Adoção do Recall no Brasil

Por Eliomar Júnior - 25/09/2020 as 13:25

Neste artigo da série sobre democracia, vamos analisar o instituto do recall (revogar) tendo como parâmetro o modelo americano.

Inicialmente, é indispensável esclarecer que não se deve confundir o recall em estudo, com o recall previsto no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), dado que os institutos tratam de assuntos e sistemáticas com objetivos completamente distintos. Sendo, por vezes, ambos confundidos, tendo em vista que escrita, pronúncia e origem de ambos os institutos serem iguais.

Possibilidade de implementação no Brasil

A possibilidade de implementação no Brasil do instituto do recall (revogar) não é novidade no transcorrer da nossa história democrática, principalmente por termos tido (em apenas trinta e um anos de Constituição) dois processos de impeachment de ex-presidentes da República, bem como pela constante instabilidade política presente no país.

Sendo assim, constantemente são vistas propostas no sentido de se importar do direito norte-americano a ideia de revogação de mandatos, sobretudo os eletivos. Todos aqueles que se interessam minimamente pelo debate político já se deparam com o tema, ainda que de maneira breve, sem conhecer a fundo como funciona em âmbito americano ou como, possivelmente, seria adotado no Brasil. Políticos, imprensa, entidades de classe, eleitores (dentre outras categorias) não raro se defrontaram com a questão e buscam elucidar o tema.

No que tange a doutrina pátria sobre o tema, faz-se necessário citar a obra “O Referendo” de Adrian Sgarbi (1999). O livro trata a respeito de experiências de deliberação popular pela via direta, sem intermediação parlamentar, ao redor do mundo, minuciando as mais diversas formas de participação política nos vários modelos de democracia participativa. 

Com relação às abordagens de cunho político, não é raro se deparar com propostas de mudanças constitucionais neste sentido. Exemplo disso foi a Proposta de Emenda Constitucional 73/2005 apresentada pelo ex-deputado e senador Eduardo Suplicy (PT/SP). Na época o país era presidido pelo também petista Luiz Inácio Lula da Silva. O ex-senador era entusiasta da adoção do recall para os cargos de Presidente, Senador e Deputado Federal. Para ele:

A soberania popular não pode jamais ser alienada ou transferida, sob pena de desaparecer. Os chamados representantes do povo não recebem, ainda que minimamente, parcelas do poder político supremo, mas exercem suas atribuições como delegados do povo soberano, perante o qual devem prestar contas de sua gestão. (SENADO, 2013)

O petista alertou ainda, à época, a necessidade de se debater tal questão, haja vista estar intimamente relacionada à ideia democracia participativa estabelecida em nossa Constituição (SENADO, 2013):

Essa proposta, que de há muito já deveria ter sido considerada, dá mais força ao povo, para que, de forma organizada, possa cobrar de seus representantes o cumprimento das promessas de campanha, pois caso não o façam, a sociedade tem o direito de pedir de volta os mandatos, para concedê-los a novos representantes políticos, mais sintonizados com a vontade popular.

Além disso, não raro os candidatos apresentam ainda em suas campanhas eleitorais a necessidade e a busca, caso eleitos, para adesão do recall. É o caso, por exemplo, do vislumbrado no plano de governo da candidata à Presidência da República Vera Lúcia do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU), conforme veiculado pela imprensa durante a última corrida eleitoral (G1, 2018).

Mais recentemente, a classe política se deparou novamente com a questão, através de Proposta de Emenda Constitucional 21/2015 (de relatoria de Antônio Anastasia - PSDB/MG). Em maio de 2019 a questão achava-se em grande evidência (ONOFRE, 2019). O governo encontrava grande desgaste perante o Congresso Nacional, haja vista as tentativas, nos primeiros meses de gestão, de aprovar as reformas que julgava necessárias para um bom governo e, sobretudo, retomada do crescimento econômico. Congressistas estavam preocupados com crise política instaurada, não só dentro do governo, mas também nas relações entre Congresso e Planalto. O que causava apreensão perante a sociedade brasileira e investidores.

Adiante, serão apresentadas as perspectivas para adoção nos entes possuidores de autonomia federativa, bem como os respetivos desafios a se enfrentarem na República Federativa do Brasil.

