Num contexto internacional, é possível compreender que as tendências privatizadoras ganharam força ainda durante a década de 80, cujas mudanças dos serviços de água e saneamento foram ordenando um novo perfil de conceber o serviço, a transformação de bem público a bem econômico ou commodity (DOS SANTOS; DOS SANTOS, 2022, p. 2). Este perfil supõe a incorporação de valores e critérios de mercado, materializados em incrementos no montante da tarifa e na priorização da expansão de zonas que garantam a cobrança pelo serviço. Todavia, desde o Século XXI e, mais especificamente a partir de 2010, foi observada uma crise neste modelo neoliberal de governabilidade dos serviços de água e esgoto, de modo que houve tendência significativa da retomada da gestão pública para estes serviços, mais precisamente, 267 casos em 37 países, de acordo com estimativas do Transnacional Institute. (KISHIMOTO; PETITJEAN, 2017 apud DOS SANTOS; DOS SANTOS, 2022, p. 3).
Neste sentido diversas cidades de países na Europa passaram a rever o paradigma privatizador merecendo atenção especial para as cidades de Paris, na França e Berlim, na Alemanha. Nos Estados Unidos, considerado um grande percursor de políticas privatistas na América Latina, há em seu território a majoritária parcela de cidades que mantém a gestão pública da água desde o início do século XX, englobando 86% da população (DOS SANTOS; DOS SANTOS, 2022, p. 4), ao passo em que, através de suas influências neoliberais países latinos como Uruguai e Bolívia tiveram seus serviços privatizados e, desde os anos 2000, lutam contra esse processo, tendo em vista principalmente a insatisfação e mobilização populacional, cujos cidadãos de baixa renda foram os maiores prejudicados, quanto aos serviços prestados pelos operadores privados.
Em junho de 2017, o Transnational Institute, em parceria com organizações europeias, publicou o documento nomeado por “Reclaiming Public Services: how cities and citizens are turning back privatisation” (2017). O documento demonstra através de seus estudos os resultados acerca do movimento de remunicipalização, termo utilizado para designar o retorno da gestão pública à atividade anteriormente privatizada a nível regional ou local, referente aos serviços públicos verificados nos últimos anos. O estudo teve por base inicialmente os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, mas foi ampliado para incluir outras espécies de serviços, considerados como essenciais como energia, mobilidade, habitação, coleta de resíduos sólidos, dentre outros.
Quanto aos serviços de água e esgoto, a pesquisa concluiu que, de 2000 a meados de 2017, ocorreram 267 casos de remunicipalização em cidades localizadas em 33 países e, ainda, que os números de reestatização dos serviços de saneamento entre o período de 2009 a 2017, demonstraram-se 2,3 vezes maiores, quando comparadas ao período anterior, retratando uma nova tendência mundial pós-privatista de remunicipalização (GONÇALVES, 2017, p. 96).
No que tange às condições deste processo de remunicipalização, foi identificado que em 35% dos casos, este processo se deu por rescisão contratual do agente público com o privado, durante seu período de vigência, o que evidencia um dado significativo, tendo em vista que a medida de encerramento de contrato incide ao eventual pagamento de indenizações em face do particular, configurando em medida de solução drástica. Dentre as motivações, apesar de diversas, é possível citar que parte delas se deu pelo fracasso dos operadores privados em relação aos objetivos de expansão e melhoria da qualidade dos serviços. Ademais, dentre as demais motivações estão a mediocridade do desempenho de operadores privados, a desproporção gerada diante da insuficiência de investimento em relação a cobrança de tarifas excessivamente elevadas, os altos custos operacionais e a falta de transparência, o que traz à tona o questionamento quanto aos argumentos utilizados para justificar a desestatização dos serviços quanto à eficiência e economicidade, como argumentos possivelmente falaciosos.
Em Paris, mais especificamente no ano de 2010, foi solicitada pelo poder público a realização de audiências públicas, a fim de apreciar as intensas críticas da população quanto ao serviço prestado pelas empresas Suez e Veolia. Desta forma, ficou averiguado que as tarifas cobradas pelas empresas estavam 25% e 30% superiores aos custos justificados, havendo, ainda, uma significativa diferença entre os valores provisionados para manutenção e os efetivamente realizados. A França, pioneira em privatizações no setor, é o país que contabiliza também o maior número de remunicipalizações dos serviços de água e esgotamento sanitário, pois dos 267 casos contabilizados, 106 ocorreram no país (Transnational Institute, 2014).
A remunicipalização ocorrida na capital francesa significou um marco no processo de desprivatização, uma vez que a cidade é a sede internacional das empresas Suez e Veolia, que são as duas grandes multinacionais do setor, demarcando mais de 150 anos de história e principais protagonistas de privatizações do setor de saneamento básico por todo o mundo, e que eram, também, as concessionárias dos serviços de água e saneamento em Paris desde 1985 (DOS SANTOS; DOS SANTOS, 2022, p. 3).
Já em Berlim, na Alemanha, 49,99% das ações da companhia estatal de saneamento foram alienadas a um consórcio das empresas privadas RWE e Veolia. Apesar da maio parcela das ações ainda pertencerem à estatal, o consórcio passou a exercer o efetivo controle da companhia de saneamento por meio da nomeação dos respectivos dirigentes, sendo resguardados do direito à taxa de lucro de 8% dos investimentos, que deveria ser garantida pelo poder público por 28 anos, conforme informações do Transnational Institute. Como consequência, houve uma drástica diminuição dos investimentos no setor e houve uma elevação substancial das tarifas cobradas dos usuários, promovendo a insatisfação da população local.
Em ambos os casos, o retorno do gerenciamento do setor de saneamento básico para a gestão pública, provocou a redução das tarifas anteriormente cobradas pelos operadores privados e, de uma forma geral, os resultados do estudo demonstraram que essa diminuição dos custos não foi algo restrito à França e a Alemanha, mas refletiu grande parte dos casos, assim como também resultou elevação dos investimentos, melhoria na qualidade dos serviços e a confecção de maior transparência à gestão da atividade (GONÇALVES, 2017, p. 98).