Examinar o crime de infanticídio sob o viés sociológico impõe analisar o Código Penal vigente como um de seus objetos, já que a análise sociológica não guarda semelhança com o discurso jurídico em que parâmetros relacionados à análise da conduta, configuração da tentativa, dolo e suas espécies, atenuantes, agravantes, causas de aumento ou diminuição de pena não cabem aqui.
No entanto, a análise sociológica é bem mais ampla e não impõe fronteiras, já que a natureza humana e suas opressões são os maiores objetos de análise. Nesse caso, ainda que existam diversos ordenamentos jurídicos que punam de forma muito semelhante ao Direito Penal brasileiro, serão apenas citados, a fim de que possa se extrair das culturas não tão distintas à brasileira (processo de colonização, desigualdade social acentuada, patriarcalismo, Igreja intimamente afeta às questões do Estado por longo período), a problemática aqui trazida pode ser muito semelhante a outras sociedades. A análise, portanto, do crime de infanticídio no Brasil será o recorte de pesquisa, momento em que o Direito e todas as leis subjacentes se constituirão em um dos objetos de pesquisa, relativamente, ao aparelho estatal repressor apto a coibir aquela espécie de conduta, que erige ao patamar de conduta criminosa.
É muito comum afirmações no sentido de que o crime de infanticídio e o crime de homicídio são os mais antigos da humanidade, já que comprovação bíblica do infanticídio existiria na Bíblia, em Gênesis, segundo o qual Abraão iria matar o próprio filho Isaque e fora impedido por um anjo, já que Deus comprovara sua devoção. Da mesma forma, haveria comprovação desse crime na Lei das XII Tábuas (tábua 4ª), quando o pai estaria autorizado a matar o próprio filho que padecesse de deformidade física ou mental. Na Antiguidade, também há registros do crime de infanticídio ao serem citados os crimes em que o pai era autorizado a cometer contra seu próprio filho, nas hipóteses de deformidade ou pela frustração em não ter um filho (varão), ou por insuficiência de recursos materiais que garantam à subsistência, não raro, adotando-se os mesmos critérios os soldados e outras autoridades em cumprimento à ordem superior de um monarca, imperador, ditador.
Importante apresentar essas definições de crime de infanticídio para apresentar que não serão essas formas de condutas incriminadas as que serão aqui examinadas porque o crime de infanticídio, desde o primeiro Código Penal brasileiro- 1830, e os demais (1890, 1940 vigente após reformas), nunca adotou essa forma de incriminar condutas, já que considera o crime de infanticídio o praticado pela mãe contra seu filho em estado puerperal durante, ou logo após o parto (artigo 123 CP).
Embora o critério vigente para aferir a prática do crime seja a ocorrência do estado puerperal, houve códigos penais em que a “desonra própria” era considerada como motivo para a prática do crime pela mãe parturiente.
O que o discurso jurídico oculta? Esse será o objeto principal da análise, ponto central da análise sociológica, que será abaixo exposto:
A primeira análise, que não raro se faz presente no Brasil que assume como um dos pontos centrais o maior compromisso de ser “Estado Democrático Brasileiro” é o não exercício da democracia, já que leis são editadas sem qualquer consulta popular, plebiscitos são raríssimos, e nessa retórica oculta-se a verticalidade do discurso punindo severamente pessoas estigmatizadas pela desigualdade social, credo ou raça.
Não se discute que os números de crimes de infanticídio, comparados a outros crimes intencionais contra à vida humana, são de estatística baixa, mas nem por isso o objeto de estudo sociológico perde sua importância, já que há fatores importantes a serem discutidos nessa espécie de debate.
Nesse tópico, a título de ilustração, destaque-se a estatística colhida no Conselho Nacional de Justiça- CNJ, sendo ali apontados que nos anos de 2016 a 2019, o número de novos casos anuais de infanticídio que ingressaram na Justiça havia subido de 165 casos em 2016 para 1.723 em 2019. Fatores intrínsecos à coleta desses dados também não constitui objeto de pesquisa, já que a sua menção se esgota para, tão-somente, corroborar a importância da análise sociológica, ainda que a estatística dos crimes de infanticídio seja considerada baixa.