Adoção em âmbito nacional

Com o advento da Constituição de 1988, instaurou-se no Brasil uma federação em que existem membros como entes político-administrativos autônomos. Esses entes são União, Estados, Municípios e Distrito Federal, sendo este último possuidor, ora de características estaduais, ora de características municipais. Costuma-se dizer que o Brasil adotou um federalismo tridimensional (federalismo de terceiro grau). Ao possuírem essas características, tais membros devem dispor de suas respectivas normas regulamentadoras, obedecendo aquilo que está permitido e não-proibido pela Constituição Federal. 

Assim sendo, para que haja a admissão do recall no Brasil, será necessário, primeiramente, mudanças em nossa Constituição da República Federativa do Brasil e posteriormente nas constituições dos Estados e leis orgânicas dos Municípios. Tais mudanças deveriam acontecer principalmente no CAPÍTULO IV, denominado DOS DIREITOS POLÍTICOS, da Constituição Federal.

Nossa constituição definiu expressamente três mecanismos de participação popular direta: plebiscito, referendo e iniciativa popular de lei. Tais mecanismo encontram-se previstos no Artigo 14 da Constituição Federal, que assim estabelece:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I - plebiscito;

II - referendo;

III - iniciativa popular.

O legislador ordinário cuidou de regulamentar tais institutos, que constam no artigo transcrito acima, através da Lei 9709/1998, definindo o que são cada um desses institutos, em seus artigos 2º e 13º transcritos a seguir:

Art. 2o Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa.

§ 1o O plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido.

§ 2o O referendo é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição.

Art. 13. A iniciativa popular consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

Em que pese tais previsões de índole constitucional, os institutos foram pouquíssimos utilizados no transcorrer das últimas décadas de regime democrático. Apenas um plebiscito fora realizado até aqui, em 1993 o povo se dirigiu as urnas para decidir a forma de governo (monarquia parlamentar x república) e o sistema de governo (parlamentarismo x presidencialismo) a serem adotados no Brasil. Já quanto ao referendo só foi realizado um em 2005; à época existia grandes dúvidas quanto a proibição do comércio de armas de fogo e munição. Iniciativas populares de lei, apesar de mais comuns, foram raras as vezes que se chegou a atingir os requisitos estabelecidos para que a iniciativa fosse admitida perante o Congresso Nacional, e em muitos casos tiveram seus respectivos textos iniciais alterados sensivelmente pelos congressistas. Em poucos mais de 31 anos de constituição, apenas quatro projetos foram devidamente convertidos em lei (PEDREIRA, 2018).

Sendo assim, o mecanismo a ser utilizado para a inserção do termo recall, referendo revogatório - a exemplo do termo existente na Constituição venezuelana (embora seja muito difícil, atualmente, a aceitação de qualquer ideia que remeta ao nosso vizinho sul-americano, haja vista as discursões acaloradas entre esquerda x direita envolvendo temas que remetam à Venezuela) ou qualquer outro termo que transmita a mesma ideia de revisão popular de mandatos eletivos, deve ser uma Emenda Constitucional. Isso porque é o único ato legislativo hábil a produzir mudanças no texto constitucional, conforme estabelecido nos artigos 59 e 60 da Constituição Federal.

Cabe esclarecer que por se tratar de Proposta de Emenda Constitucional (PEC), os presidentes que se deparem com a questão durante seus governos não poderão vetar ou sancionar a respectiva emenda, haja vista que este tipo de categoria legislativa não está no rol de atos legislativos sujeitos a parecer da Presidência da República, restando a cargo do Congresso Nacional a aceitação da proposta, análise, discussão e consequente aprovação de eventual proposta.

Além do Congresso Nacional, a única instituição capaz de impedir, juridicamente, a aprovação de uma Emenda Constitucional neste sentido, seria a Suprema Corte do Brasil. A Constituição outorgou ao Supremo Tribunal Federal a incumbência do controle de constitucionalidade, cabendo a este órgão de cúpula do poder judiciário brasileiro a missão de zelar pela Constituição e seus ditames ali estabelecidos. Havendo algum indício ou evidência de inconstitucionalidade, cabe ao órgão atuar no sentido de combater tais irregularidades.

Adoção em âmbito estadual e municipal

Cumpre destacar que, por uma opção do Constituinte de 1988, os Estados da federação ficaram com pouca ou quase nenhuma competência constitucional legislativa, o que se denominou chamar de competência residual. Mas fato é que os mesmos, juntamente com os municípios são dotados de capacidade legislativa (auto-organização), devendo por isso instituírem suas diretrizes quanto as competências delegadas pela Constituição Federal.

