Entender a história e origem de uma organização é imprescindível para análise institucional. Nelson Santos Filho (2009) destaca a importância da variável tempo na compreensão do processo de institucionalização, isso é, como uma organização se transformou em uma instituição. Dessa forma, torna-se necessário explicar a origem da PMERJ, bem como o contexto social e político em que ela foi moldada.
A origem da atual Polícia Militar do Rio de Janeiro é assunto bastante complexo, isso porque o atual Estado do Rio de Janeiro tem sua gênese no extinto Estado da Guanabara e no antigo Estado do Rio de Janeiro. Sendo que o território da Antiga Guanabara, criada em 1960 e extinta em 1975, era o antigo território de Distrito Federal. Dessa forma, a atual PMERJ é um híbrido da Polícia Militar do Distrito Federal, da Polícia Militar da Guanabara e da Polícia Militar do antigo Estado do Rio de Janeiro (MUNIZ, 1999). Abaixo segue quadro demonstrando a origem da PMERJ:
Desde sua origem, com a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia de 1809, a PMERJ adota o modelo militarizado em sua estrutura (MUNIZ, 1999). Alexandre Rocha (2013) explica que a militarização da Polícia é uma característica de toda a América Latina. O autor informa que a preferência pelo modelo paramilitar nos países latinos se deu pela reprodução dos modelos de organização do Estado das metrópoles nas colônias, e que, mesmo após a independências, essas antigas colônias continuaram a militarizar suas organizações policiais. É o caso brasileiro. Portugal, durante o século XVIII e XIX, tinha uma polícia centralizada, militarizada e próxima ao governo, mas mesmo após a independência, o Brasil manteve sua polícia militarizada. (ROCHA, 2013).
A militarização da Polícia tem uma dimensão que vai muito além de um simples nome que acompanha a nomenclatura das polícias ostensivas brasileiras (Polícias Militares), ela tem um grande impacto na estrutura burocrática, estética e “missão” dessas polícias (MUNIZ, 1999).
Jaqueline Muniz (1999, p. 111) explica, por exemplo, que a estrutura organizacional da PMERJ foi desenhada à imagem do Exército:
A PM está dividida internamente em Organizações Policiais Militares (OPMs) executivas, setoriais e operacionais que prestam os serviços de policiamento. Assim como no Exército, ela possui Estado Maior, Cadeia de Comando, Batalhões, Companhias, Destacamentos, Regimentos, tropas etc.
Essa simetria da estrutura das Polícias Militares com o Exército, embora venha desde seu nascimento, ficou mais evidente em 1936 pela Lei 192 daquele ano que “determinou que as polícias militares - polícias urbanas - deveriam ser estruturadas à imagem e semelhança das unidades de infantaria e cavalaria do Exército regular” (MUNIZ, 1999, p. 71).
Mas antes, a Constituição de 1934 (em seu art. 167) já previa que as PMs seriam reservas do Exército e que a União (art. 5º, XIX, l) seria a competente para legislar sobre organização, instrução, justiça e garantias das forças policiais dos Estados e condições gerais da sua utilização em caso de mobilização ou de guerra. E, posteriormente, a Constituição de 1946 erigiu as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros como forças auxiliares do Exército (MUNIZ, 1999). Esses três pontos ainda estão presentes na Constituição de 1988.
Outra influência do mundo castrense na PMERJ é Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), órgão vinculado ao Exército, criado em 1967 (pelo Decreto-Lei 317, posteriormente revogado pelo Decreto-Lei 667 de 1969), mas que até hoje se encontra em funcionamento, tendo como principal função fiscalizar as Polícias Militares.
