Diretrizes Regulatórias do Setor de Transportes Aplicáveis ao Transporte Individual do Modelo Uber

Neste artigo da série sobre transporte urbano, vamos analisar a aplicação de diretrizes regulatórias do setor de transportes, previstas tanto na Constituição Federal de 1988 quanto em leis federais, sobre os serviços de transporte individual.

O direito fundamental ao transporte

 A Constituição Federal de 1988 prevê o transporte como sendo direito fundamental social, o que está expresso no artigo 6º da Carta Maior:

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (grifo acrescentado)

Consigne-se que é recente a inclusão deste direito no texto do referido dispositivo, que se deu por meio da Emenda Constitucional nº 90, de 2015, consubstanciando a sua terceira alteração, desde o início da vigência da atual Lex Mater.  De fato, anteriormente, o artigo 6º sofreu mudanças mediante as Emendas Constitucionais nº 26, de 2000 e nº 64, de 2010, para incluir os direitos à moradia, e à alimentação, respectivamente.

Quanto ao direito ao transporte, mesmo antes da sua inclusão no artigo 6º, já havia autores que defendiam o seu status de direito fundamental:

“Antes da referida Emenda podia-se entender o direito ao transporte, também, como direito social e fundamental? No entender dos ora Autores, sim. Mas um direito social e fundamental em torno do qual dúvidas interpretativas podiam-se mostrar mais constantes; um direito mais suscetível a entendimentos variados sobre sua vigência e validade; enfim, um direito ao transporte, antes da Emenda nº 90, mais limitado à ideia de função social da cidade, exportada do caput do Art. 182 da Constituição da República para as Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais” (grifo acrescentado)

Observa-se que os autores associam o direito ao transporte como englobado no conceito de função social da cidade. No mesmo sentido, José dos Santos Carvalho Filho, ao discorrer sobre o conceito, afirma que:

“Desenvolver as funções sociais de uma cidade representa implementar uma série de ações e programas que tenham por alvo a evolução dos vários setores de que se compõe uma comunidade, dentre eles os pertinentes ao comércio, à indústria, à prestação de serviços, à assistência médica, à educação, ao ensino, ao transporte, à habitação, ao lazer e, enfim, todos os subsistemas que sirvam para satisfazer as demandas coletivas e individuais. Ora, esse desenvolvimento social, que lato sensu inclui também o desenvolvimento econômico, não tem outra finalidade senão a de, em última instância, proporcionar e garantir o bem-estar dos habitantes” (grifo acrescentado)

Ademais, deve ser ressaltado que, além de estar englobado no conceito de função social da cidade, é fácil perceber que o direito ao transporte também assume um caráter instrumental para o exercício de outros direitos sociais, como a educação, a saúde, o trabalho, a alimentação e o lazer, dada a necessidade de deslocamento físico para acessar os serviços, tanto no meio urbano quanto no meio rural. 

Até mesmo o exercício da livre iniciativa, no âmbito econômico, depende do transporte de cargas, que é indispensável para o desenvolvimento nacional. Estes aspectos inerentes ao direito ao transporte foram ressaltados na justificação da Proposta de Emenda Constitucional, da Deputada Luiza Erundina:

Vetor de desenvolvimento relacionado à produtividade e à qualidade de vida da população, sobretudo do contingente urbano, o transporte destaca-se na sociedade moderna pela relação com a mobilidade das pessoas, a oferta e o acesso aos bens e serviços. Como é de amplo conhecimento, a economia de qualquer país fundamenta-se na produção e no consumo de bens e serviços, como também no deslocamento das pessoas, ações que são mediadas pelo transporte.” 

Sendo assim, fica claro que a inclusão do direito ao transporte no artigo 6º, da Carta Magna, trouxe maior destaque à sua relevância, sendo agora expressamente considerado como um direito fundamental social. Além do mais, não se deve olvidar que o direito em tela não deixa de se caracterizar como uma das faces do direito de ir e vir, previsto no artigo 5º, caput (direito à liberdade), e inciso XV (direito a locomoção, entrada, permanência e saída, no território nacional). 

