporâneo, tendo sua origem na experiência americana. (...) A Constituição, portanto, é dotada de superioridade jurídica em relação a todas as normas do sistema e, como consequência, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente se for com ela incompatível. Para assegurar essa supremacia, a ordem jurídica contempla um conjunto de mecanismos conhecidos como jurisdição constitucional, destinados a, pela via judicial, fazer prevalecer os comandos contidos na Constituição”), e com o advento dos mecanismos de controle de constitucionalidade das leis (a possibilidade de o Poder Judiciário negar aplicação a leis que violem a Constituição tem origem no direito norte-americano, precisamente no julgamento do leading case Marbury v. Madison, a qual “foi a primeira decisão na qual a Suprema Corte afirmou seu poder de exercer o controle de constitucionalidade, negando aplicação a leis que, de acordo com sua interpretação, fossem inconstitucionais. Assinale-se, por relevante, que a Constituição não conferia a ela ou a qualquer outro órgão judicial, de modo explícito, competência dessa natureza. (...) Ao expor suas razões, Marshall enunciou os três grandes fundamentos que justificam o controle judicial de constitucionalidade. Em primeiro lugar, a supremacia da Constituição: ‘Todos aqueles que elaboraram constituições escritas encaram-na como a lei fundamental e suprema da nação’. Em segundo lugar, e como consequência natural da premissa estabelecida, afirmou a nulidade da lei que contrarie a Constituição: ‘Um ato do Poder Legislativo contrário à Constituição é nulo’. E, por fim, o ponto mais controvertido de sua decisão, ao afirmar que é o Poder Judiciário o intérprete final da Constituição: ‘É enfaticamente da competência do Poder Judiciário dizer o Direito, o sentido das leis. Se a lei estiver em oposição à constituição a corte terá de determinar qual dessas normas conflitantes regerá a hipótese. E se a constituição é superior a qualquer ato ordinário emanado do legislativo, a constituição, e não o ato ordinário, deve reger o caso ao qual ambos se aplicam’” (BARROSO, 2016, p. 26-28, grifos do autor)), o judicial review fixou-se como instrumento legítimo de garantia da ordem constitucional. Com efeito, hodiernamente o judicial review incorporou-se ao catálogo de instrumentos do checks and balances system (no sistema de civil law, que funciona no Brasil, onde a hipótese de revisão judicial das leis é positivada na Constituição (o próprio legislador constituinte deputou ao judiciário o ministério de denegar aplicação a leis que violassem o texto magno), torna-se ainda mais evidente que o judicial review não tem, prima facie, características de ativismo judicial. Assim, o controle de constitucionalidade das leis incorpora-se ao arsenal de instrumentos do sistema de freios e contrapesos), não configurando, por si mesmo (a revisão judicial não é de per se ativista. O que pode sê-lo é esforço hermenêutico realizado no exame da solução a ser atribuída a cada causa concreta. Em outras palavras, a revisão judicial das leis pode ou não ser exercida de maneira ativista), prática de ativismo judicial. Assim, a primeira acepção do que seria ativismo judicial deve ser afastada como significando exercício legítimo do juízo de conformidade de normas com a ordem constitucional. 

No tocante à observância de precedentes, é preciso ter em conta que o direito norte-americano se inspira na tradição do common law, de modo que as teses fixadas judicialmente devem ser aplicadas aos casos análogos, em cumprimento ao stare decisis (Stare decisis et non quieta movere - "Sê fiel ao que foi decidido". Regra de origem dos Estados adeptos ao common law que obriga os tribunais a seguirem os precedentes judiciais. Tal preceito “expressa a regra da obrigatoriedade de seguir o precedente judicial, praticada pelos tribunais da tradição do common law, e segundo a qual uma questão judicial deve ser decidida da mesma forma que foi decidida uma questão semelhante anterior, privilegiando a uniformização da jurisprudência; essa regra dispõe que a decisão do tribunal superior vincula o tribunal inferior, e que aquele também não pode obedecer ao próprio precedente, a não ser por uma razão extraordinária. No primeiro caso, ocorre a vertical stare decisis: ‘A regra se fundamenta no princípio de que a certeza, a previsibilidade e a estabilidade da lei são os principais objetivos do ordenamento jurídico, porque as pessoas precisam nortear a sua conduta e relacionamentos sob a certeza de que são governadas pelas normas legais’; eficácia do precedente judicial; jurisprudência vinculante” (MELLO, 2009, p, 965-966)).