Assim sendo, os mesmos devem instituir suas respectivas Constituições e Leis Orgânicas. Nestes mecanismos deve haver previsão da possibilidade de destituição de um mandato eletivo estadual ou municipal, a depender do ente e somente em caso de incorporação do instituto do recall ao direito brasileiro, através de Emenda Constitucional, conforme explanado no tópico anterior.

Pode-se dizer que o instituto do recall, analisado em seu contexto americano, possui profundas ligações com os assuntos que envolvam um menor colégio eleitoral. Não à toa nos Estados Unidos da América é muito utilizado para questões relacionadas à destituição de reitores de universidades, diretores de escolas, dentre outros cargos ligados a funções eminentemente locais.

Sendo assim, no caso brasileiro, resta evidente que, pelo tamanho territorial de nossa nação e os dilemas enfrentados no país, o instituto seria mais bem aplicado em âmbito municipal (cargos de prefeitos e vereadores). Isso porque as populações dos municípios inevitavelmente estão mais envoltas aos assuntos locais, sobretudo em municípios com demanda populacional menor. O que não é raro de se vislumbrar, haja vista que o Brasil possui mais de cinco mil Municípios espalhados por seu território nacional.

Além disso, da leitura e interpretação de nossa Carta Magna, é possível dizer que há uma tendência de ampliação de participação popular local, haja vista que os mesmos são dotados, como dito anteriormente, de autonomia federativa, que se reflete nas mais diversas áreas (administrativa, financeira, legislativa etc.) e assim não poderia ser diferente no campo político. 

Até por isso, não raro as lideranças locais sugerem a adoção do recall como uma alternativa aos problemas relacionados à falta de identidade entre uma determinada população e respectivos anseios e aqueles que os representam. Renato Cinco (PSOL), vereador pelo Município do Rio de Janeiro, defende a adesão do recall no Brasil. O vereador denomina o instituto através da nomenclatura “revogabilidade de mandado”. Ele cita casos de recall ocorrido no direito comparado, sendo os da Califórnia (Gray Daves) e Venezuela (Hugo Chaves) bases para o discurso do político carioca. Renato Cinco afirma ter certeza que, se no Estado do Rio de Janeiro houvesse recall, o ex-governador Sérgio Cabral, por exemplo, possivelmente teria feito um melhor governo, mais responsável e sobretudo estaria menos propenso a corrução, visto que no caso das iminentes apresentações de escândalos envolvendo desvios de verbas públicas em sua administração, ele correria sérios riscos de perder o mandato de governador do Estado da Guanabara. 

É inevitável conceber o recall como um mecanismo possivelmente mais eficaz em âmbito municipal, haja vista fatores como espaço físico territorial, demanda eleitoral, ligação entre eleitorado e os ocupantes dos cargos a serem objeto do recall, bem como os custos que envolveriam a mobilização local. Levando-se todos esses aspectos em consideração, fica evidente que, no caso do Brasil por possuir um espaço territorial quase que continental, bem como pelas características de nossa federação, melhor seria sua incorporação ao direito brasileiro primeira ou unicamente em âmbito municipal.

Desafios político-institucionais

É inegável que o Brasil vive atualmente uma crise em seu sistema jurídico e político. A descrença da população nas instituições públicas e nos governantes nunca foi tão grande e alvo de tantas críticas, ou mesmo, estiveram tão desacreditadas pela maior parte da população como nos dias atuais. Tais fatos se refletem em acontecimentos que fragilizam as instituições públicas, a ponto de desestabilizar o Estado Democrático Brasileiro, levando, principalmente, aqueles que se dedicam as chamadas ciências sociais, a buscarem novas perspectivas para um avanço social, político, econômico e jurídico pra nação brasileira.

Sendo assim, faz-se necessário estudar e propor novas alternativas, para que não ocorram “sensos comuns” que, muitas das vezes, atrapalham o caminhar e desenvolvimento no plano jurídico e político do país. Vide o recente caso de impeachment [impedimento/impugnação] ocorrido em 2016 com a ex-presidente Dilma Rousseff (2011-2016), que, diferentemente do sofrido pelo ex-presidente Fernando Collor de Melo (1990-1992), não contava com o apoio tão maciço da população, e de variados setores, embora, a bem da verdade, a presidente encontrasse descontentamento, em parte expressiva da sociedade brasileira. No caso de Collor, o desejo de sua saída era quase unânime: a maior parte da população, políticos, entidades de classe, movimentos estudantis, não desejavam que o até então presidente, continuasse a exercer suas atribuições até o fim do mandato, além do fato de o mesmo não contar com apoio perante o Congresso Nacional.