Faz-se necessário examinar um último ponto, não menos importante, a respeito do tema. No que se refere à efetiva garantia do direito ao transporte, o que mudou com a sua inclusão no artigo 6º da constituição? O ponto principal a ser analisado, ainda que de forma breve, é sobre a possibilidade (ou não) do pleito, inclusive individual, deste direito em face do Poder Judiciário, como já acontece com outros direitos sociais, a exemplo da saúde e da educação. Alguns autores defendem a possibilidade desta hipótese:

“Nesta linha, entendendo os direitos sociais como expectativas positivas, deve o cidadão interessado agir em busca da satisfação do seu direito, invocando, repita-se, a prestação jurisdicional ou qualquer outro meio de acesso ao Poder Estatal para a consecução de seus objetivos. (...)

Portanto, confirmando-se o entendimento que se esboça e, a partir da mencionada, necessária e constante dialogia institucional no país, por também serem os direitos sociais considerados fundamentais, devem poder ser, a qualquer tempo, pleiteados perante o Estado, conferindo-se aos cidadãos brasileiros a garantia de inúmeros direitos estampados na Carta Magna nacional.” (grifo acrescentado)

De todo modo, o mais importante é que a noção da abrangência conferida pela Constituição de 1988 sobre o direito ao transporte, como um direito fundamental social, jamais poderá deixar de ser considerada pelo Estado, sobretudo por ocasião do emprego de medidas restritivas sobre serviços de transporte. 

Regulação do transporte individual na perspectiva do equilíbrio urbano e ambiental

Os fundamentos que justificam a intervenção regulatória do Estado sobre determinado setor da economia podem ser, para fins didáticos, separados em dois grupos: (1) a busca do equilíbrio de mercado, mediante a correção de suas falhas no setor em tela, o que engloba temas como a defesa do consumidor e da concorrência; (2) a tutela de outros valores constitucionais influenciados pelo exercício de determinada atividade econômica. Nesta subseção, a abordagem será em torno deste segundo tipo de fundamento regulatório, mais especificamente no que se refere ao impacto do transporte privado individual sobre o equilíbrio urbano. Na subseção seguinte, serão considerados os aspectos relacionados ao equilíbrio de mercado, do setor em tela. 

O transporte individual de passageiros, tradicionalmente associados aos serviços de táxis, tem sido quase sempre enquadrado em modelos de negócios fortemente regulados pelas Administrações Públicas locais. No entanto, a literatura especializada tem apontado para o caráter cíclico da regulação do setor em diversas cidades do mundo, indicando inclusive que tais serviços “nasceram” privados, tendo-se, porém, aumentado a regulação sobre eles em decorrência de imperfeições de mercado (assimetria de informações, externalidades negativas, etc.). Neste sentido, a experiência mostra que em determinados períodos, desde século XX, o mercado de transporte individual de passageiros sofreu processos de desregulação, diminuindo-se as restrições de entrada e o controle estatal sobre os preços, por exemplo. O exemplo mais lembrado de êxito na desregulamentação do setor é o da Holanda.

Não obstante, o advento de novas tecnologias baseadas no modelo da economia compartilhada trouxe um novo horizonte de desafios regulatórios para a gestão do equilíbrio urbano. Trate-se dos modelos de negócios implementados por empresas como a Uber, as 99 e a Cabify, caracterizados como inovações disruptivas.

Possíveis impactos do transporte individual sobre o sprawl urbano

Antes de mais nada, deve-se consignar que o impacto nos custos de deslocamento urbano provocados pelo advento do novo modelo é capaz de gerar consequências significativas na dinâmica das cidades. Neste sentido, o principal efeito atribuído à redução no custo do transporte é o espraiamento urbano (ou sprawl urbano), que consiste na expansão da dimensão territorial da zona urbana, caracterizado por alguns padrões de uso e ocupação do solo urbano, dentre eles: 

“(i) desenvolvimento em áreas com baixa densidade populacional, geralmente por meio do uso e da ocupação de áreas até então agricultáveis nos limites das cidades; (ii) efeito “scattered development”, ou seja, ênfase na segmentação e especialização do uso do solo, onde grandes áreas são exclusivamente dedicadas ou para uso comercial, ou para uso industrial, ou ainda para uso residencial, em oposição às composições mistas encontradas nas áreas centrais das cidades; e (iii) efeito “leapfrog development”, ou seja, áreas de solo vagas entre aglomerações urbanas localizadas nas franjas das cidades. Tal efeito é geralmente motivado por questões de especulação imobiliária.”

Alguns problemas de ordem ambiental, econômica e de saúde pública estão associados ao sprawl urbano, sendo por isso desaconselhado por instituições como a OCDE e o Banco Mundial. 

