Crime Institucionalizado

O Crime Institucionalizado pode ser caracterizado, nas palavras de Jorge Pontes e Márcio Anselmo (2019), como um “sistema de fraudes abençoado pelo poder central do país e sustentado por uma rede de apoio que percorre os Três Poderes do Estado”. Essa prática, altamente lucrativa, cria certo tipo de proteção para quem a comete, uma vez que esse crime ocorre no núcleo das plataformas oficiais, ou seja, as autoridades se valem de seus cargos públicos para o cometimento do mesmo, o que acaba dificultando a investigação penal. Nas palavras dos autores:

Ao contrário da organização criminosa “convencional”, o crime institucionalizado não está atrelado a atividades escancaradamente ilegais, como o tráfico de drogas, de armas, a prostituição, o tráfico de pessoas ou o jogo ilegal. Esse tipo de crime está entranhado, na verdade, na plataforma oficial: nas três esferas (no caso brasileiro, a partir do Executivo federal), no estamento público, nos ministérios e nas secretarias da República, nas atividades legislativas e normativas, nas empresas públicas, nas estatais, na política partidária e nas regras eleitorais para prospectar e desviar recursos do erário.
(PONTES; ANSELMO, 2019, p. 88)

Como esse delito está entranhado nas esferas da administração, os servidores públicos e a classe política encontram brechas para trabalhar em prol de interesses particulares, seja legislando a favor do sistema - ou julgando de modo benéfico -, seja apoiando empresas que financiem suas campanhas ou promulgando leis que facilitem seus desempenhos. Essas atitudes fazem com que a política vire uma ocupação pessoal, e não profissional, além de transformá-la, como já dito, em uma atividade altamente lucrativa.

Observa-se que, nesse ciclo, todos saem ganhando: o dinheiro é desviado dos cofres públicos por quem deveria zelar por sua destinação correta, caindo nas mãos das empresas financiadoras de campanhas políticas, gerando um aumento significativo de seus lucros e contribuindo para a reeleição desses candidatos.

O fato de que o Poder Público não representa a sociedade como deveria é o que possibilita a ocorrência do crime institucionalizado: a população elege indivíduos que dedicam seus mandatos a favorecimentos pessoais e de financiadores. Diante disso, a vontade popular, que é a responsável por colocar esses indivíduos na administração pública, fica suprimida perante esse “serviço” criminoso.

Isto posto, é necessária a identificação das autoridades responsáveis pela nomeação dos gestores que atuam desviando recursos públicos através do superfaturamento de contratos, fraude em licitações, repasses aos órgãos do governo, entre outras ações que tornam esse crime mais seguro e mais lucrativo do que qualquer outro meio ilegal.

A Cleptocracia

A palavra “Cleptocracia” é um termo de origem grega e pode ser traduzida para a expressão “governo de ladrões”  . Nesse tipo de gestão, a intenção dos governantes é clara: atuar de maneira parcial visando interesses próprios, em que a prática de ações delitivas como corrupção, nepotismo, peculato, convergem para o enriquecimento ilícito.

Entende-se que a existência desse crime é uma ameaça direta à democracia, pois, de um lado, existem políticos atuando na busca de benefícios, como por exemplo, para empresas particulares e, de outro, empresas que financiam a campanha dos mesmos para obtenção de vantagens, gerando, portanto, um ciclo vicioso.

O crime institucionalizado pode ser visto como um atentado à democracia, que ocorreria de modo frontal em dois momentos bastante distintos. Primeiro, ao irrigar fortunas para as campanhas de seus chefes, desequilibrando e corrompendo o pleito eleitoral e a vontade popular: segundo, na fraude direta ao sistema democrático por meio da compra de votos no Congresso para a aprovação de projetos que interessem ao crime institucionalizado e a seus financiadores.
[...]
Nesse cenário, parece impossível que exista democracia, tamanho o vício da vontade popular.
Cria-se, dessa forma, uma lógica cruel, em que os algozes da sociedade se viabilizem e ganham poder pelas mãos de suas próprias vítimas – os eleitores.
(PONTES; ANSELMO, 2019, p. 129)

A precariedade na administração do sistema político brasileiro e a grande taxa de impunidade dos crimes que ocorrem nesse núcleo favorecem essa “forma de governo”. O sistema eleitoral, responsável pela nomeação daqueles que deveriam representar a vontade popular, teria de ser a saída para a diminuição dessas práticas delituosas. Entretanto, acaba sendo o grande instrumento que sustenta o crime institucionalizado.