A possibilidade de revisão de mandatos eletivos me parece uma alternativa atual, legitima e possível para o país, haja vista os motivos, até aqui expostos. Tratar do tema em comento possibilita uma maior participação popular em decisões ímpares, compactua com o princípio representativo, encontrando fundamento na própria ideia de democracia, já que o povo é o titular do poder constituinte originário, aquele que cria uma nova constituição e, portanto, um novo ordenamento jurídico (SILVA, 2015). Tal retomada se faz necessária justamente pela descrença dos cidadãos nos ocupantes de cargos políticos que muitas das vezes se dá pela quebra de confiança ao longo do exercício do mandato eletivo, por exemplo. Falta de comprometimento com a coisa pública, casos de corrupção, insuficiência de resultados, inúmeros são os fatores que levam a população a desacreditar nos ocupantes de cargos públicos, especialmente os eletivos. 

É importante esclarecer até que ponto o recall seja algo compatível com a realidade política brasileira, isso porque o mesmo é um mecanismo perfeitamente utilizado nos EUA pelo fato do país contar com um sistema de votos distrital, influenciando profundamente a mentalidade eleitoral da população americana.

Outro fator que influencia profundamente nas questões eleitorais está relacionado a grandes problemas enfrentados pelo nosso país ao longo dos das últimas décadas no que tange a educação. Historicamente o Brasil é um país que investe pouco em educação e possui profundas dificuldades em melhorar a qualidade de seu ensino. Ainda é alto número de pessoas que sequer são alfabetizadas, terminam o primário, que concluem o segundo grau e menos ainda que possuem formação em nível superior. Tais fatores inevitavelmente influenciam nas questões relacionadas à cidadania das pessoas e na consequente capacidade de participação em questões que envolvam o Estado. Rousseau, em uma de suas obras mais famosas, “A Educação de Emílio” (1762), alerta que é necessário que o homem desde pequeno tenha acesso a uma educação de qualidade e uma profunda noção cívica, para que assim possa melhor exercer o direito de poder.

Além disso, é importante ressaltar que muitas são as ressalvas quanto a eficácia do modelo democrático. Noberto Bobbio (BOBBIO, 1985, p. 33) ressalta que “[...]defensor do governo do povo (que ainda não é chamado de “democracia”; esse termo tem de modo geral, nos grandes pensadores políticos, uma acepção negativa, de mau governo)”. Ou seja, apesar de a democracia ser algo almejado por muitos e ser tida como um modelo agregador e ampliativo, há suas nuanças, o que faz com que muitos dos grandes nomes da filosofia e da história do direito tenham receios quanto a sua eficácia. Rousseau (ROUSSEAU, 1980), por exemplo, defende a ideia de que democracia seria um governo ideal para estados pequenos, haja vista que haveria uma maior eficiência na participação dos indivíduos nas participações coletivas em estados menores, já que, assim, haveria maior facilidade para que a população se reúna com razoável frequência. O mesmo acrescenta ainda que:

[...] não há governo tão sujeito às guerras civis e às agitações intestinas como o democrático ou popular, pois que não há nenhum outro que tenda tão frequente e continuamente a mudar de forma, nem que demande mais vigilância e coragem para se manter na sua. É sobretudo nessa constituição de governo que o cidadão se deve armar de força e constância, e dizer em cada dia de sua vida, no fundo do coração, o que dizia um virtuoso palatino na dieta da Polônia: Malo periculosam libertatem quam quietum servitium. (ROUSSEAU, 2001, p. 95)

E é mais radical ainda ao afirmar ser inevitável a morte do corpo político. Para ele, a degeneração é um mal inerente aos governos, ainda que tenham boas administrações e efetivas participações populares:

Tal é o pendor natural e inevitável dos governos melhor constituídos. Se Esparta e Roma pereceram, qual o Estado que pode esperar durar eternamente? Se quisermos constituir um estabelecimento durável, não pensemos em absoluto em fazê-lo eterno. Para sermos bem sucedidos, não devemos tentar o impossível, nem nos vangloriamos de dar à obra dos homens uma solidez que as coisas humanas não comportam. (ROUSSEAU, 2001, p. 122)

