Na Bolívia, segundo país do cone sul a tomar iniciativas neoliberais, ocorreu, em 1985, uma mudança estrutural no país para que houvesse menor intervenção estatal e maior liberdade do mercado no Governo de Victor Paz Estenssoro, o primeiro governo democrático constituído após 20 anos de ditadura militar no país. O principal objetivo era pautado na reestruturação do Estado boliviano que passava por uma grave crive pós ditadura militar, buscando promover a liberalização econômica e a consolidação de uma democracia liberal (DRUMOND, 2015). E foi no país, precisamente na cidade de Cochabamba, que ocorreu um dos processos mais reconhecidos nas lutas contra a privatização do saneamento básico de água e esgoto, intitulado por “guerra da água”, no ano 2000 (DOS SANTOS; DOS SANTOS, 2022, p. 5).
Em suma, tratava-se de uma questão de sobrevivência, pois havia grande escassez de água na região, tanto provocada por fatores históricos e naturais, quanto pelo agravamento devido à falta de infraestrutura, derivada dos baixos investimentos públicos para a resolução do problema que afetava mais precisamente a população que não possuía recursos para investir na extração de água de profundidade e que sofriam com a baixa disponibilidade de água de superfície (DRUMOND, 2015, p. 191). Com a privatização da SEMAPA, tornou-se mais evidente a irresponsabilidade do público e a fatídica necessidade de lucro dos investidores e empresários do Consorcio Aguas Del Tunari que optaram por atribuir parcelas expressivas dos serviços à população em estado de penúria. Com a Lei 2.029, as comunidades tiveram suas infraestruturas de irrigação confiscadas afetando mais de 10 mil habitantes, o que gerou a perda do controle da comunidade sobre os seus recursos, e sobretudo, a perda do direito aos seu usos e costumes, previstos pelo direito consuetudinário, havendo total desconsideração das práticas, propriedades e da cultura dessas comunidades denominadas “regantes” no processo de regulação e gestão da água em Cochabamba, assim como também passaria ao controle do consórcio os poços particulares e/ou coletivos, nas áreas pobres urbanas (DRUMOND, 2015, p. 196).
Após anos negligenciados e marginalizados, expostos a diversos problemas sanitários, no ano de 2000, os moradores da cidade foram surpreendidos com acréscimo das taxas dos serviços em 35%, justificadas para melhorias necessárias no sistema e para o pagamento das dívidas acumuladas. Ademais, a Federação dos Trabalhadores Fabris, sede da Coordinadora de Defensa del Agua y la Vida recebeu mais de 200 denúncias de cobranças abusiva das taxas em que, após uma revisão detalhada destes casos, apontou uma média de 200% de aumento nos preços (VARGAS and KRUSE, 2000, p. 12 apud DRUMOND, 2015, p. 196).
A Coordinadora, logo que o Consórcio anunciou que estes aumentos das taxas seriam cobrados dos usuários, anunciou a sua primeira atividade convocando o “Manifiesto a Cochabamba” que dizia, de forma traduzida que “Direitos não se imploram. Direitos são conquistados. Ninguém vai lutar pelo que é nosso, ou lutamos juntos pelo que é justo ou toleramos a humilhação dos maus governantes”. Dentre outras ações, foi organizado o bloqueio de duas principais rodovias de acesso à cidade, interrompendo o transporte de cargas e de pessoas, seja com carregamento de alimentos ou quaisquer outros itens que chegavam diariamente. O aeroporto foi fechado e as ruas foram interrompidas com barricadas formadas por árvores e pedras. Durante três dias, milhares de cochabambinos ocuparam a praça central.
A partir disso, o governo departamental e a Coordinadora decidiram negociar as soluções para a crise a fim de encerrar os conflitos, que restaram esgotadas após diversas tentativas fracassadas. Assim, novas mobilizações continuaram ocorrendo e a cada ação, o governo passou a reprimir com maior violência, utilizando a brutalidade policial. Com novas ondas de revolta surgindo e a ausência de soluções por parte do Governo, Hugo Banzer decretou estado de sítio e os membros da Coordinadora que faziam parte das negociações foram presos. A revolta se tornou ainda maior, momento em que os moradores ocuparam a Plaza de las Armas, sob o enfrentamento da polícia, acarretando na morte de um jovem, Victor Hugo Daza. Assim, os meios de comunicação também acabaram se tornando meios de convocação da população que informavam e pediam alimentos e assistências às pessoas que lutavam nas ruas. Aproximadamente 60 mil pessoas ocuparam as ruas de Cochabamba. Em 10 de abril de 2000, o prefeito da cidade convocou uma coletiva revogando o contrato com Aguas Del Tunarie e designando a Coordinadora como responsável pela administração do sistema de abastecimento de água. Por fim, a população finalmente alcançou os seus objetivos quando o Governo de Reyes Villa e Hugo Banzer revogou o consórcio e expulsou os acionistas do consórcio do país, retornando para os cochabambinos a gestão de abastecimento de água na cidade.
Este episódio, acima de tudo, traz à tona o questionamento da disposição da água como mercadoria, e da capacidade das operadoras privadas em se absterem de seus lucros em prol dos direitos e necessidades sociais quando confrontados com a necessidade mercantil das empresas privadas.