Crime Institucionalizado - A Criminalidade Política no Brasil

É comum que se veja diariamente os veículos de comunicação divulgando notícias sobre as diversas práticas de corrupção no Brasil. Os “crimes institucionalizados”, assim chamados, podem ser caracterizados como aqueles praticados por autoridades que possuem grande influência, através de atividades que, num primeiro momento, são consideradas lícitas, mas que geram resultados ilícitos.

Um dos efeitos que vale ser destacado é a formação de um ciclo vicioso entre políticos e empresas privadas: são criados diversos privilégios que facilitam a inserção dessas instituições para prestação de serviços públicos e, em contrapartida, elas financiam as campanhas políticas desses facilitadores para que esse ciclo continue.

Esse crime, que não tem vítimas específicas, gera grande prejuízo à população que fica à mercê da má administração daqueles que deveriam prezar pelo bem-estar de todos em geral. 

Os hospitais com atendimentos precários, a falta de creches para atendimentos dos necessitados, estradas instáveis e inseguras são exemplos do descaso político, tão presente em nosso país, que colocam em risco a vida dos cidadãos.

Parece que se está diante de uma contradição, uma vez que a população é a responsável por eleger seus representantes políticos e, ao invés destes trabalharem em favor daqueles, o que se nota são governantes agindo em favor próprio, buscando benefícios particulares.

Discutir-se-ão no presente trabalho, portanto, são as condições que permitem a execução desse crime, os possíveis autores e vítimas, as particularidades que possibilitam a caracterização desse delito, a diferenciação deste em relação a outras atividades ilícitas e como se desempenha a criminalidade política no nosso país. 

A Evolução da Tipificação de Organização Criminosa no Brasil

A Organização das Nações Unidas (ONU) editou, em 1988, a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, conhecida, também, como “Convenção de Viena”. Tal documento tinha como principal objetivo a busca por alternativas para combater o tráfico de entorpecentes. Nessa ocasião, os países que aderiram à Convenção assumiram o compromisso de tornar crime a “lavagem de dinheiro” - uma prática que facilitava as ações relacionadas às drogas. Após três anos, a Convenção foi promulgada pelo Brasil, pelo então presidente da República, Fernando Collor, através do Decreto de 26 de junho de 1991 (PONTES; ANSELMO, 2019, p. 84).

Quase dez anos depois, em 2000, a ONU iniciou o desenvolvimento da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional – Convenção de Palermo – que incentivava o combate à lavagem de dinheiro nos países signatários (PONTES; ANSELMO, 2019).

Apenas em 2004, nos termos do Decreto Presidencial n° 5.015/2004, houve a promulgação da Convenção de Palermo contra o Crime Organizado, levando ao reconhecimento da lavagem de dinheiro como sendo, efetivamente, um crime. Naquele contexto, a Convenção caracterizava o chamado “grupo criminoso organizado” como sendo:

Grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material .
(BRASIL, Decreto nº 5.015).

Tal decisão gerou controvérsias no âmbito dos Tribunais Superiores, sob o argumento de que a Convenção não poderia suprir a omissão em relação à efetiva definição jurídica de “organização criminosa”. Segundo o Habeas Corpus n° 121835, esse instrumento internacional não deveria ser utilizado para preencher lacunas decorrentes de omissões legislativas e, por isso, não poderia dar qualquer definição jurídica para o termo “organização criminosa”.

Nas palavras do Ministro Celso de Mello, relator do HC supracitado, apenas uma lei interna poderia legitimar a regulamentação acerca da tipificação de condutas criminosas, defendendo que convenções internacionais não poderiam suprir omissões ou inexistência de dispositivo penal:

Cumpre ter presente, sempre, que, em matéria penal, prevalece o postulado da reserva constitucional da lei em sentido formal, pois – não é demasiado enfatizar – a Constituição da República somente admite a lei interna como única fonte formal e direta de regras de direito penal.
[...]
Mostra-se constitucionalmente relevante, portanto, como adverte a doutrina (LUIZ FLÁVIO GOMES/VALÉRIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, “Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, vol. 4/122, 2008, RT), o entendimento segundo o qual, “no âmbito do Direito Penal incriminador, o que vale é o princípio da reserva legal, ou seja, só o Parlamento, exclusivamente, pode aprovar crimes e penas. Dentre as garantias que emanam do princípio da legalidade, acham-se a reserva legal (só o Parlamento pode legislar sobre o Direito Penal incriminador) e a anterioridade (‘lex populi’ e ‘lex praevia’, respectivamente). Lei não aprovada pelo Parlamento não é válida[...]”. 
[...]
Não se pode também desconhecer, considerado o princípio constitucional da reserva absoluta da lei formal, que as cláusulas de tipificação e de cominação penais, como a própria formulação conceitual de “organização criminosa”, para efeito de repressão estatal, subsumem-se ao âmbito das normas domésticas de direito penal incriminador, regendo-se, em consequência, pelo postulado da reserva de Parlamento, como adverte autorizado do magistério doutrinário 
[...].
Isso significa, pois, que só lei interna (e não convenção internacional, como a Convenção de Palermo) pode qualificar-se, constitucionalmente, como a única fonte formal direta legitimadora da regulação normativa concernente à tipificação ou à conceituação de organização criminosa
(Grifo nosso)
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 121.138/PE. Rel. Min. Celso de Mello, publicado em 13 de outubro de 2015).

Conclui-se que, apesar de o Brasil ter recepcionado a Convenção de Palermo, a mesma não poderia ser utilizada, isoladamente, para tipificar o crime “organização criminosa”, pois era necessário que houvesse um dispositivo interno para que o termo fosse criminalizado.

Tendo em vista a dificuldade de tipificação daquelas condutas, dada a grande margem de controvérsias, foi através da publicação da Lei 12.850/2013 que o país passou a ter uma norma estruturada para que houvesse um enfrentamento lícito e genuíno das organizações criminosas.

Atualmente, no Brasil, a organização criminosa pode ser definida através da Lei n° 12.850, de 2 de agosto de 2013, que dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção de prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal, além de dar outras providências. Nesse ínterim, o §1° do artigo 1°, do referido diploma legal, caracteriza a organização criminosa como sendo uma associação de pessoas, onde há divisão de tarefas com intuito de obter vantagem de qualquer natureza, através da prática de infrações penais, em que as penas máximas sejam superiores a quatro anos ou que sejam de caráter transnacional (que engloba praticamente todas as ações criminais motivadas pelo lucro e cometidas por grupos organizados, envolvendo mais de um país).

Art. 1º Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado. § 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
(BRASIL, Lei n° 12.850)

Nas palavras de Vicente Greco Filho (2014), a elaboração da norma supramencionada teve como objetivo “[...] além de criar novos institutos, adequar a legislação aos ditames da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), e acolher as teses mais modernas da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA”.

Depreende-se, portanto, que a Convenção de Palermo foi um instrumento importantíssimo para a elaboração da Lei de Crime Organizado no Brasil. No entanto, ela, por si só, não poderia tipificar qualquer conduta criminosa. Daí a necessidade da confecção de uma norma interna, Lei n° 12.850/13, para a caracterização do crime de organização criminosa e para a extinção de qualquer tipo de lacuna ou omissão legislativa acerca do presente tema.

A Estruturação da Divisão de Tarefas na Organização Criminosa

A redação dada pelo artigo 1° da Lei de Crime Organizado indica, logo no início, a necessidade da presença de quatro ou mais pessoas que se organizem estruturalmente e que procedam à “divisão de tarefas”, mediante prática de infrações penais, para a obtenção de vantagem de qualquer natureza.

Pois bem. A essência desse tipo penal consiste na vontade dos agentes em se organizarem para que, premeditadamente, possam cometer crimes graves – considerando que a pena dos mesmos deverá ser superior a quatro anos – na intenção de obter vantagens de qualquer natureza, através desta repartição de tarefas.

Nas palavras de Cézar Roberto Bittencourt (2014) deverá, necessariamente, haver um “mínimo de organização hierárquica, estável e harmônica, com distribuição de funções organizativas, ou, nos termos legais, que constitua uma associação estruturalmente organizada e com divisão de tarefas”. No mesmo sentido, Adel El Tasse preceitua que:

Com efeito, a hierarquia estrutural está ligada diretamente à própria ideia teórica de organização criminosa, na qual deve existir uma detalhada e persistente cadeira de comando a garantir que as atividades criminosas se desenvolvam de forma eficiente no atingimento dos objetivos do grupo delinquencial.