O crime de infanticídio no atual Código Penal, bem como nos anteriores, confirma a cultura de opressão e estigma no sistema penal brasileiro contra as mulheres. A sanha punitivista é clara e o discurso é invertido para que a sociedade acredite que a suposta “malfeitora”, que “a mãe desnaturada e perversa” merece a punição de 02 a 06 anos de pena reclusiva por ter matado o filho, o próprio filho, em estado puerperal, durante ou logo após o parto. Percebe-se que o pleonasmo utilizado- “o próprio filho”, impõe caráter interpretativo tendencioso à sanha punitivista opressora ao gênero mulher. Deve-se ressaltar a Exposição de Motivos da parte especial do Código Penal- DL 2848, de 07/12/1940: 40. O infanticídio é considerado um delictum exceptum quando praticado pela parturiente sob a influência do estado puerperal. Esta cláusula, como é óbvio, não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica: é preciso que fique averiguado ter esta realmente sobrevindo em conseqüência daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de auto-inibição da parturiente. Fora daí, não há por que distinguir entre infanticídio e homicídio. Ainda quando ocorra a honoris causa (considerada pela lei vigente como razão de especial abrandamento da pena), a pena aplicável é a de homicídio.
As relações de poder subjacentes ao tipo penal em exame revelam o interesse em manter o mesmo modelo patriarcal e as mesmas opressões às mulheres, que por muitas décadas, foram naturalizadas na sociedade brasileira.
O apelo midiático reforça a suposta legitimidade do discurso penal, autoritário, opressor e discriminatório, ao não admitir a condição emocional, física e psíquica da genitora como causa absolutamente suficiente para não incriminar a conduta!
O interesse estatal em incutir a figura materna como figura santa, ou às vias de uma pseudo santificação, singela, serena e com amor infinito ao gerar uma vida humana em seu próprio ventre jamais poderia se coadunar com tamanha monstruosidade, que seria ceifar um pequeno ser, ainda que sob o denominado “estado puerperal”. O Estado utiliza seu braço repressor para expurgar da sociedade as “genitoras criminosas” que foram agraciadas com o dom de dar à luz, com o pesado fardo de uma punição criminal rígida, e seu processo criminal antecedente não menos cruel. A sociedade brasileira, ou os que elaboraram a norma, são os que não toleram a alegação do estado puerperal como motivo justificante para a não incriminação desse delito?
Seria razoável conceber, numa visão de sistema, que o mesmo diploma repressivo, que usualmente é idealizado para ser utilizado como a “última ratio”, preveja esse crime como um dos que o Estado deve se desincumbir em processar e condenar, se confirmada a realização da conduta indesejada, quando esse mesmo diploma normativo prevê que em todos os crimes, desde a parte especial do referido Código, alcançando todas as leis especiais (todo o ordenamento jurídico penal),não haverá crime se o sujeito ativo comprovar que o praticou, por exemplo, quando comprovado estar alcoolizado ou que tenha suprimido sua consciência por substâncias entorpecentes, desde que comprovado o motivo de força maior ou caso fortuito ( artigo 28 do CPenal vigente), isto é, desde que comprovado que o agente, deliberadamente, não se colocou naqueles estados anímicos, o que é absolutamente razoável e justo não serem aplicadas penas, ainda que crimes gravíssimos tenham sido praticados por pessoas nessas condições.
E o que dizer das mulheres que praticaram crime de infanticídio? O estado puerperal é idealizado, é controlado, é previsto? Qual distinção do estado puerperal, que acomete algumas parturientes durante ou logo após o parto, com o estado etílico ou entorpecida de pessoas que se encontram nessas condições por força de um atuar externo?