Nesse sentido, uma vez julgado o precedente paradigma, este torna-se vinculante e fixa a ratio decidendi, de modo que os seus fundamentos devem ser observados em casos análogos, ainda que sem absoluta similitude. 

A dinâmica dos precedentes na tradição do common law é complexa e recheadas de pormenores, porém, em linhas gerais, pode-se afirmar que a quebra de um precedente (overruling) “assemelha-se à revogação de uma lei por outra” (DIDIER, 2008, p. 354) no sistema de civil law. A partir desse paralelo, percebe-se a gravidade de que se reveste o desfazimento de um precedente no sistema norte-americano, de onde se explica o porquê de tais revogações haverem sido interpretadas como ativistas. 

Se no sistema norte-americano “a Corte sempre terá oportunidade para adequar os seus precedentes à alteração da realidade e dos valores sociais” (MARINONI, 2013), não será diferente nos países de tradição do civil law, como o Brasil. Nessa linha, a possibilidade de cancelamento das súmulas vinculantes, que não constituem senão teses paradigma, ilustram como o legislador auriverde achou por bem acolher a possibilidade de revisão dos precedentes judiciais (a Constituição do Brasil assim reza (grifou-se): “Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.”). Dessa forma, tem-se que a atualização de precedentes judiciais não caracteriza, por si mesmo, ativismo judicial.    

Pode derradeiro, a terceira acepção parece ser aquela que melhor traduz a autêntica prática de ativismo judicial. De fato, são malabarismos hermenêuticos que levam os magistrados a criarem verdadeiras regras jurídicas, a pretexto de estarem extraindo significado de princípios ou de um conjunto de normas. Essa terceira faceta de que reclamaram os juristas estado-unidenses parece se conformar com a noção contemporânea de ativismos judicial. Segundo a definição de Barroso (2012, p. 25-26): 

A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: a) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; b) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; c) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.

De fato, o ativismo judicial caracteriza-se pela interferência do Poder Judiciário na esfera de atribuições típicas e exclusivas reservadas pela Constituição aos demais poderes. O instrumento por meio do qual essa operação se manifesta varia amplamente, embora se conserve o núcleo essencial da prática, consistente em dilatar e subverter a tal ponto a margem interpretativa que ela se converte em atividade criadora de direito.

A doutrina que milita em prol do ativismo judicial amiúde o invoca como meio idôneo à garantia e ampliação de direitos fundamentais, à revelia dos poderes eleitos. Todavia, ainda quando pareça endossar uma agenda positiva, com magistrados prima facie bem-intencionados, o ativismo judicial cria ambiente para o abuso e para a insegurança jurídica. Como escreveu o baluarte da separação de poderes, o Barão de Montesquieu, Qui le dirait! La vertu même a besoin des limites.   

E assim o é porque os magistrados verdadeiramente acabam por impor seus pontos de vista a toda coletividade, que, não dispondo de meios de recurso, resta violada em sua liberdade. De fato, a busca por soluções através da via judicial acaba se convertendo em expediente escuso de imposição ideológica, sem o crivo da sociedade.  

A configuração que assume o Poder Judiciário nas constituições de diversos Estados é tal que as suas decisões atraem elevado grau de coerção e baixa possibilidade de resistência, ou seja, as decisões proferidas pelos juízes impõem o imediato manuseio, direto ou indireto, da força física para o seu cumprimento e a possibilidade de resistência a essas decisões, quando há, está condicionada à observância de numerosas e variadas exigências formais. Dessa maneira, quando, verbi gratia, uma Corte Constitucional profere determinada decisão ativista, essa decisão deve ser cumprida, sob as penas da lei, e quase sempre não há possibilidade de resistência, senão pela via legislativa, o que demanda um espaço de tempo tal em que o arbítrio acaba consolidado.

É por tal razão que a função de criar normas, portadora de alto poder de impacto social, está deputada ao Legislativo, onde passa por longo e solene processo de discussão e deliberação, sob a vigilância constante e efetiva do povo – basta imaginar que, ao contrário de um juiz, o representante eleito presta contas diuturnamente aos seus eleitores. 