Essa estrutura ordenada e caracterizada pela divisão de funções, faz com que o crime organizado seja comparado a uma “estruturação empresarial”, na medida em que essa área da criminalidade é voltada, principalmente, para a atividade lucrativa – assim como ocorre em todas as empresas. Diante disso, Luiz Flávio Gomes (2013) define que:

Não se pode banalizar o conceito de crime organizado que, com frequência, conta com planejamento ‘empresarial’, embora isso não seja rigorosamente necessário. Não há como confundir esse planejamento com o mero programa delinquencial (que está presente em praticamente todos os crimes dolosos). A presença de itens do planejamento empresarial (controle do custo das atividades necessárias, recrutamento controlado de pessoal, modalidade do pagamento, controle de fluxo de caixa, de pessoal e de ‘mercadorias’ ou ‘serviços’, planejamento de itinerários, divisão de tarefas, divisão de territórios, contatos com autoridades, etc.) constitui forte indício do crime organizado.
(Grifo nosso).

Da mesma forma, Jorge Pontes e Márcio Anselmo (2019, p. 134) defendem que:

Em geral, todas as partes que atuam nesses esquemas estão acordadas: as empresas vencedoras da licitação; as que apresentam propositalmente para perder; os agentes públicos responsáveis pela contratação; os políticos que os nomearam e os intermediários. Tudo isso torna a investigação mais difícil e a maleabilidade da organização criminosa, maior.
[...]
Todos os participantes do esquema concorrem para o resultado nocivo e por isso não há um único elo que, atacado, possa comprometer o sucesso da empreitada delituosa.

As múltiplas características do crime organizado fazem com que haja uma fragilidade nos poderes do nosso Estado. No Brasil, a integração desse crime com o Poder Público resulta no principal modo de atuação dessa prática ilícita, uma vez que esta se mistura com as atividades estatais e se camufla a elas. Por esse motivo, esse delito é de difícil identificação e, como consequência, há uma grande taxa de impunidade. Segundo Hassemer (1993, p. 85):

A criminalidade organizada não é apenas uma organização bem-feita não é somente uma organização internacional, mas é, em última análise, a corrupção do Legislativo, da Magistratura, do Ministério Público, da polícia, ou seja, a paralisação estatal no combate à criminalidade. Nós conseguimos vencer a máfia russa, a máfia italiana, a máfia chinesa, mas não conseguimos vencer uma Justiça que esteja paralisada pela criminalidade organizada, pela corrupção.
[...]
É uma criminalidade difusa que se caracteriza pela ausência de vítimas individuais, pela pouca visibilidade dos danos causados, bem como um novo modus operandi (profissionalidade, divisão de tarefas, participação de ‘gente insuspeita’, métodos sofisticados, etc.). Ainda mais preocupante, para muitos, é fruto de uma escolha individual e integra certas culturas.

A dificuldade que se tem em identificar o chefe do crime organizado decorre dessa divisão de tarefas e das atividades minimamente planejadas. Ademais, se cada grupo buscar se aperfeiçoar em um campo específico, a atuação da organização como um todo terá vários núcleos especializados. Dessa forma, a identidade do líder fica cada vez mais próxima do anonimato, garantindo, assim, o grande sucesso desta prática delituosa (PONTES; ANSELMO, 2019).

Referências:

ANSELMO, Márcio; PONTES, Jorge. Crime.gov: quando corrupção e governo se misturam. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.

BITTENCOURT, Cézar Roberto. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014.

BRASIL, Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d0515.htm)>. Acesso em 18 agosto 2019.

BRASIL, Lei n° 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12850.htm> . Acesso em 18 agosto 2019

FILHO, Vicente Greco. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei n. 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014.

GOMES, Luiz Flávio. O Brasil é uma democracia ou uma cleptocracia? Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/o-brasil-e-uma-democracia-ou-uma-cleptocracia/17108. Acesso em 14 outubro 2019.

HASSEMER, Winfried. Três temas de Direito Penal. Porto Alegre: Fundação Escola Superior do Ministério Público, 1993.