Impactos sobre o tráfego urbano e sobre a emissão de gases poluentes

Além espraiamento, o problema dos congestionamentos urbanos é uma das principais preocupações dos gestores públicos municipais em relação à expansão dos serviços de transporte individual de passageiros. Este tipo de problema, muito comum nas grandes cidades de todo o mundo, implica não só na perda de produtividade econômica e de horas de lazer para os citadinos, como também na elevação da emissão de gases poluentes na atmosfera. Não é por outro motivo que tanto a Lei nº 12.587/2012 (art. 6º, II) quanto a Lei nº 10.233/2001 (art. 11, IX) preveem expressamente a prioridade do uso das vias públicas pelos meios de transporte público coletivo e os não motorizados em detrimento do transporte individual.

Sobre esta questão, entendo que a regulação municipal dos transportes urbanos deva necessariamente considerar alguns pontos importantes. Em primeiro lugar, não se deve contestar as referidas diretrizes regulatórias previstas em ambas as leis federais, pois não há controvérsias quanto ao impacto negativo que a expansão do transporte individual possa causar no tráfego urbano. Só que algo que pouco se discute precisa também ser considerado. Os referidos dispositivos legais não se referem exclusivamente aos serviços de transporte urbano individual, que englobam os táxis e os novos modelos do tipo Uber. No conceito de transporte individual também deve ser incluído o transporte individual privado, mediante veículo próprio, o que, a seu turno, não configura nenhum tipo de serviço. 

Diante desta situação, tendo em vista o direito fundamental ao transporte (art. 6º, da CRFB), o direito de liberdade de locomoção (art. 5º, XV, da CRFB), e o princípio da isonomia (art. 5º, caput, da CRFB), a regulação estatal não poderá conferir tratamento mais gravoso aos usuários de serviços de transporte privado individual, quando comparado ao tratamento conferido àqueles que se locomovem por meio de veículos automotores próprios. Esta acepção da matéria, porém, somente deve ser observada quando os fundamentos da regulação se aplicarem indistintamente a ambas as situações. Ora, é justamente isso que ocorre quando considerados os aspectos relativos à qualidade do tráfego urbano, à emissão de gases poluentes na atmosfera, ao espraiamento urbano e a outros aspectos influenciados pelo transporte individual, independentemente se configurado como serviço ou como uso de veículo automotor próprio.

Portanto, a principal implicação deste entendimento é que as restrições e controle de entrada no mercado de transporte individual não poderão ser implementados com fundamento na qualidade do tráfego urbano e na redução emissão de gases poluentes, sob pena de clara violação do princípio da isonomia, e dos direitos fundamentais ao transporte e à livre locomoção. É que, neste caso, os usuários dos serviços de táxis, Uber, e similares, suportarão um ônus não estendido àqueles que se locomovem mediante veículos próprios. 

Não obstante, há uma série de mecanismos jurídicos disponíveis aos gestores das cidades para promover a prioridade dos transportes públicos coletivos e não motorizados sobre os transportes individuais (incluindo os serviços e o uso de veículo próprio): 

“Esses gestores têm focado suas políticas no sentido de criar incentivos para que as pessoas substituam o transporte individual de passageiros (públicos ou privados) por transporte coletivo. Neste sentido, os gestores urbanos manipulam “carrots & sticks”, ou seja, buscam reduzir custos pecuniários (subsídios) e de oportunidade (aumento na velocidade de deslocamento) dos transportes coletivos e imputam custos adicionais aos veículos que servem de transporte individual de passageiros, tais como impostos sobre propriedade de veículos, taxas, seguros, pedágios urbanos, não utilização de linhas e canaletas exclusivas para ônibus, rodízios de placas, (...)” (grifo acrescido)

Não resta dúvida de que, considerados estes pontos importantes, a gestão do equilíbrio urbano e ambiental por parte do Município, é indispensável para a concretização dos direitos e valores fundamentais previsto na Carta Política. 

Possíveis vantagens dos novos serviços de transporte individual para o equilíbrio urbano 

Embora uma das maiores vantagens associadas aos transportes individuais por aplicativos tenha sido a redução dos preços e maior democratização do acesso a este tipo de serviço, é fato notório que seus preços não se comparam com aqueles praticados no âmbito dos transportes públicos coletivos. Neste sentido, não parece razoável imaginar que haverá competição entre estas duas categorias de transporte urbano, sobretudo ao se considerar as viagens de ida e volta no trajeto casa-trabalho de longas distâncias. Seria mais razoável pensar que a concorrência dos motoristas da Uber e similares se dê no nicho de mercado dos táxis, que envolve viagens mais curtas e/ou esporádicas, evidentemente ampliando o acesso pela população ao serviço, tendo em vista a redução dos preços.

Considerando-se tal peculiaridade, é de se esperar que os novos serviços possam melhorar a acessibilidade das vias expressas de maior mobilidade urbana, atuando de forma complementar aos transportes públicos urbanos. Foi justamente neste sentido que se configurou o exemplo holandês por ocasião da desregulamentação dos serviços de táxis, há pouco mencionado. Evidentemente, é necessário, para que sistema funcione, que o Poder Público disponibilize serviços públicos de transporte com qualidade (segurança, conforto, razoável rapidez, etc.), de modo a alcançar as diretrizes setoriais do transporte que tratam da integração dos modais.

Além destas implicações, o compartilhamento oneroso de um mesmo veículo automotor ao longo do dia tende a diminuir a demanda por estacionamento nas regiões centrais das cidades, considerando-se a possibilidade de cidadãos que possuam veículos próprios optem por utilizar a Uber ou similares em determinadas circunstâncias. Este tipo de uso do serviço possivelmente também ocorrerá para o lazer, em horários e dias não comerciais, inclusive por consumidores de bebidas alcoólicas, evitando-se acidentes de trânsito. 

Por fim, deve-se ressaltar que a democratização do acesso aos novos serviços de transporte individual garante a um número maior de pessoas uma melhora na autonomia do uso do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana (art. 3º, da LPNMU), e, portanto, em maior acessibilidade (art. 4º, III, da LPNMU). Contribui-se, assim, para uma maior inclusão social neste tipo de serviço, tradicionalmente elitizado. 

Regulação do transporte individual com fundamento no equilíbrio de mercado 

Além dos aspectos urbanísticos e ambientais analisados na anteriormente, as justificativas que tradicionalmente têm sido alegadas pelo Estado para a regulação dos serviços de táxis estão associadas ao equilíbrio de mercado. Trata-se, sobretudo, da necessidade de: (1) redução da assimetria de informação; (2) garantia de segurança na atividade; (3) e melhoria da qualidade do serviço.  Não obstante, as inovações tecnológicas implementadas por empresas como a Uber parecem garantir maior efetividade no alcance destas diretrizes, atribuindo a estes serviços uma considerável capacidade de auto-regulação.

No tocante à assimetria de informação, pode-se dizer que o modelo Uber reduziu consideravelmente os custos de transação do serviço, tanto para o motorista quanto para o usuário. Para o usuário, existe a disponibilidade, em tempo real, de informações acerca da quantidade e proximidade de veículos disponíveis, além da estimativa, quase sempre exata, do preço a ser pago no trajeto escolhido. Muito embora já existam há algum tempo aplicativos associados ao serviço de táxis que forneçam informações acerca da disponibilidade e proximidade dos veículos (99 Táxi, v.g.), nada informam sobre as estimativas de preços a serem pagos pelo usuário, informação esta que, em muitos casos, é decisiva para a escolha do transporte individual. Além destas, Gustavo Binenbojm chama a atenção para outros tipos de informações acessíveis pelo usuário da Uber e similares: 

“Ao contrário do táxi, o UBER fornece ao potencial usuário diversas informações relevantes, notadamente (i) informações sobre o perfil do motorista, (ii) grau de segurança e conforto de veículo, (iii) trajeto a ser percorrido e (iv) estimativa de preço, diminuindo intensamente assimetrias de informação relacionadas à qualidade do serviço a ser prestado. Vale registrar que o aplicativo fornece ainda a avaliação dos usuários daquele motorista especificamente designado para atendimento ao consumidor do serviço (sistema de scoring)” (grifo acrescido) 

Desse modo, fica claro que a plataforma tecnológica fornecida pelo aplicativo garante amplo acesso a informações relevantes para a tomada de decisão. No serviço de táxis, durante muito tempo, o controle dos preços pelos Municípios foi o único mecanismo adotado para a amenizar os efeitos da assimetria de informação. Na Uber, a seu turno, por utilizar um sistema dinâmico de formação de preços, baseado na oferta e demanda do serviço em determinado momento, além de permitir que o usuário tenha conhecimento prévio do preço a ser pago, também é capaz de auto-regular o excesso de oferta e de demanda, contribuindo para o a eficiência e equilíbrio deste mercado.

