Neste artigo, evidenciaremos, através da análise dos votos dos ministros e a decisão da ADI 4439, como a influência ideológica e os dogmas religiosos influenciam diretamente as decisões jurídicas e imposições normativas brasileiras, buscando destacar que não se pretende extinguir a liberdade de culto ou a faculdade de doutrinação confessional, que podem e devem ser, completamente livres na esfera da vida privada.
Trata-se da possibilidade de compreender a previsão legislativa juntamente com o princípio constitucional da laicidade, evitando o reingresso de modelos confessionais no âmbito da educação pública.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade número 4439, foi proposta em 2010, pela Procuradoria Geral da República que requereu do STF a análise e julgamento do art. 33, caput, §§ 1o e 2o, da Lei no 9.349/96 e sobre o art. 11, § 1o, do “O Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”, promulgado pelo Presidente da República por meio do Decreto no 7.107/10.
A LDBEN (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), teve o art. 33 alterado pela Lei no 9.475/97, sendo então, disposto da seguinte forma:
“ Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1o Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2o Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.”
Segundo a Procuradoria, o dispositivo possibilita entendimento favorável à aplicação do ensino religioso confessional e interconfessional nas escolas públicas, caracterizada por uma doutrinação religiosa, através de professores representantes de igrejas, financiadas pelo Estado. Que além de configurarem uma imposição, desqualificam o caráter laico brasileiro. Logo: sustenta a PGR que tal imposição normativa demandaria de uma interpretação do Supremo conforme a Constituição, frisando que “o ensino religioso em escolas públicas só pode ser de natureza não confessional, com proibição de admissão de professores na qualidade de representantes de confissões religiosas”.
O art. 11, § 1o, do Acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé, diz que:
“Art 11. A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.
§1o. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.”
E em relação ao mesmo, a discussão é que o disposto poderia ser interpretado como um endosso ao ensino confessional em escola pública. E para a PGR, o dispositivo deveria ser redigido “indicando a necessidade de que, no ensino não confessional de religião nas escolas públicas, haja espaço para a exposição e discussão, sem qualquer proselitismo, das doutrinas católicas, além daquelas pregadas por outras confissões”. E ainda, de maneira subsidiária, sugere a retificação do trecho “católico e de outras confissões religiosas”, por entender tendencioso tal destaque.
Ambos dispositivos possibilitam a interpretação da previsão constitucional de oferta do ensino religioso disposta no art. 210, § 1o da CF:
“Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
§ 1o O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.”
E ainda nas modalidades confessional e/ou interconfessional, o que, conforme a PGR, fere o caráter laico do Estado.
Além disso, defende a PGR, a tese de que, a adoção do modelo não confessional seria a única forma de compreender o ensino religioso nas escolas públicas com laicidade, como dispõe o art. 19, I, da Constituição Federal:
“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”
Então requereu do STF interpretação conforme a Constituição Federal dos dispositivos citados, reafirmando a possibilidade do ensino somente na forma não confessional. Cuja matrícula é facultativa, e deve ser voltada para a história e a doutrina das várias religiões, ensinadas sob uma perspectiva laica.
Dos Votos
Votaram pela improcedência do pedido os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. Ficaram vencidos os ministros Luís Roberto Barroso (relator), Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio e Celso de Mello, que se manifestaram pela procedência da ADI. Configurando a improcedência por 6 x 5 dos votos, em que a maioria entendeu que a facultatividade da disciplina é suficiente para resguardar a liberdade religiosa e a laicidade do Estado. O que de pronta denota o acirramento do debate e complexa a questão.
Dentre os argumentos de improcedência, destacam-se: a rejeição da tese da PGR de que as aulas de ensino religioso deveriam ser voltadas para a história e a doutrina das várias religiões, ensinadas sob uma perspectiva laica e “isenta”. Para o ministro Alexandre de Moraes, acompanhado pelo ministro Edson Fachin, não faria sentido garantir a frequência facultativa às aulas de ensino religioso, se esse se limitasse a enunciar, de maneira absolutamente descritiva e neutra, princípios e regras gerais das várias crenças. Já que, se fosse para fazer apenas a descrição das religiões sob os enfoques histórico, sociológico ou filosófico, a Constituição Federal não teria dito que a frequência é facultativa, pois, existem matérias, como Filosofia, Sociologia e História que já abordam, de forma descritiva, os movimentos religiosos, sendo tais disciplinas, em regra, obrigatórias.
