Texto 1
"[...] Os dispositivos que criminalizam o aborto não apenas incidem sobre a raça, como algo que lhe é externo, mas integram um conjunto de fenômenos ligados à estrutura social brasileira, em que raça e sistema penal se constituem mutuamente e determinam as vidas dignas de se proteger e aquelas que se pode deixar morrer. [...] Não por acaso, seguimos os alvos preferenciais de violência obstétrica, ocorrências de morte materna, esterilização forçada e até crimes de feminicídio. A adoção de uma política penal para tratar a temática do aborto reforça esses mecanismos que sujeitam mulheres negras a um regime político de subcidadania. Se reconhecemos então o racismo como esse complexo sistema de práticas sociais, práticas institucionais, valores, crenças, aptos a determinar inclusive iniquidades raciais nas mortes evitáveis pela indução do aborto, o princípio constitucional da igualdade, na sua faceta estrutural, impõe ao Estado brasileiro a obrigação positiva de promover condições de proteção igualitárias a mulheres brancas e não brancas em relação a sua vida no momento de praticar um aborto. Durante o processo de deliberação na Constituinte, em 88, a discussão da questão do aborto pela população brasileira se tornou absolutamente inviável, diante da distribuição de poder que foi estabelecida naquele espaço. O pacto sexual e racial foi entabulado por nada menos que 594 parlamentares homens e brancos, dentre os quais havia apenas 2 deputadas mulheres, uma nica delas negra, a constituinte Benedita da Silva. Quando o direito está a serviço de projetos de discriminação sistemática como vimos ser o caso da criminalização do aborto no Estado Democrático de Direito exsurge a função da Jurisdição Constitucional de assegurar a prevalência dos Direitos Fundamentais dos grupos discriminados. A chancela de uma política penal para o aborto adotada por uma elite política legiferante, branca, heterossexual masculina, muito distante de ser porta-voz de um consenso social, significaria avalizar esse contrato sexual e racial." (LÍVIA MIRANDA MÜLLER DRUMOND CASSERES - DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos. Transcrição da Audiência Pública, ADPF 442, STF).
(http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovo luntriadagravidez.pdf acesso em 12.11.2021)
O trecho transcrito (texto 1) é parte da sustentação oral realizada pela defensora pública do Estado do Rio de Janeiro na audiência pública convocada pela ministra Rosa Weber para debater a interrupção voluntária da gravidez a partir da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442.
Sobre o tema, é correto afirmar que: