Jurisprudência sobre Provas Ilícitas: O Acesso aos Aplicativos de Conversa pela Polícia

No dia 18 de março de 2014, a Polícia Militar, por meio de denúncia anônima, recebeu a informação de que um sujeito receberia uma encomenda repleta de entorpecentes; com isso, os policiais fizeram a abordagem no momento da entrega dessas substâncias ilícitas e ele foi detido em Rondônia, suspeito de tráfico de drogas e associação para o tráfico, violando as regras dos artigos 33 e 35 da Lei 11.343/06, respectivamente.

No intuito de se realizar uma investigação mais profunda, e até buscar outros envolvidos no caso, o delegado encaminhou o celular do indivíduo para a perícia imediatamente, como preceitua o artigo 6º, incisos II, III e VII do Código de Processo Penal.

Entretanto, a conduta do delegado chamou a atenção da defesa: o envio do dispositivo eletrônico foi feito sem autorização judicial. Com isso, os defensores viram a oportunidade perfeita de invalidação das provas que pudessem ser obtidas na coleta do conteúdo do aparelho.

Diante dos argumentos feitos pela defesa, o Ministério Público se posicionou de maneira diversa, indicando que o acesso aos dados dos aparelhos eletrônicos não encontravam respaldo legal como aqueles obtidos por meio de interceptação telefônica e que, por isso, os policiais agiram de acordo com a lei, sendo a tese que prevaleceu mediante a Justiça do Estado de Rondônia.

A defesa então recorreu para o STJ que se manifestou favoravelmente à esta. A decisão do ministro relator foi no sentido de que as conversas pelos aplicativos de mensagens instantâneas (no caso, o WhatsApp), estariam protegidas pelo sigilo que se dá aos e-mails, pois, assim como acontece no correio eletrônico, as conversas nestes aplicativos são feitas por meio de comunicação imediata entre remetente e destinatário e, por isso, necessitariam de autorização judicial para serem interceptadas. Por isso, todos os dados obtidos sem ordem necessária seriam considerados como prova ilícita.

Cumpre citar alguns trechos do HC 51.531 que diz respeito ao caso narrado acima:

Na perícia realizada, houve acesso aos dados do celular e às conversas de whatsapp obtidos sem ordem judicial. No acesso aos dados do aparelho, tem-se devassa de dados particulares, com violação à intimidade do agente. Embora possível o acesso, necessária é a prévia autorização judicial devidamente motivada.
(...)
Nas conversas mantidas pelo programa whatsapp, que é forma de comunicação escrita, imediata, entre interlocutores, tem-se efetiva interceptação inautorizada de comunicações. É situação similar às conversas mantidas por e-mail, onde para o acesso tem-se igualmente exigido a prévia ordem judicial.
(...)
Atualmente, o celular deixou de ser apenas um instrumento de conversação pela voz à longa distância, permitindo, diante do avanço tecnológico, o acesso de múltiplas funções, incluindo, no caso, a verificação da correspondência eletrônica, de mensagens e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional. Deste modo, ilícita é tanto a devassa de dados, como das conversas de whatsapp obtidos de celular apreendido, porquanto realizada sem ordem judicial. Ante o exposto, voto por dar provimento ao recurso ordinário em habeas corpus, para declarar a nulidade das provas obtidas no celular do paciente sem autorização judicial, cujo produto deve ser desentranhado dos autos.
(STJ - RHC: 51531 RO 2014/0232367-7, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 19/04/2016, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/05/2016).
 

Ainda neste sentido, vale mencionar decisão similar à destacada acima:

Pondera que a quebra do sigilo telefônico exige prévia autorização judicial, tendo a autoridade policial praticado flagrante ilegalidade ao ter acessado o teor de mensagens de"whatsapp"armazenadas no aparelho de celular de sua propriedade apreendido quando de sua prisão em flagrante.
(...)
Além disso, somente é admitida a quebra do sigilo quando houve indício razoável da autoria ou participação em infração penal; se a prova não puder ser obtida por outro meio disponível, em atendimento ao princípio da proibição de excesso; e se o fato investigado constituir infração penal punida com pena de reclusão.
(...)
In casu, verifica-se que os agentes policiais, ao ingressarem no domicílio do corréu, apreenderam os aparelhos de celular de ambos do acusados e, em ato contínuo, extraíram o conteúdo de mensagens trocadas através do aplicativo whatsapp , sem prévia autorização judicial, que comprovariam a prática do crime de tráfico de entorpecentes pelo ora recorrente. 
Embora seja despicienda ordem judicial para a apreensão dos celulares, pois os réus encontravam-se em situação de flagrância, as mensagens armazenadas no aparelho estão protegidas pelo sigilo telefônico, que deve abranger igualmente a transmissão, recepção ou emissão de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, por meio de telefonia fixa ou móvel ou, ainda, através de sistemas de informática e telemática. Em verdade, deveria a autoridade policial, após a apreensão do telefone, ter requerido judicialmente a quebra do sigilo dos dados nele armazenados, de modo a proteger tanto o direito individual à intimidade quanto o direito difuso à segurança pública. 
 (...)
A situação de flagrância não admite, nessas ocasiões, a violação aos dados presentes nesses dispositivos, os quais atualmente armazenam informações íntimas que são resguardadas pela Constituição Federal. 
(...)
(STJ - RHC: 67379 RN 2016/0018607-3, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 20/10/2016, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/11/2016).

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Análise Crítica do Acesso aos Aplicativos de Conversa pela Polícia

Em uma situação de flagrância, a autoridade policial deverá ter cautela ao seguir aquilo que se defende no artigo 6º do Código de Processo Penal, ou seja, ao se deparar com objetos apreendidos, os policiais devem, primeiramente, averiguar se é viável o encaminhamento destes para a perícia, uma vez que pode-se estar diante de provas de conteúdos protegidos constitucionalmente.

O que se procura esclarecer é que, ao se deparar com aparelhos eletrônicos que armazenam aplicativos de conversas instantâneas, as autoridades não podem simplesmente encaminhá-los à perícia, como preceitua o Código de Processo Penal. Nestes casos específicos, deve haver uma ordem judicial para isso, pois a coleta de dados destes aparelhos viola a proteção à intimidade de seu detentor e de terceiros. Por isso, não basta o flagrante para que se possa ter a quebra de sigilo dos conteúdos, havendo, neste caso, violação aos princípios constitucionais.

A ordem judicial para determinar a interceptação telefônica deve ser fundamentada, isto é, não basta que haja uma simples autorização para isso; só deve existir a quebra do sigilo quando houverem indícios plausíveis acerca da autoria ou participação na infração penal ou se a prova não puder ser obtida de outra forma.

Neste sentido, os aplicativos de comunicações instantâneas ganharam a mesma proteção constitucional dada às mensagens trocadas por e-mail – artigo 5º, XII da Constituição Federal – tendo em vista suas características similares: são conversas realizadas de maneira escrita e em tempo real entre destinatário e remetente. 

Por isso, em decorrência da inviolabilidade do sigilo das mensagens contidas em aparelhos eletrônicos, o conteúdo obtido, sem autorização judicial, pode ser enquadrado no conceito de prova ilícita, podendo ser anuladas do processo penal.

Cumpre observar que nenhum direito ou garantia são absolutos e, de acordo com o caso concreto, a prova ilícita poderá ser utilizada em situações excepcionais, devendo ser observado o princípio da proporcionalidade/razoabilidade, na medida em que, muitas vezes, a espera para uma ordem judicial poderá acarretar na perda de elementos significantes para a persecução penal.

A conclusão que se faz, portanto, é que as provas ilícitas só podem ser usadas em determinados momentos no processo, quando, por exemplo, está-se diante de um estado de necessidade, é necessário comprovar a legítima defesa ou quando o réu só consegue comprovar sua inocência através daquela prova ilegítima, obedecendo – sempre – a razoabilidade e proporcionalidade na obtenção desta evidência.
Se o sujeito é preso em flagrante, suspeito de tráfico de drogas, o uso dessas informações não irá beneficiá-lo, pelo contrário; o encontro de elementos comprometedores, tanto deste indivíduo, quanto de terceiros, não fazem parte dos fundamentos necessários para o uso dessas provas, que só poderão ser usadas como forma de beneficiar, e nunca incriminar, o réu.

Sendo assim, aquilo que se extrai da análise de um dispositivo eletrônico de uma pessoa presa em flagrante, sem autorização judicial, não poderá ser usado no processo, uma vez que poderão existir informações desfavoráveis a ela e o uso de uma prova ilícita não abrange a hipótese de seu emprego em prejuízo do acusado, somente a seu favor.