Segundo Alexandre de Moraes, a frequência é facultativa justamente porque as aulas podem sim ter proselitismo religioso, ou seja, divulgação positiva de uma determinada religião. Como o Estado é laico e vigora a liberdade religiosa, os alunos não podem ser obrigados a frequentar essas aulas, mas essas, podem existir, conforme previsto no art. 210, § 1º da CF/88.
Observe o fragmento do voto do ministro Alexandre de Moraes:
“Estranhamente, pretende-se transformar essa correta tolerância e defesa da diversidade de opiniões em sala de aula, defendida para todas as demais manifestações de pensamento, em censura prévia à livre manifestação de concepções religiosas em sala de aula, mesmo em disciplinas com matrícula facultativa, transformando o ensino religioso em uma disciplina neutra com conteúdo imposto pelo Estado em desrespeito à liberdade religiosa.
Podemos concordar ou não com uma ou mais concepções religiosas, mas não há como negar que o pedido da presente ação pretende limitar o legítimo direito subjetivo constitucional do aluno que já possui religião ou de seu pai/responsável em matricular-se no ensino religioso de sua própria confissão, em verdadeira tentativa de tutela à livre manifestação de vontade, e consequentemente de restrição à liberdade religiosa, uma vez que:
(a) a Constituição Federal, em texto constituinte originário, determina a implantação do ensino religioso;
(b) 92% da população brasileira (censo IBGE, 2010) tem uma determinada crença religiosa;
(c) a matrícula é facultativa, para proteção não só dos demais 8%, mas também de parcela dos 92% que, eventualmente, não tenham interesse em matricular-se.
Ora, diriam alguns grupos: a maioria das crenças religiosas tem ideias conservadoras em relação a temas importantes às minorias, consequentemente é perigoso que possam propagar suas ideias em salas de aula, mesmo sendo para aqueles que voluntariamente optaram em cursar a disciplina.”
No mesmo sentido caminhou o voto do ministro Edson Fachin, conforme fragmento abaixo destacado:
“Assim, não há como deixar de reconhecer que, conquanto possa ser confessional, o ensino religioso não pode ser obrigatório (art. 210, § 1o, da CRFB). Além disso, porque se fundamenta na própria pluralidade democrática, não pode o ensino, confessional, interconfessional ou não confessional, tornar-se proselitista ou desrespeitar a diversidade cultural religiosa do Brasil, o que abrange também as religiões confessionais que se afirmem apenas pelos usos, costumes e tradições.
Por tudo isso, ao invés de afrontar, a norma constante dos parágrafos primeiro e segundo e do caput do art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional vai ao encontro do texto constitucional”
Tal argumento não garante a liberdade do aluno, até mesmo porque, durante o período letivo o aluno nem sempre tem a condição de optar por não fazer a disciplina no horário escolar até porque não lhes é oferecida qualquer outra atividade escolar nesses horários destinados à disciplina do ensino religioso. Além de estar cerceado do direito de acessar o conhecimento sobre outras linhagens e possibilidades de crença ou não crença. Tendendo também ao rechaço de seus semelhantes na livre escolha.
Se o aluno escolher não cursar a disciplina de ensino religioso e, imaginando-se que haja uma aula dessa matéria por semana, é evidente que ele não poderá́ permanecer durante o período de 50 minutos, por um ou dois semestres, sem qualquer atividade escolar. Isso feriria profundamente os objetivos pedagógicos do ensino e o papel da escola, que definitivamente não abarca manter os alunos e alunas em ociosidade. Se essa for a situação, frequentemente para que o estudante não permaneça sem qualquer atividade, sua presença em sala de aula tornar-se-á́ obrigatória. Ou ele permanece na sala e assiste às aulas de ensino religioso, ou ficará do lado de fora, correndo o risco de tomar alguma advertência da coordenação.
Barroso, Fux e Weber concordaram no sentido de que o ensino religioso, mesmo que facultativo, pode expor crianças a constrangimentos, caso elas escolham não frequentar as aulas. Observe:
Fragmento do voto do ministro Barroso:
“Crianças e adolescentes, ainda em fase de desenvolvimento de sua personalidade e autonomia, são especialmente influenciáveis por seus professores e colegas e querem sentir-se aceitos e integrados em suas turmas. A sensação de exclusão, por professarem crenças “diferentes” da maioria dos seus colegas, pode levá-los a não expressarem suas preferências religiosas, bem como produzir uma perniciosa diminuição de sua autoestima e estigmatização face à comunidade escolar.”
