Análise Crítica da Lei nº 13.979/2020

A Lei nº 13.979/2020, sancionada em 06 de fevereiro de 2020, possui a finalidade principal de dispor sobre as medidas para o enfrentamento do panorama caótico que se estabelecia em decorrência a pandemia de Covid-19, conforme estabelecida em seu preâmbulo e no artigo 1º :

Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
[…]
Art. 1º  Esta Lei dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.

Esse instrumento normativo regula as medidas de isolamento, quarentena, fluxo de pessoas nas cidades, vacinação, testes laboratoriais, restrição temporária de entrada e saída no país e, ainda, estabeleceu os responsáveis pela adoção das medidas previstas na Lei e alterou outras normas, como exemplo a Lei n° 8.666/93 (Lei de Licitações). 

Ao observar os artigos dessa Lei, percebe-se que o norte principal é, de fato, criar normas que facilitem e cooperem para o combate à pandemia que se desenhava. Para isso, era necessário que todos os entes da federação estivessem envolvidos. Diante disso, no artigo 3º, além do estabelecimento de medidas para o enfrentamento da emergência de saúde, é enfatizado que todas as autoridades poderão atuar dentro das suas competências, conforme os incisos de §7°, onde vêm previstas os responsáveis pela adoção das medidas:

Merece destaque o artigo 3º da Lei nº13.979/2020 que dispõe: 

Art. 3º  Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: 
I - isolamento;
II - quarentena;
III - determinação de realização compulsória de:
a) exames médicos;
b) testes laboratoriais;
c) coleta de amostras clínicas;
d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou    
e) tratamentos médicos específicos;
III-A – uso obrigatório de máscaras de proteção individual; 
IV - estudo ou investigação epidemiológica;
V - exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;
VI – restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de: 
a) entrada e saída do País; e
b) locomoção interestadual e intermunicipal; 
VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e
VIII – autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia do coronavírus, desde que: 
(…)
§ 5º  Ato do Ministro de Estado da Saúde:
I disporá sobre as condições e os prazos aplicáveis às medidas previstas nos incisos 
I e II do caput deste artigo;
(…)
§ 7º  As medidas previstas neste artigo poderão ser adotadas:
I – pelo Ministério da Saúde, exceto a constante do inciso VIII do caput deste artigo; 
II – pelos gestores locais de saúde, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde, nas hipóteses dos incisos I, II, III-A, V e VI do caput deste artigo; 
III - pelos gestores locais de saúde, nas hipóteses dos incisos III, IV e VII do caput deste artigo.
IV – pela Anvisa, na hipótese do inciso VIII do caput deste artigo. 
(…)

Diante dos dispositivos apontados, pode-se perceber que o caput do artigo 3º introduz a ideia de respeito às competências, uma vez que o norte e limite para atuação das autoridades é o âmbito das respectivas atribuições. Assim, presume-se que os Entes - União, Estados e Municípios - podem atuar de forma livre e independente, desde que seja respeitado o âmbito de suas competências, significando o respeito ao federalismo que é um dos pilares da República brasileira.

No entanto, no artigo 3º, nos meandros dos seus parágrafos e incisos, é possível notar um forte viés na centralização de poder na União, pois, no parágrafo 7º, inciso II, determina que o Ministério da Saúde pode adotar todas as medidas estabelecidas na lei, com exceção da constante no inciso VIII, que é de responsabilidade da Anvisa. Enquanto isso, os gestores locais de saúde possuem livre atuação nas hipóteses do inciso III, IV e VII do caput. E nas hipóteses dos incisos I, II, V e VI, os gestores só podem atuar mediante autorização do Ministério da Saúde.

Diante disso, pode-se perceber que o Órgão Central está buscando centralidade de poder, vez que está colocando como base legal para atuação dos gestores de saúde local o crivo do Ministério da Saúde. A quantidade de competências que a União possui de forma independente é bastante superior à quantidade de competências dos órgãos locais.

Outro fator que demonstra essa busca por centralização é o fato do Ministério da Saúde dispor sobre as condições e prazos que devem ser aplicados nas medidas previstas nos incisos I e II do caput do artigo 3º, de acordo com o artigo 3º parágrafo 5º. 

Fica bem evidente, pelo número de competências determinadas para o Ministério da Saúde, que a referida norma busca de forma concreta a centralidade do poder no ente central. Por mais que isso possa parecer uma atitude antidemocrática, esse comportamento demonstra a tensão entre poder central e local que permeiam o federalismo desde a sua gênese nas 13 colônias. 

É evidente que os motivos que deram início a esta disputa, na Constituição de 1787, são distintos dos que permeiam o federalismo brasileiro hoje. No cenário Americano, o fortalecimento do poder central passava pela busca por proteção e também pela ideia de afastar a população do centro de decisão principal.  Essa mesma disputa entre poder local e central marca a história brasileira, mesmo antes do federalismo ganhar contornos aqui no Brasil. As tensões entre poder local e central sempre permearam a história política nacional, desde as capitanias hereditárias.

Dessa forma, pode-se perceber que a Lei 13.979/2020 possui contornos centralizadores em sua essência e busca de forma clara proporcionar mais poder para o poder central em detrimento dos poderes locais, refletindo, assim, um movimento que sempre se fez presente na história brasileira. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRUCIO, F. L. Os Barões da Federação. Os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo. Ed. Hucitec / Departamento Ciências Sociais USP, 1998.

ARRETCHE, M. Federalismo e relações intergovernamentais no Brasil: a reforma de programas sociais. Dados, v. 45, 2002. 

ARRETCHE, M. Financiamento federal e gestão local de políticas sociais: o difícil equilíbrio entre regulação, responsabilidade e autonomia. Ciência & Saúde Coletiva, v. 8, 2003. 

BARROSO, L. R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo.- 9. ed. Saraiva Educação. São Paulo. 2020. 

BENTES, F. Teoria da Constituição dos Estados Unidos. Lúmen Júris Direito. Rio de Janeiro. 2016. 

GIL, A. G. Princípio federativo e conflitos de competências constitucionais: uma análise sob o enfoque da gestão de crise da saúde pública na Pandemia de Covid-19. Revista de Ciências do Estado, Belo Horizonte, v. 6, n. 1, p. 1–19, 2021. DOI: 10.35699/2525-8036.2021.25986. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revice/article/view/e25986. Acesso em: 21 ago. 2022. 

MARQUES, E., & ARRETCHE, M. Condicionantes locais da descentralização das políticas de saúde. Caderno CRH, 16(39), 2003.

SANTOS, R. A.; ANDRADE, P. L. A evolução histórica do federalismo brasileiro: uma análise histórico-sociológica a partir das constituições federais. XXI Encontro Nacional do CONPEDI. 1ed.Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012, v. XXI.

TORRES, J. C. O., 1915-1973. A formação do federalismo no Brasil [recurso eletrônico] / João Camilo de Oliveira Torres. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2017.