Não há distinção entre os dois casos, mas, não restam dúvidas que o alcoolismo, na redação primitiva do Código Penal, e a substância entorpecente, por força da interpretação dos Tribunais, hoje considerada pacífica, pretendeu alcançar o gênero masculino. Ainda que subjacente se conclua dessa forma, fato é que não há distinção para que, também, sejam alcançadas mulheres nessas condições.
E o estado puerperal? O estado puerperal, que não deve ser confundido com puerpério, que é inato a qualquer gestante, acomete em torno de 10 a 15 % das puérperas e os sintomas associados incluem perturbação do apetite, do sono, decréscimo de energia, sentimento de desvalia ou culpa excessiva, pensamentos recorrentes de morte, rejeição do bebê, até culminar com atos mais graves contra o neonato, o qual seria configurado o crime de infanticídio. A opressão é clara quando se percebe que não há qualquer interesse estatal, qualquer projeto de lei, qualquer movimento social ou bandeira feminista que critique a inversão de valores que ultrapassa as legislações, com sutileza, decorrendo décadas de novas conquistas de gênero com a abominável e cruel incriminação contra a mulher parturiente, segundo o crime de infanticídio da legislação brasileira.
A título de registro histórico, importante citar que os primeiro e segundo Códigos Penais brasileiros previam a conduta da “infanticida” motivada para ocultar “a própria desonra”, a fim de reafirmar a condição de pessoa excluída da sociedade dominante de homens, cujas regras eram traçadas por eles e para eles. Não havia espaço público para as mulheres que, diante do estágio de evolução social daquele período histórico, não havia muita força para a irresignação feminina. Assim, nos Códigos de 1830 havia pena de reclusão de até 12 anos, e no Código de 1890 penas que chegavam ao limite de 24 anos de reclusão!
O estado puerperal foi novidade trazida no Código Penal de 1940, que ainda vige, já que sobreviveu às reformas penais, e ainda é aplicado em tempos atuais. O critério impõe a comprovação biológica e psíquica, próprios do denominado estado puerperal, aferível por perícia médica, que, à primeira vista, se concluí como uma conquista feminina... Conquista?
Não foi conquista, não foi emancipação e muito menos a idealizada igualdade de gêneros na política, no fruto da política, que são as Leis. Ao contrário, houve retrocesso porque se nos Códigos anteriores bastasse comprovar a “desonra”, sem comprovar o “estado puerperal”, aqui a desonra dissociada desse estado anímico não impõe a configuração do crime de infanticídio (como era), mas crime de homicídio, cujas penas são duas ou três vezes maiores, quando, não raro, configurando, também, a qualidade de crime hediondo!
O discurso feminista passa a largo dessa abordagem, a produção dos Tribunais é completamente dissociada dos seus próprios termos, já que se reconhece o estado puerperal e se pune, com certeza de que se faz Justiça diante do direito positivo vigente no país, quando não se atenta que o requisito basilar é ter consciência e vontade para a prática de qualquer delito! Nesse caso, a mulher parturiente não tem consciência e sua vontade é completamente viciada!
Punir a mulher, nessas condições, interessa a quais atores? O que se quer preservar nessa insensatez autoritária? Qual viés religioso que se oculta no discurso jurídico-legal?
Para finalizar, citem-se os sistemas penais da Bolívia, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, Guatemala, Nicarágua, Peru, República Dominicana, Uruguai, Argentina, El Salvador, Costa Rica, Cuba, México, Panamá, Paraguai, Venezuela, Alemanha, França, Espanha, Itália e Portugal, na mesma esteira que caminha e se perpetua a legislação penal brasileira: em silêncio, observando todas as conquistas sociais das mulheres em diversos setores produtivos do país, mas firme na sanha punitivista de embasamento legal apócrifo, discriminatório e opressivo.
Ressalte-se, por fim, que quem pratica uma conduta em estado puerperal não tem vontade livre e consciente, mas, sobretudo, está doente e não pode sofrer a repressão estatal e o estigma de criminosa!