Na experiência brasileira, o exemplo talvez mais paradigmático da consolidação do regime de autoritarismo judicial foi concretizado no Habeas Corpus (HC) 126.292/SP. A Constituição do Brasil, prestigiando um dos mais elevados marcos civilizatórios, incorporou ao elenco de direitos fundamentais o princípio da presunção da inocência, assim dispondo: “LVII – Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Nada obstante, o Supremo Tribunal Federal (STF), em flagrante violação ao texto expresso da Carta Política, viabilizou a execução da pena privativa de liberdade, ainda que pendentes recursos em ao menos duas instâncias judiciais. Ou seja, os acusados suportam os efeitos da culpa sem que haja sentença irrecorrível. No julgamento da ação, o relator, Ministro Teori Zavascki, em voto vencedor, asseverou que:  

Realmente, a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não-culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual. Não é incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que cabíveis ou pendentes de julgamento de recursos extraordinários, a produção dos efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias ordinárias (O acórdão foi assim ementado: EMENTA: CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado.)

É interessante notar que diversos grupos ideológicos que, no passado, provocaram decisões ativistas junto ao STF e as celebraram (à guisa de exemplo, citem-se a ADPF 54, que viabilizou o aborto de fetos anencefálicos, e a ADI 4.277, que possibilitou a união estável entre pessoas do mesmo sexo), terminaram por lamentar e criticar enfaticamente a decisão ativista proferida no sobredito HC. Nesse cenário, ganha elevado vigor a advertência de Streck, Tassinari e Lepper (2015, p. 59): “o aplauso de hoje do ativismo jurídico pode ter sua antítese amanhã, quando os que hoje festejam se sentem prejudicados”.
Somente em novembro de 2019 o STF, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, redefiniu a decisão quanto à antecipação dos efeitos da condenação, para corretamente impor a observância do trânsito em julgado para o cumprimento de pena (a questão foi decidida pelo Tribunal no bojo das ADCs 43, 44 e 54, que assentou a constitucionalidade do art. 283 do CPP, por decisão proferida em 07/11/2019). A decisão ativista do HC 126.292/SP, no entanto, não passou sem deixar um rastro daninho.

Para se ter a correta dimensão do desastre que pode provocar uma decisão ativista, é preciso ter em conta que a prisão antecipada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em abril de 2018, teve manifesta influência na disputa eleitoral daquele mesmo ano, pois o desenho das alianças político-partidárias e o próprio resultado do pleito poderiam ter sido outros se o petista houvesse participado da eleição. Nesse sentido, deve-se, de igual maneira, reconhecer que referida detenção somente foi possível graças ao entendimento então vigente de que a antecipação dos efeitos da condenação após julgamento em segundo grau de jurisdição era constitucionalmente viável. Assim, uma decisão ativista determinou a sorte do país desde as Eleições Gerais de 2018, sendo, nessa toada, corresponsável pelo resultado do pleito e por suas consequências. 

Evidentemente que não se pode prever o que ocorreria se o entendimento do HC 126.292/SP não estivesse vigendo por ocasião do pleito eleitoral de 2018. O que se pode fazer, não sem razão, é especular que talvez os rumos houvessem sido outros. E o que se pode afirmar é que o ativismo judicial colaborou a para concretização do caminho que foi trilhado. Em suma, o que se teve foi uma decisão ilegítima que determinou a agenda política do país por, pelo menos, meia década.

Assim, qualquer que seja a natureza dos interesses em debate, a prática de ativismo judicial nunca deve ser celebrada. Por mais justa que pareça a demanda, ela deve ser viabilizada pelos meios adequados, em estrita obediência aos preceitos constitucionais, sob pena de se colocarem em xeque os interesses e a liberdade de toda a sociedade (no caso do HC 126.292/SP, a própria liberdade de locomoção foi vulnerada pelo arroubo legislativo do STF).  

Frequentemente, os magistrados sustentam, em sua defesa, que o alto número de demandas aforadas perante as cortes judiciais, versando sobre os mais diversos aspectos da vida em sociedade, reclamam soluções criativas. Mister faz-se, neste ponto, distinguir ativismo judicial do fenômeno da judicialização, conceitos que “(...) são primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas” (BARROSO, 2012, p. 25).