A Judicialização e a Vedação ao Non Liquet no Brasil

Por Alberto de Mello - 20/12/2022 as 10:09

Dessa maneira, ao passo que, como exposto alhures, o ativismo consiste em comportamento judicial, a judicialização, por seu turno, “no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política” (BARROSO, 2012, p. 25). De fato, dois fatores concorrem para dar lugar a numerosos recursos ao judiciário, como sejam a abrangência das matérias disciplinadas na Constituição (consoante o escólio de Bulos (2014, p. 116), tal é a característica das Constituições analíticas, como é o caso da atual Carta Política brasileira, que são “amplas, detalhistas, minuciosas e pleonásticas, pois os seus artigos, desdobrados em incisos e alíneas, ordenam-se de modo reiterado em várias partes do texto”) e o arranjo institucional que viabiliza variadas formas provocar o judiciário ((...) Grande parte do motivo da judicialização está também no fato de a Constituição adotar modelo generoso de controle de constitucionalidade por ter como referência o modelo Europeu e o Norte-americano, quer dizer, modelo concentrado e difuso de constitucionalidade, atribuindo grande atuação ao judiciário no que diz respeito à validade normativa (MENDES apud SÁ & BONFIM, 2015. p. 178). Com efeito, a oferta de um desenho institucional que abriga controles concentrado e difuso de constitucionalidade, viabilizados através de diversas ações, inclusive com a possibilidade de atacar omissões do legislador, abre espaço para numerosos e frequentes recursos ao judiciário).

Assim, realmente, o Judiciário, e, no contexto deste estudo, designadamente o Supremo Tribunal Federal, é instado a manifestar-se acerca de diferentes temas, não apenas da política, mas da vida como um todo, e, muita vez, não encontrando respostas na coleção legislativa ou encontrando-as contrárias à ideologia da maioria do colegiado, profere resposta criativa. 

É equivocado concluir que as decisões ativistas se justifiquem em face da crescente provocação do Poder Judiciário. Prelecionou Barroso (2012, p. 25), após invocar uma série de precedentes, que:

É importante assinalar que, em todas as decisões referidas acima, o Supremo Tribunal Federal foi provocado a se manifestar e o fez nos limites dos pedidos formulados. O Tribunal não tinha a alternativa de conhecer ou não as ações, de se pronunciar ou não sobre o seu mérito, uma vez preenchidos os requisitos de cabimento. Não se pode imputar aos Ministros do STF a ambição ou a pretensão, em face dos precedentes referidos, de criar um modelo juriscêntrico, de hegemonia judicial. A judicialização, que de fato existe, não decorreu de uma opção ideológica, filosófica ou metodológica da Corte. Limitou-se ela a cumprir, de modo estrito, o seu papel constitucional, em conformidade com o desenho institucional vigente.

Essa análise, contudo, parece demasiadamente apriorística, considerando que a tese levantada envolve a vedação ao non liquet, reclamando exame mais detido. Nas antigas cortes romanas, de fato:

quando qualquer juiz, após ouvir uma causa, não ficava satisfeito, pois considerava que o caso não havia sido exposto de forma suficientemente clara a ponto de ensejar a pronúncia de um veredito, eles tinham a possibilidade de apontar esse fato colocando as letras “N. L.”, forma abreviada de non liquet (BLACK, 1968, p. 1203, tradução nossa).

Nada obstante, o non liquet é vedado na sistemática do direito brasileiro (para densificar essa conclusão, o magistério da doutrina invoca o preceito do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o art. 140 do Código de Processo Civil e o art. 5º, XXXV, da Constituição da República (KOATZ, 2015, p. 174)), de sorte que não pode o juiz negar-se a decidir a demanda que se lhe apresente. Impende, contudo, não confundir o direito à apreciação da demanda com a obrigatoriedade de que o Judiciário satisfaça toda e qualquer pretensão. Em outras palavras, o Judiciário não viola a proibição ao non liquet quando reconhece que determinado pedido implica na usurpação de atribuições do legislador e, por conseguinte, deixa de provê-lo. Apenas por decidir, de maneira fundamentada, como determina a Constituição do Brasil, que certo provimento atenta contra a separação de poderes, estará o Judiciário pronunciando um veredicto e, portanto, concretizando o direito de acesso satisfativo à tutela jurisdicional. 

O Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, se absteve de conceder pedidos que atentavam contra as atribuições reservadas ao legislador. No julgamento do Agravo Regimental no Mandado de Segurança 25.588-9, que questionava ato do Presidente da Câmara dos Deputados que recusou denúncia por crime de responsabilidade formulada contra o Presidente da República, o relator, Ministro Menezes Direito, explicou, didaticamente, que (grifou-se): “a questão proposta constitui matéria interna corporis, sendo insuscetível de apreciação pelo Poder Judiciário, em virtude do princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da Constituição Federal)” (A decisão foi assim ementada (grifo do autor): “EMENTA. Agravo regimental. Mandado de segurança. Questão interna corporis. Atos do Poder Legislativo. Controle judicial. Precedente da Suprema Corte. 1. A sistemática interna dos procedimentos da Presidência da Câmara dos Deputados para processar os recursos dirigidos ao Plenário daquela Casa não é passível de questionamento perante o Poder Judiciário, inexistente qualquer violação da disciplina constitucional. 2. Agravo regimental desprovido” (STF, MS 25588 AgR, rel. min. Menezes Direito, Tribunal Pleno, j. em 2/4/2009, DJe 22/4/2009), No mesmo sentido, cf.:Ag. Reg. em MS 34.040, Relator Min. Teori Zavasscki, Tribunal Pleno, DJe 17/03/2016; MS 25.144 AgR, Relator Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 28/02/2018; MS 31.951 AgR, Relator Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 31/08/2016, MS 24.356, Relator Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJ 12/09/2003). 

A partir dos precedentes referenciados, tem-se que ou a Suprema Corte está a praticar non liquet (embora, ao sentir deste autor, não se trate de tal hipótese, existe autorizada doutrina a defender a possibilidade de aplicação do non liquet. Nesse sentido, preleciona Koatz (2015, p. 197-198) que: “é possível a prolação de juízos de non liquet, em circunstâncias excepcionais. Com efeito, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional não impõe que tudo, necessariamente, deva ser decidido definitivamente pelo Poder Judiciário. De longa data entende-se, por exemplo, que questões políticas são, via de regra, insuscetíveis de controle judicial. Nem por isso se alega que essa jurisprudência seria incompatível com o princípio da inafastabilidade”) ou, como parece ser o caso, a mera abstenção fundamentada constitui resposta hábil a satisfazer a obrigatoriedade de apreciação judicial, porquanto “deve-se ter em mente (...) que não decidir já é, em si, uma forma de decisão” (KOATZ, 2015, p. 198, grifo do autor).

Não se deve, portanto, invocar oportunisticamente o argumento da vedação ao non liquet para legitimar a prática de ativismo judicial. Com efeito, a Suprema Corte pode e deve, como já muita vez o fez, respeitando a Constituição, decidir não decidindo. Como bem resume Menezes Direito (2003, p. 43, grifo do autor) “o princípio da separação de poderes está na raiz da chamada questão interna corporis, com o que não pode ser ela desprezada pelo rigor com que se deve aplicar o princípio do livre acesso ao Poder Judiciário”.