São falhas e incongruências do nosso sistema eleitoral que alimentam a manutenção do apoderamento ilícito dos bens públicos por esses grupos criminosos. Apesar de não haver consenso sobre o melhor modelo a adotar, é unânime entre cientistas políticos e especialistas em eleições no Brasil a ideia de que o nosso sistema beneficia ocupantes dos mandatos, facilitando a reeleição e, principalmente amplificando a influência do poder econômico no resultado das urnas.
Como as regras eleitorais são definidas pelos próprios parlamentares, seria uma utopia esperar por uma reforma política que propicie a renovação dos quadros. Ao contrário, o que ocorre é a retroalimentação do ciclo: boa parte do dinheiro público desviado ilegalmente é destinada aos gastos com as campanhas políticas.
(Grifo nosso)
(PONTES; ANSELMO, 2019, p. 128)

Portanto, a criação de leis e projetos, muitas vezes sem nenhuma necessidade ou fundamento, é a principal ferramenta que caracteriza esse tipo de governo, ou seja, a atuação na política a partir de um cargo na administração pública serve como forma favorecimento pessoal e enriquecimento ilícito, dando origem a um governo cleptocrata e, consequentemente, ao crime institucionalizado.

A Consequência da Cleptocracia como Ameaça ao Desenvolvimento do País

Como consequência direta da corrupção, o atraso no desenvolvimento do país pode ser listado como um dos prejuízos mais lesivos que um governo cleptocrata gera, tendo em vista que ações como aprovação de leis, ordenação de gastos e despesas e nomeação de cargos, ocorrem no núcleo do poder público e, se realizadas de maneira diversa de sua finalidade, são capazes de ocasionar sérios danos ao progresso do Estado.

A grande quantidade de projetos aprovados sem necessidade pode ser apontada como uma das principais ferramentas da corrupção. Dentre os milhares de exemplos que podem ser citados, a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas, que ocorreram no Brasil em 2014 e 2016, respectivamente, são apontados como modelos de contratos superfaturados – projetos do crime institucionalizado.

Um estudo feito pela Pluri Consultoria – Consultoria em Gestão, Governança, Finanças e Marketing Esportivo para Clubes, Entidades e Atletas – concluiu que seriam necessários muitos anos para se recuperar o investimento na construção de alguns estádios utilizados durante a Copa do Mundo de 2014.

De acordo com a pesquisa, se fossem mantidas as médias de públicos e as rendas dos campeonatos, no período entre 2013 e 2018, o capital investido só seria restituído no Distrito Federal – Estádio Nacional – em 2739 anos, com 216.343 jogos, no Mato Grosso – Arena Pantanal – em 1216 anos, com 69.310 jogos e no Amazonas – Arena da Amazônia – em 3207 anos, com 118.673 jogos .

A prática dessas atuações comodistas, voltada apenas a satisfazer interesses particulares, causa um grande enfraquecimento da democracia, fazendo com que a população, tomada pela sensação de impunidade, torne-se cada vez mais desacreditada e desconfiada dos sistemas que deveriam reger o desenvolvimento dos projetos nacionais.

O Crime do "Colarinho Branco" como Mito da Periculosidade

Os crimes de “colarinho branco” não podem ser praticados por qualquer pessoa, como ocorre na maioria dos delitos. Esse tipo de crime pode ser definido como aquele executado por agentes que estão em uma posição de respeito e possuem grande influência social, fatos, estes, que resultam na movimentação de volumosas quantias de dinheiro.

Por envolver indivíduos da alta sociedade detentores de grande credibilidade (em geral, os políticos), e pelo fato de esse tipo de crime não possuir um resultado direto e imediato, nem visar a uma vítima específica, pode-se pensar, erroneamente, que não se trata de um crime violento. 

Os resultados nocivos desse delito, cuja base é o desvio de recursos públicos, vão se materializando nas mortes nas estradas devido à falta de conservação, nas mortes nas filas de hospitais públicos, na precariedade das escolas públicas, entre outros inúmeros exemplos de descasos do Poder Público para com a sociedade que são observados todos os dias nos grandes noticiários.