Esta também é a posição da maior parte das associações de educadores, ONGs de direitos humanos e congregações religiosas que pediram para que seus argumentos fossem ouvidos pelo tribunal.
Outro ponto de destaque na divergência dos ministros diz respeito a confessionalidade. Os professores escolhidos para assumir o cargo não estão obrigados, a partir da decisão, ter formação específica na área, ficando a cargo das instituições de ensino definir tais critérios, as quais definirão de forma particular a cada caso se será preciso formação técnica ou religiosa. Isto abre margem para que haja predominância do ensino de uma religião sobre a outra a depender da regência escolar, e na prática, já sabemos quais serão privilegiadas.
Assim, tem-se que o ensino confessional é o ensino:
”[...] oferecido por professores ou orientadores religiosos credenciados por igrejas ou entidades religiosas. Nessa definição, ensino religioso confessional se confundiria com educação religiosa, semelhante àquela oferecida pelas comunidades religiosas para a formação de membros de um determinado grupo”. (DINIZ, 2010)
Esse tipo de ensino religioso traz uma série de problemas. Primeiramente, é preciso destacar que, no cenário brasileiro, existe uma enorme diversidade religiosa. Um ensino confessional inevitavelmente seria incapaz de apresentar nas escolas essa diversidade, pois seria inviável para o Poder Público custear o número de professores necessários para suprir a demanda de cada religião por escola em que haja estudante que a adote. Haveria, inclusive, mais professores de ensino religioso do que professores de qualquer outra matéria.
Além disso, existiria inúmeras dificuldades para encontrar e contratar professores em número suficiente, especialmente no tocante a religiões minoritárias com fiéis dispersos em uma ampla área geográfica. E ainda haja inúmeras religiões em que não há uma hierarquia clara ou centralizada, o que dificulta ou impossibilita a seleção de professores que sejam capazes de representá-las com legitimidade.
Ao serem representadas somente as religiões predominantes, a situação muda drasticamente. O estado passa a expressar, mesmo que indiretamente, certa preferência e incentivo a esses posicionamentos em detrimento de todos os demais. Gerando dois efeitos análogos ao da subvenção ou manutenção de alianças: o incentivo à adoção de determinadas religiões pela facilitação da difusão de seus ideais e a atribuição de maior importância a certos posicionamentos religiosos em relação aos demais (AMICUS CURIAE – ADI 4439).
Nesse sentido destacou-se o voto do Ministro Marco Aurélio:
“O Brasil é marcado por ampla diversidade religiosa, e o sistema de ensino fundamental apresenta graves deficiências, inclusive sob o ângulo da infraestrutura. Cabe questionar a viabilidade de exigir-se dos Estados e dos Municípios a oferta de disciplina para cada corrente religiosa, sendo utópico esperar que, em localidade incapaz de assegurar o ensino de, por exemplo, matemática e português, os alunos tenham acesso a aulas de ensino religioso compatíveis com a liberdade de crença.”
Votaram pelo ensino confessional os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski.
Para Ceccheti (2017) "Pelo decidido no STF, cada sistema de ensino vai ter que criar um regulamento para dizer o que é aceitável por ele de acordo com cada religião. Esse é um tremendo de um impacto – e como não há um regulamento nacional, ficará a cargo dos estados e dos municípios estabelecerem um padrão mínimo".
Ceccheti (2017) corrobora com nosso argumento ao dizer que a decisão do STF abre brecha para que lideranças religiosas façam às vezes de professor sem, necessariamente, terem formação técnica para lecionarem. Nesse sentido, esta seria uma forma das camadas dominantes atuarem ideologicamente na sociedade repreendendo outras crenças em detrimento da exaltação das próprias, e tudo isto legitimado e garantido pelo Estado. Segundo o coordenador-geral, tal decisão do Supremo não guarda conexão com a realidade da escola pública brasileira: "Se o Supremo tivesse uma noção de como a escola se organiza, e quais as dificuldades reais dela, jamais essa questão jurídica teria passado, pois está em total descompasso com a realidade do Brasil. É um desconhecimento gritante"(CECCHETI, 2017)
Tal afirmação de Ceccheti, mostra que a forma com que as classes dominantes atuam ao impor suas ideologias, passa, antes, por um profundo desconhecimento de como as coisas se dão na prática, pois tomam decisões baseadas em seus próprios critérios sem levar em conta a realidade escolar brasileira e todos os trâmites de funcionamento.