Outo ponto a ser considerado é que a democracia normalmente é temida por determinados grupos em uma dada sociedade, isso porque ela necessariamente implica em uma redistribuição de forças, sejam elas políticas, financeiras ou sociais. Com a migração para um modelo democrático em dado país, ampliam-se as cobranças e responsabilidades sobre o poderio estatal e tudo que dele deriva. Novos atores políticos ganham relevância e passam a ocupar cenários anteriormente destinados a pequenos grupos. Tais fatores fazem com que, principalmente os mais ricos, temam uma maior participação popular nas questões do estado, sobretudo quando da eleição de novos representantes, haja vista ser comum existir uma maior instabilidade nos meios de desenvolver a política e captação de votos.

O renomado autor italiano Domenico Losurdo alerta quando a intervenção de pequenos grupos, normalmente empresários de maior influência na elite e do alto escalão militar, exercem sobre democracias, especialmente nas modernas e que ainda estão em processo de amadurecimento. Para ele “a extensão dos direitos políticos é ligada não a um projeto de emancipação social, mas a uma precisa preocupação política” (LOSURDO, 2004, p. 91).

Outra crítica do autor marxista italiano reside na existência de uma espécie de bonapartismo soft que consiste em países que fundamentam seus modelos democráticos no existente nos Estados Unidos da América, em que há uma suposta presença de sufrágio universal, mas que, a bem da verdade, possui uma centralização de poder e decisão no Poder Executivo. Para ele, tais fatores reduzem a participação popular, asfixiando a vontade da maioria, corroborando com uma “democracia de fachada” e que fortalece a personificação da figura ocupante da chefia do poder executivo, assemelhando-se a um monarca opressor, haja vista que o mesmo se torna uma espécie de juiz que determinada a necessidade e conveniência de determinadas decisões. “O presidente vê reconhecido o seu direito de decidir” (LOSURDO, 2004, p. 143).

Exemplo atualmente existente no Brasil reside na possibilidade de edição de medidas provisórias para tratar de diversos assuntos, dentre eles questões sensíveis a economia do país, como fora a reforma trabalhista ocorrida em 2017 que se deu através desta espécie normativa. Muitas das vezes as medidas provisórias servem para atender interesses do empresariado, sobretudo em momentos de grande recessão financeira, como é o caso do Brasil.

O autor marxista alerta que esse fenômeno bonapartista é oriundo, principalmente, da maneira americana de governar. Tradicionalmente a figura do presidente americano personifica o ideal americano e constantemente defende posturas que, caso não sejam adotadas, colocam em risco o futuro da nação estadunidense. O italiano destaca:

Assim, a realidade política americana nos coloca diante de uma espécie de bonapartismo soft, que, no entanto, pode se transformar, se necessário, de modo bastante fácil, num explicito bonapartismo de guerra, para retornar novamente à normalidade uma vez que se considere superado o estado de exceção.

É um regime político que supera brilhantemente a prova de fogo do primeiro conflito mundial, conquista uma vitória depois da outra até nossos dias. (LOSURDO, 2004, p. 146)

O que se percebe é que costumeiramente pequenos grupos pertencentes à burguesia (o que se assemelha a um modelo oligárquico de governo) exercem influências sobre governos formalmente estabelecidos através de voto popular, ano após ano, mandatos após mandatos, sejam tais governos defensores de ideias de direita ou de esquerda. 

Rousseau outrora já alertava o quanto o aparelhamento estatal por parte de anseios particulares pode ser negativo a uma sociedade:

nada é mais perigoso que a influência dos interesses privados nos negócios públicos [...] Rigorosamente falando, nunca existiu verdadeira democracia nem jamais existirá. Contraria a ordem natural o grande número governar, e ser o pequeno governado. É impossível admitir esteja o povo incessantemente reunido para cuidar dos negócios públicos. (ROUSSEAU, 2001, p. 93- 94).

Fato que é que os dilemas que estão envoltos as formas de governar não são fenômenos recentes, inerentes às sociedades modernas. Não à toa, um dos grandes pensadores no que tange a temáticas relacionadas ao estudo das mais diversas relações de governos existentes (Políbio) entende que há um caminhar natural e inevitável das formas de governo o que se denominou chamar de “teoria ciclo”. Para ele existem seis formas de governar, nas quais três são boas, e outras três ruins, sendo cada uma das formas ruins sucessoras da forma antagônica boa até completar-se o ciclo por inteiro. Tais formas são monarquia, aristocracia e democracia (formas boas); tirania, oligarquia e oclocracia.

