Por Alberto de Mello 20/07/2021 as 11:52
Como é cediço, o ideal de República e o arranjo político-institucional implementados no Brasil a partir do Golpe Militar de 1889 deitam raízes no paradigma estadunidense, considerado à época o mais avançado símbolo de liberdade e modernidade.
Nesse diapasão, o correto magistério de Fausto (2006, p. 249) ensina que a primeira Constituição republicana, datada de 1891, foi inspirada no modelo norte-americano, adotando a República federativa liberal.
O Supremo Tribunal Federal, na esteira dessas importações institucionais, foi inspirado na Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Consoante o escólio de Costa (2006, p. 24), o STF foi criado pelo Decreto 510, de 22 de junho de 1890, o qual estabelecia uma Constituição provisória para o Estado, definindo a composição e as competências da Corte. Essas disposições foram mantidas na Constituição promulgada em fevereiro de 1891.
Se o extinto Supremo Tribunal de Justiça, do regime imperial, ostentava pouca relevância no contexto das instituições políticas, o STF, ao menos em seus primeiros anos, ocupará posição de destaque na República, ainda que suas decisões fossem sistematicamente desrespeitadas.
Ao STF cabia a revisão das decisões tomadas pelas Cortes de Apelação, julgar conflitos entre autoridades judiciais e administrativas, resolver conflitos federativos e, a função mais relevante, avaliar a constitucionalidade de atos dos Poderes Executivo e Legislativo, por muito que “só em caso concreto, isto é, dizer que a lei era inaplicável naquela causa por ser contrária à Constituição. (...) A Justiça não revogava a lei inconstitucional nem a declarava tal em tese erga omnes, como pode fazer hoje” (BALEEIRO, 2012, pp. 31-32).
De acordo com a preleção de Costa (2006, p. 35), “o papel mais importante da instituição nos primeiros cinco anos da República foi a defesa das liberdades civis e o estabelecimento de jurisprudência”. Com efeito, foi na tessitura de sua doutrina do habeas corpus que o Tribunal descobriu o seu poder de jurisdição constitucional.
Com a renúncia de Deodoro da Fonseca e a consequente assunção do vice-presidente, Floriano Peixoto, em 1892, houve grande agitação popular pela convocação de novas eleições. Floriano respondeu decretando estado de sítio e suspendendo garantias constitucionais, em razão do que impôs a prisão de diversos adversários políticos, inclusive senadores, deputados e oficiais militares. Mesmo após a cessação do estado de sítio, as prisões efetuadas subsistiram.
Nesse contexto, o jurista Ruy Barbosa impetrou, perante o Supremo Tribunal Federal, o habeas corpus nº 300, em favor dos presos. Segundo Ruy, a ordem deveria ser concedida porque o estado de sítio não observava as condições previstas na Constituição. Ademais, sustentou que, conquanto fosse constitucional a decretação da medida, seus efeitos deveriam cessar tão logo o estado de sítio terminasse. Por fim, invocava a competência do Tribunal para defender as liberdades civis contra arbítrios do executivo.
Na petição de habeas corpus, Ruy Barbosa (1892, p. 3) assevera:
Agora, porém, cumpre estudar as prisões, que, verificadas sob o estado de sítio, estariam por elle justificadas, si o estado de sitio, na especie, fosse constitucional. E’, pois, a occasião de ventilar si os erros do poder executivo, na observancia das regras constitucionais, que regem a suspensão de garantias, encontram, ou não encontram correctivo na autoridade do Supremo Tribunal Federal. Grave, delicado, novo entre nós, o assumpto obriga a deducções attentas e cautelosas, para as quaes toda a concentração de espirito será pouca. Sob o systema federal, escreve o grande expositor da soberania parlamentar na Inglaterra, confrontando-a com o regimen que acabamos de adoptar, “não succede assim. A supremacia legal da Constituição é imprescindível á existencia do Estado. A gloria dos fundadores dos Estados Unidos consiste em haverem descoberto, ou implantado combinações, sob as quaes a Constituição se tornou não real quão nominalmente o direito supremo do paiz; resultado a que chegaram, adherindo a um principio muito simples, e engenhando um mecanismo adequado para o pôr em acção”. Esse princpio (falla o chaceller Kent) é o de que “todo acto do Congresso, ou das legislaturas de Estados, que de qualquer modo contravierem a Constituição dos Estados Unidos, é necessariamente nullo”. E o órgão activo dessa supremacia é o Supremo Tribunal Federal.
A análise do excerto evidencia o caráter pedagógico das defesas de Ruy Barbosa perante o Tribunal. A República e seus corolários representavam uma novidade para aquela gente; mesmo os membros da magistratura ainda careciam de conhecer o espírito dos cânones republicanos. O ponto mais importante, todavia, é que “Rui procurava firmar a competência do Tribunal para decidir sobre a constitucionalidade dos atos do Poder Executivo” (COSTA, 2006, p. 30).
De fato, todo o esforço consistia em fazer com que o Supremo compreendesse que, segundo a sua própria conformação no contexto da república federativa, amparada em uma Constituição, competia a ele neutralizar os atos que violassem a Lex Mater.
Sem embargos dos esforços envidados por Ruy, o STF denegou a ordem de habeas corpus, sustentando que a atribuição de avaliar o ato decretado pelo presidente da República cabia ao Congresso Nacional, de sorte que escaparia à alçada do Poder Judiciário apreciar a medida. No acórdão, assentou o Tribunal:
Considerando que, pelo art. 80, §3º, combinado com o art. 34, §21 da Constituição, ao Congresso compete privativamente aprovar ou reprovar o estado de sitio declarado pelo Presidente da República, bem assim o exame das medidas excepcionaes, que ele houver tomado, as ques para esse fim lhe serão relatadas com especificação dos motivos em que se fundam; Considerando, portanto, que, antes do juízo político do Congresso, não póde o Poder Judicial apreciar o uso que fez o Presidente da República daquella atribuição constitucional, e que, também, não é da índole do Supremo Tribunal Federal envolver-se nas funções políticas do poder executivo ou legislativo (BARBOSA, 1892, p. 268).
Seis anos mais tarde, contudo, em 1898, o Tribunal inverteu o seu entendimento. Acolhendo habeas corpus impetrado pelo mesmo Ruy Barbosa, o STF reconheceu “a sua competência originária para julgar os pedidos de habeas corpus” (COSTA, 2006, p. 31). O Tribunal começava a situar-se como guardião dos direitos constitucionais do cidadão.
O manejo reiterado do remédio do habeas corpus, para tutelar não apenas o direito de locomoção como também outras sortes de direitos constitucionais do cidadão, estabeleceu o que, segundo Boechat (1991, p. 29), ficou conhecido como a Doutrina Brasileira do Habeas Corpus.
Paulatinamente, o Supremo foi conquistando o lugar de guardião da Constituição. De acordo com nota histórica de Costa (2006, p. 34), em 1895 o STF “anulou ato do Executivo que demitira um substituto efetivo da Escola Militar”, ratificando o “direito do Supremo de examinar a constitucionalidade dos atos do Executivo e garantir a supremacia da Constituição”.
Esse relativo protagonismo assumido pelo STF durante os primeiros anos da República, no entanto, teria vida ligeira. Com raras exceções em casos pontuais, a Corte manteria atuação tímida e até condescendente durante as décadas seguintes, o que, em parte, pode ser creditado à sucessão de rupturas institucionais por que o país atravessou.
Bacharel em Direito-UFRRJ e Servidor Público na Defensoria Pública do Rio de Janeiro.