Quanto ao parâmetro da segurança, dois aspectos merecem ser abordados. O primeiro diz respeito à segurança pública, que, no caso da Uber, o próprio fornecimento amplo de informações sobre o motorista, sobre o usuário, sobre o veículo e sobre a viajem, trazem maior sensação de segurança tanto aos usuários quanto aos motoristas. Com a tecnologia de GPS largamente utilizada nos dias de hoje, é possível até mesmo que ambos compartilhem a viagem com amigos ou familiares, em tempo real, para fins de segurança. Ademais, exige-se dos motoristas a certidão negativa de antecedentes criminais, exigência que está expressa na LPNMU (art. 11-B, IV). 

Em segundo lugar, a segurança quanto a acidentes é garantida mediante a imposição de requisitos para a entrada, que assegurem as condições adequadas do veículo, bem como a habilitação do motorista, além da obrigatoriedade da contratação de seguros (Lei 12.587/2012, art. 11-A e art. 11-B). Alguns destes requisitos já eram exigidos pelas empresas mediadoras (Uber, v.g.) antes mesmo do advento da regulamentação federal inserida na LPNMU. 

Continuando, a regulação da qualidade do serviço é um dos parâmetros que mais avançou com o novo modelo de transporte individual. Em primeiro lugar, um aspecto que o diferencia substancialmente do modelo clássico adotado no serviço de táxis é a livre concorrência. Neste sentido, há um estímulo à competição entre as empresas mediadoras, a exemplo da Uber, da 99, e da Cabify, o que implica em permanente estímulo à inovação tecnológica na busca de maior qualidade do serviço. Essa é talvez seja a maior diferença entre o modelo novo e o tradicional, pois incorporou-se o notório processo de evolução tecnológica, atualmente vivenciado, no (até então) estático setor de transporte urbano individual. 

Associa-se à concorrência das empresas mediadoras o controle de qualidade dos usuários sobre os serviços prestados por cada motorista, pelo já mencionado sistema de notas (scoring). Além da média das notas acumuladas pelo motorista estar disponível para o usuário no momento da solicitação da viagem, a eventual redução do valor da avaliação abaixo de um patamar estipulado pela empresa ensejará o banimento do motorista do aplicativo. O mesmo sistema scoring também é aplicado ao usuário, com os mesmos efeitos.

Este novo panorama trazido pelas referidas inovações disruptivas no setor de transporte urbano individual se contrapõe consideravelmente ao modelo tradicional. Neste sentido, segundo Gustavo Binenbojm: 

“o advento desse novo modelo de negócios, utilizado para facilitar o relacionamento entre motoristas e usuários do serviço de transporte individual de passageiros, afetou todas as bases regulatórias relacionadas ao modelo tradicional de concessão de outorgas de autorizações a taxistas Até aquele momento, os taxistas gozavam de exclusividade na prestação do serviço de transporte individual de passageiros e a entrada de novos prestadores no mercado era – e ainda é – muito difícil, tendo em vista obstáculos burocráticos e limites no número de concessões de outorga de autorizações para táxi, arbitrariamente definidos nas legislações locais.

Bem organizados, os sindicatos de taxistas exercem lobby constante sobre políticos, o que explica as diversas isenções tributárias aos proprietários de táxis, bem como a manutenção das aludidas limitações no número de outorga de autorizações nas legislações locais que constituem indícios fortes de captura regulatória.”(grifo crescido)

Acrescenta, ainda, o ilustre doutrinador, que geralmente as barreiras de entrada tradicionalmente adotado por muitos Municípios: 

“não encontram respaldo em evidências empíricas sobre as reais necessidades percebidas no mercado. (...) Porém, o que é certo é a existência – notória nos maiores Municípios – de um mercado secundário marginal operado por titulares de autorizações, em que as licenças são controladas por oligopólios de grupos empresariais que efetuam o ‘aluguel’ dos táxis a terceiros interessados através do mecanismo de ‘diárias’, o que sugere um forte indício de prática de sobrepreço no mercado de prestação de serviço de transporte público de passageiros por táxi.”(grifo acrescido)

Antes de finalizar, não se pode deixar de comentar sobre a recente decisão do Supremo Tribunal Federal em sede do Recurso Extraordinário nº 1054110/SP (relatoria do Ministro Roberto Barroso), acerca da “proibição ou do uso de carros particulares para o transporte remunerado individual de pessoas” (tema de repercussão geral nº 967). O RE foi interposto pela Câmara Municipal de São Paulo contra decisão do TJ/SP, que declarou a inconstitucionalidade da Lei municipal 16.279/15, que proibiu o transporte nesta modalidade na capital paulista. Por decisão unânime pelo plenário, em maio de 2019, o STF firmou as seguintes teses de repercussão geral:

I - A proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência;

II - No exercício de sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os Municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (CF/1988, art. 22, XI).