No livro A Teoria das Formas de Governo (1985), de autoria de Noberto Bobbio, o autor esclarece os pensamentos de Políbio. Para o teórico, na monarquia há a presença de um rei legítimo e que posteriormente dá lugar a um regime de tirania, marcada pelo terrorismo e força de seus atos, contrariando as expectativas dos súditos. Evoluindo posteriormente para a aristocracia, governo de poucas pessoas que dá lugar a oligarquia, também relacionada a ideia de poucos governando, mas que diferentemente da aristocracia é um governo composto pela elite, burguesia. Em uma “última” fase surge a democracia, governo legitimado pela soberania popular, baseada no respeitos as instituições e maioria de votos para a tomada de decisões que se deixa levar por paixões a ponto de ser degenerada e substituída pela oclocracia, regime de governo ruim, em que o governo, instituições e a soberania popular constituem mera maquiagem do que realmente existe, que seria um domínio de políticos demagogos influenciados por outros interesses obscuros. 

Assim, pode-se dizer, em síntese, que o historiador Políbio entende que uma sucessão desses regimes de governos acima mencionados é algo essencial e inevitável, sendo um processo contínuo. E acrescenta, ainda, que governos simples são instáveis e, inevitavelmente, ruins e que o ideal é que se adotem modelos de governos mistos, a fim de dar maior eficiência e impedindo que os excessos inerentes às formas más prevaleçam em determinado momento.

Políbio cita ainda que corrupção se faz presente no interior de toda e qualquer constituição, seja qual for o regime de governo adotado (monarquia, aristocracia e democracia). O historiador faz uma associação aos males que acometem ferragens e madeiras:

Da mesma forma como a ferrugem, que é um mal congênito do ferro, o caruncho e as traças, que são males (internos) da madeira, pelos quais um e outra são consumidos, ainda que escapem a todos os danos externos, assim também toda constituição apresenta um mal natural que lhe é inseparável: o despotismo com relação ao reino; a oligarquia com relação à aristocracia; o governo brutal e violento com respeito à democracia. Nessas formas, como já disse, é impossível que não se alterem com o tempo todas as constituições (VI, 10) (BOBBIO, 1985, p. 58)

Outro teórico importante a se debruçar sobre temáticas que envolvem a constituição do Estado é Rousseau. O autor contratualista é defensor de Estados menores, especialmente daqueles maiores territorialmente afirmando que “um Estado pequeno é proporcionalmente mais forte que o maior” (ROUSSEAU, 1980, p. 47). 

Dalmo de Abreu Dallari afirma que somente será possível a participação direta do povo em grandes democracias, quando a tecnologia vir a ser utilizada, de fato, com este fim, trazendo acessibilidade e rapidez na coleta as opiniões do povo. Porém afirma ser difícil vislumbrar tal feito, haja vista que nas sociedades modernas ainda é comum a figura da representação, sobretudo em democracias populosas. Políticos resistem a tais mudanças, haja vista que para os mesmos não seria algo produtivo, colocando sob risco o sistema político atual, profundamente dependente da representação política (DALLARI, 2013, p. 153)

A tecnologia é algo inerente aos dias correntes e, até por isso, não é algo que pode ser usado apenas nos dias de votação, mas também durante o processo eleitoral. Pode-se dizer, atualmente, que vivemos em um mundo cada vez mais dinâmico, marcado pelo entretenimento e velocidade das informações. Tais fatores influenciam na política e processo de formação e constituição de qualquer sociedade e governo, sobretudo em períodos eleitorais, como acontecem em democracias atuais. Sendo assim, Addrian Sgarbi alerta quanto a influência exercida pelos meios de comunicação no processo político atualmente. O autor alerta que (ao citar os históricos de referendos nos Estados Unidos da América):

Tem-se acentuado, em sede estatística, que a opinião dos cidadãos eleitores reflete, em significativa escala, o que os meios de comunicação massivamente divulgam. Demais disso que as proposições de referendo, principalmente por intermédio das iniciativas, decorrem de forte pressão do empresariado, contando com vultuosas somas em dinheiro” (SGARBI, 1999, pp. 319-320)

E acrescenta ainda que, para coibir as influência de tais fatores, a legislação americana adota preços altos para propagandas de opiniões pessoais; promovem a distribuição de matérias de cunho explicativo; divulgam o balanço inicial das consequências de ambas as decisões a serem tomadas; regulamentaram o tempo destinado a cada um dos lados da campanha; bem como punem severamente penalidades por propagandas enganosas (Adrian, 1999, p. 320).