Pontes e Anselmo defendem que um dos mais importantes métodos presentes nesse delito é o poder de nomeação dos juízes nas altas cortes, pois estes são capazes de trazer cada vez mais proteção àqueles que praticam o crime do “colarinho branco”, sendo, portanto, um dos grandes desafios encontrados para suprimir esse ato criminoso:

Essa situação se torna ainda mais grave quando analisada nos tribunais superiores. Segundo levantamento feito pela revista Congresso em Foco, dos quinhentos parlamentares investigados desde 1988, apenas dezesseis foram condenados, o que torna o tribunal um porto seguro para o crime institucionalizado.
[...]
Esse “porto seguro” demonstra a corrida desenfreada, ao longo dos últimos anos, pelo foro privilegiado como tábua de salvação por parte de algumas autoridades da República.
(PONTES; ANSELMO, 2019, p. 225)

Como já foi mencionado, as interpretações e aplicações das leis penais brasileiras muitas vezes favorecem decisões que, ao invés de punir, poupam os agentes que praticam esse crime. É uma via de mão dupla: os empresários injetam propina nas campanhas dos políticos, que atuam visando interesses particulares, encontrando brechas para atuarem em busca de benefícios para empresas, ocasião em que estas conquistam privilégios especiais do governo e viram parceiras de membros da administração pública, que trabalham observando a si mesmos.

O Poder das Indicações Políticas

Ainda sob a ótica dos crimes cometidos pelo alto escalão do governo, as diversas indicações políticas para cargos de grande magnitude são exemplos que acabam por facilitar o cometimento de crimes do “colarinho branco”.

O Poder Executivo tem a prerrogativa para nomear – todos ou a maior parte – membros, que possuem caráter vitalício, dos Tribunais Superiores, dos Tribunais de Contas, de órgãos fiscalizadores entre outros órgãos importantes do nosso judiciário.

Essa vitaliciedade foi imposta como garantia de que esses membros, considerando o grau de importância do cargo que ocupam, tenham liberdade de tomar decisões que contrariem o interesse de componentes do alto escalão, ou até mesmo daqueles que os indicaram; porém, muitas vezes, não é isso que ocorre.

Atuando como uma espécie de “equipe de limpeza” e de “socorro”, os responsáveis por fiscalizar o andamento dos gastos governamentais, por exemplo, ignoram irregularidades presentes em processos licitatórios e em contratos e aprovam contas inadequadas somente para não desagradar seu “padrinho político”.

Como possuem competência para processar e julgar autoridades que geralmente possuem foro privilegiado, esses órgãos se valem de sua influência e expertise para interpretar o ordenamento jurídico pátrio de forma a melhor atender os seus interesses, bem como se utilizam de estratégias para atrasar o cumprimento da pena de réus condenados, servindo-se, por exemplo, da dinâmica recursal brasileira, que dá brecha à interposição de recursos desnecessários e protelatórios.

A atribuição de aprovar ou rejeitar as contas do governo e fiscalizar os gastos públicos é dos servidores dos Tribunais de Contas, fruto de indicações políticas. Com isso, eles detêm o poder de desconsiderar qualquer tipo de falhas e erros que poderiam prejudicar aqueles que foram responsáveis por suas nomeações.

Um exemplo de como a “equipe de limpeza” atua pôde ser observado na Operação Quinto do Ouro, uma das etapas da Lava Jato, que foi baseada na declaração do ex-presidente do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, Jonas Lopes, que levou à prisão, pelo recebimento de propina de empresários, do então presidente da Assembleia Legislativa, Jorge Picciani.

De acordo com matéria do portal de notícias G1, Lopes indicou que os conselheiros recebiam mesadas de empresas:

Segundo Jonas Lopes, o acordo com feito em uma reunião na casa de Jorge Picciani (PMDB), então presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), afastado depois que foi preso.
[...]
O presidente do TCE disse que a mesada acertada foi de R$ 70 mil a seis conselheiros, com exceção de uma. Os valores, ainda de acordo com ele, eram operados por Lélis Teixeira e pagos ao filho de Jonas, Jonas Lopes Carvalho Neto.
[...]
Jonas Lopes foi afastado do cargo depois da Operação Quinto do Ouro, que revelou o recebimento de propina por membros do TCE. Na sequência, o ex-presidente da Corte pediu aposentadoria e definitivamente foi afastado, recebendo o salário normalmente.
Ele disse que, em 2013, uma auditoria dos transportes constatou “diversas irregularidades” nos modais e que conselheiros do órgão sugeriram que ele procurasse dirigentes da Fetranspor para pedir propina. “Em busca de vantagem indevida para que a atuação do tribunal fosse minimizada”.
(Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/ex-presidente-do-tce-presta-depoimento-na-justica-federal-do-rio.ghtml)

Sendo assim, o crime institucionalizado está presente quando tais integrantes atuam em benefício próprio e de terceiros, ignorando irregularidades e facilitando ações danosas e prejudiciais à população, o que passa a ser uma afronta direta à democracia, pois deveriam agir buscando o melhor para a coletividade.

Referência:

ANSELMO, Márcio; PONTES, Jorge. Crime.gov: quando corrupção e governo se misturam. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.