Note-se que, de forma unânime, a Suprema Corte adotou o entendimento que vem sendo defendido ao longo deste trabalho, no que se refere aos limites que deverão ser observados pelos entes federativos no âmbito da intervenção regulatória sobre as atividades econômicas, neste caso, em relação ao serviço de transporte urbano individual. Neste sentido, vale colacionar a ementa do referido julgado:

DIREITO CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. TRANSPORTE INDIVIDUAL REMUNERADO DE PASSAGEIROS POR APLICATIVO. LIVRE INICIATIVA E LIVRE CONCORRÊNCIA. 1. Recurso Extraordinário com repercussão geral interposto contra acórdão que declarou a inconstitucionalidade de lei municipal que proibiu o transporte individual remunerado de passageiros por motoristas cadastrados em aplicativos como Uber, Cabify e 99. 2. A questão constitucional suscitada no recurso diz respeito à licitude da atuação de motoristas privados cadastrados em plataformas de transporte compartilhado em mercado até então explorado por taxistas. 3. As normas que proíbam ou restrinjam de forma desproporcional o transporte privado individual de passageiros são inconstitucionais porque: (i) não há regra nem princípio constitucional que prescreva a exclusividade do modelo de táxi no mercado de transporte individual de passageiros; (ii) é contrário ao regime de livre iniciativa e de livre concorrência a criação de reservas de mercado em favor de atores econômicos já estabelecidos, com o propósito de afastar o impacto gerado pela inovação no setor; (iii) a possibilidade de intervenção do Estado na ordem econômica para preservar o mercado concorrencial e proteger o consumidor não pode contrariar ou esvaziar a livre iniciativa, a ponto de afetar seus elementos essenciais. Em um regime constitucional fundado na livre iniciativa, o legislador ordinário não tem ampla discricionariedade para suprimir espaços relevantes da iniciativa privada. 4. A admissão de uma modalidade de transporte individual submetida a uma menor intensidade de regulação, mas complementar ao serviço de táxi afirma-se como uma estratégia constitucionalmente adequada para acomodação da atividade inovadora no setor. Trata-se, afinal, de uma opção que: (i) privilegia a livre iniciativa e a livre concorrência; (ii) incentiva a inovação; (iii) tem impacto positivo sobre a mobilidade urbana e o meio ambiente; (iv) protege o consumidor; e (v) é apta a corrigir as ineficiências de um setor submetido historicamente a um monopólio “de fato”. 5. A União Federal, no exercício de competência legislativa privativa para dispor sobre trânsito e transporte (CF/1988, art. 22, XI), estabeleceu diretrizes regulatórias para o transporte privado individual por aplicativo, cujas normas não incluem o controle de entrada e de preço. Em razão disso, a regulamentação e a fiscalização atribuídas aos municípios e ao Distrito Federal não podem contrariar o padrão regulatório estabelecido pelo legislador federal. 6. Recurso extraordinário desprovido, (...).” (grifo acrescido)

Por fim, diante do exposto acerca da regulação equilíbrio de mercado de transporte urbano individual, ao que tudo indica, os novos modelos de serviços por aplicativos do tipo Uber parecem cumprir melhor as diretrizes sobre defesa do mercado de transportes, previstos na Lei n° 12.587/2012, na Lei nº 10.233/2001, e na Constituição Federal de 1988, especialmente quanto à livre concorrência e à defesa do consumidor (art. 170, IV e V, respectivamente). Para fechar, consigne-se, in verbis, uma reflexão de Gustavo Binenbojm acerca do tema em estudo:

“A economia da regulação deve lançar luzes para orientar a atuação regulatória do Estado no sentido da maximização de objetivos socialmente desejáveis, mas também para revelar a obsolescência e a ineficiência de seu sistema de incentivos quando ele for superado em decorrência de inovações tecnológicas e gerenciais, que se revelem aptas a gerar níveis mais elevados de concorrência, eficiência e bem-estar para os consumidores.”