É importante destacar que, sem dúvida alguma, meios de participação popular direta são formas altamente democráticas de manter sob a influência do povo o poder de decidir sobre determinadas questões. Porém, é importante elucidar possíveis consequências da adoção do recall no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo em âmbito nacional, como se vislumbra por diversos políticos e determinadas camadas da sociedade.

A adesão a revogação de mandatos poderia resolver determinadas questões de ordem política, especialmente as relacionadas a insatisfação com ocupante de mandatos eletivos, mais rapidamente, dando celeridade ao processo que vai desde a insatisfação política até a destituição do ocupante do cargo em si. Porém, também geraria grande instabilidade na eficácia dos institutos estabelecidos em nossa constituição, sobretudo no que tange ao exercício completo do tempo estabelecido para mandatos políticos, causando grande instabilidade jurídica.

O grande dilema a ser enfrentado pelo Brasil é fazer com que o instituto não seja usado como trunfo por opositores e meios de comunicação para extorquir e atingir os ocupantes de cargos a fim de verem seus interesses também obtidos. Será necessária a adoção, em contrapartida, de meios que obstem tais anseios inerentes a democracias profundamente demagogas como a atualmente vigente em nosso país.

O Ministro Marco Aurélio Mello da Suprema Corte Brasileira alerta que o recall possui mais riscos do que um processo de impeachment a ser conduzido pelo Congresso Nacional. Na visão dele:

A população, especialmente a leiga, é muito sugestionável a emoções. E não se pode marchar dessa forma, potencializando as eleições. O povo de início gosta de circo. E o circo é algo totalmente discrepante do Estado Democrático de Direito. E só se avança culturalmente observando as regras estabelecidas (MELLO, 2016)

Além disso, o ministro também esclarece a necessidade da instituição de um novo ordenamento jurídico (nova constituição) para inserção do recall na sistemática política brasileira:

Haveria ainda um obstáculo adicional à inserção do referendo revogatório no ordenamento jurídico brasileiro: o STF. Marco Aurélio garante que a corte barraria uma eventual emenda constitucional que instituísse o mecanismo no país. Isso porque ela violaria a cláusula pétrea da preservação do resultado das eleições. Dessa forma, a medida só poderia ser criada caso uma nova Constituição fosse elaborada do zero. (MELLO, 2016)

Fato é que a possibilidade de revogação de mandatos no Brasil, especialmente eletivos, geraria um cenário propício a debates acalorados e distorções de índole ideológicas quando do seu trâmite. Pode-se dizer que, em alguns casos/aspectos, haveria a ressureição do que se viu em séculos anteriores, com o chamado mandato imperativo, que por muito tempo vigorou em países da Europa e que ainda encontra embasamento na legislação de alguns países, como a Colômbia. Embora, de fato, com uma outra concepção da prevista anteriormente, haja vista que não é possível vislumbrar que determinados candidatos firmem compromissos irrestritos a determinadas causas, sem que se desvinculem minimamente de suas promessas anteriormente feitas ao eleitorado. Porém, de fato, é possível afirmar que haveria uma espécie mínima de coação do eleitorado para com seus escolhidos no sentido de ver seus anseios atingidos no transcorrer do mandato, desestabilizando determinadas administrações e legislaturas, o que pode comprometer o interesse público, já que nem sempre a consciência e nível de instrução da população está madura o suficiente para entender determinadas questões relacionadas aos dilemas estatais.

Por fim, é importante ressaltar que possibilidade de revogação poderia atrapalhar uma constante oxigenação da classe política, no sentido de que possíveis novos atores políticos se sentissem coibidos a ingressar em pleitos populares, já que o recall, num cenário brasileiro atual, inevitavelmente seria usado como uma espécie chantagem política por parte de opositores e, até mesmo, por parte da população, havendo, assim, uma espécie de intimidação prévia dos eventuais concorrentes a cargos públicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PEDREIRA, R. B. Projetos de iniciativa popular, um dos avanços da Constituição Federal. Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, 06 set. 2018. Disponivel em: <https://cnts.org.br/noticias/projetos-de-iniciativa-popular-um-dos-avancos-da-constituicao-federal/>. Acesso em: 09 out. 2019.

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