Referências:

BONIZZATO, L.; BOLONHA, C. e BONIZZATO, A. R. D. Consequências institucionais do revigorado direito constitucional ao transporte: questões, indagações e desenvolvimentos urbanísticos e institucionais após a emenda constitucional nº 90 à constituição brasileira de 1988. Revista de Direito da Cidade, v. 09, nº1, Rio de Janeiro, 2017, p. 213.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. Editora Lumen Juris, 3 ed., 2009, p 14.

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) II - garantir o desenvolvimento nacional; (...)” CRFB 1988.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Proposta de emenda à constituição nº 90-a, de 2011, da Sra. Luiza Erundina, que “Dá nova redação ao art. 6º da constituição federal, para introduzir o transporte como direito social". 2011, p. 02 Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=522343. Acesso em 16/09/2019.

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:  (...) XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;” (grifo acrescentado)

BONIZZATO, L.; BOLONHA, C. e BONIZZATO, A. R. D. Op. cit., p. 221-222.

“Os holandeses não apenas desregulamentaram o mercado de táxis, mas também criaram incentivos para que tal mercado operasse em consonância com as outras políticas urbanas. Por exemplo, o mercado de táxis foi estimulado a operar como um modal interligado à rede de transporte coletivo das cidades, contrapondo a lógica de que os táxis são substitutos dos veículos particulares e que concorrem com o transporte coletivo (argumento que tem sido desafiado pela evidência empírica recente). Em suma, os holandeses compatibilizaram os benefícios trazidos pela desregulamentação do mercado de táxis (análise de equilíbrio parcial) com os demais objetivos dos planejadores urbanos (análise de equilíbrio urbano).” ESTEVES, Luiz Alberto. O Mercado de Transporte Individual de Passageiros: Regulação, Externalidades e Equilíbrio Urbano. Documentos de Trabalho 001/2015. Departamento de Estudos Econômicos - DEE, Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, Ministério da Justiça, Brasília, setembro de 2015, p. 46.

“A economia de compartilhamento, nesse sentido, decorre da união de diversas necessidades sociais, dentre elas, crises econômicas, e de facilidades tecnológicas: nasce da confluência de diversas demandas e tendências econômicas e sociais, e mais importante, de um conjunto de inovações tecnológicas. De um lado, consumidores cada vez mais conscientes, que preferem alugar a comprar e de outro, um sistema tecnológico que permite isso”. RAUCH, Daniel e SCHLEICHER, David apud TELÉSFORO, Rachel Lopes. Uber: Inovação disruptiva e ciclos de intervenção regulatória. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2017, p. 29-30.

“Inovações disruptivas são caracterizadas, entre muitos fatores, por gerarem mudanças abruptas em modelos de negócio, além de atuarem como uma plataforma em um mercado de dois lados, ligando diversos fornecedores e consumidores. Portanto, garantem ao consumidor a oportunidade de desfrutar de substitutos imperfeitos para hotéis e táxis, por exemplo. A plataforma on-line tende a reduzir os custos de procura dos consumidores, ao mesmo tempo que permite que mais fornecedores possam entrar no mercado, ao reduzir barreiras à entrada. Portanto, pode-se concluir que tais plataformas melhoram a correspondência eficiente entre compradores e vendedores. Ao fazê-lo, tais plataformas entram em concorrência com segmentos onde incumbentes históricos oferecem serviços semelhantes.” Ibidem, p. 15.

ARCHER, R. apud ESTEVES, Luiz Alberto. Op. cit., p. 38.

“Dentre os problemas ambientais, um de especial destaque é o aumento do escoamento das águas pluviais, além do agravamento gerado pelo espraiamento das cidades nas periferias, onde geralmente são concentrados os mananciais43. Outros problemas ambientais incluem: redução da diversidade de espécies, aumento do risco de enchentes e inundações, remoção excessiva de vegetação nativa, fragmentação de ecossistemas, etc (... ) redução da qualidade do ar (doenças respiratórias, do coração e alguns tipos de câncer), acidentes com colisões de veículos automotores (traumas e ferimentos, fatais ou não), isolamento social e estresse (impactos de saúde mental).” Ibidem, p. 38-39.

Ibidem, p. 13.