Além dessa ingerência legal das Forças Armadas sobre as PMs, Jaqueline Muniz (1999) destaca a influência subjetiva, mas igualmente impactante, do Exército na PMERJ. A autora informa que até 1988, com 179 anos de existência, a PMERJ foi comandada 160 anos por um oficial de alta patente do Exército Regular. Na Ditadura Militar, ela foi quase todo o período comandado por um militar do Exército. A PM da Guanabara, enquanto esse Estado existiu (1965 a 1975), foi sempre conduzida por um oficial do Exército, a PM do Antigo Estado do Rio de Janeiro, do início da Ditadura até a fusão desse Estado com a Guanabara, em 1975, igualmente foi sempre chefiada por um militar do Exército, e o Estado do Rio de Janeiro, criado em 1975, foi liderado por oficiais do Exército até 1982, quando então, oficiais da PMERJ começaram a comandar a organização, o que acontece até hoje.
Todas essas ações fizeram com que ao longo do tempo as Polícias Militares se assemelhassem cada vez mais com o Exército. Alexandre Rocha (2013, p. 79) explica que as Polícias, não apenas brasileira, mas de toda a América Latina, sofreram esse processo de isomorfismo:
Nas forças policiais da América Latina, o processo de isomorfismo ocorreu em diversos países. No Chile, Carabineros surgiu de um ramo do Exército destacado para atuar no policiamento. No Brasil, as polícias militares se assemelharam ao Exército para fugirem da incerteza da identidade institucional. Nessas organizações policiais, as Forças Armadas tiveram ingerências diretas e indiretas em suas fases formativas, sendo que elas contaram com a formação militar e o emprego de oficiais das Forças Armadas para darem respaldo às polícias em suas origens.
O autor ainda explica que isomorfismo nas organizações policiais se deu por todos os meios: mimético, coercitivo e normativo. O mimético foi utilizado como estratégia para tirar as Polícias do campo da incerteza, isso porque entre o fim do século XIX e ao longo do século XX essas eram organizações inconstantes, surgindo e desaparecendo com frequência, porém, naquele período buscava-se torná-las permanentes, e o Exército se apresentava como um modelo a ser seguido.
O normativo foi empregado para solucionar a falta de profissionalização das Polícias:
O canal o normativo foi adotado para transparecer profissionalização da força policial. No início do século XX, era comum a analogia entre polícias e Forças Armadas, pois as organizações policiais eram conhecidas pela precariedade e escassos caracteres profissionais. O militarismo era, e ainda é, visto como doutrina capaz de moldar corpos policiais indisciplinados em um modelo ideal de profissionalização (ROCHA, 2013, p. 80).
E o coercitivo foi utilizado por governos autoritários com a finalidade de alinhar as polícias aos objetivos desses governos, sendo que para isso, as Forças Armadas exerciam forte controle sobre aquelas (ROCHA, 2013).
Essa homogeneização e, em alguns casos, até ambiguidade entre Forças Armadas e Polícia fez surgir grandes questionamentos sobre o papel das organizações policiais e o como deveria ser sua atuação. Alessandro Rocha (2013) informa que a principal missão das Forças Armadas é eliminar o inimigo, já o “objetivo do policiamento não é destruir o inimigo, mas manter a paz e o fluxo da ordem com o mínimo de demonstração de força e com máximo de prevenção contra ferimentos e proteção aos direitos constitucionais dos cidadãos” (ROCHA, 2013, p. 87). No entanto, historicamente, a Polícia se manteve pouco presa a sua missão central, segurança pública, e mais próxima às Forças Armadas, com a eliminação de inimigos:
Mesmo levando em consideração os distintos percursos históricos das PMs de cada estado brasileiro, pode-se afirmar que, até os dias atuais, foram poucos os períodos em que, de fato, elas puderam atuar como polícias urbanas e ostensivas. Tomando de empréstimo a fala crítica dos segmentos policiais identificados como "progressistas", pode-se dizer que "as PMs foram muito mais uma corporação militar do que uma organização policial", sendo, ao longo de suas histórias particulares, mais empregadas para os fins de segurança interna e de defesa nacional, do que para as funções de segurança pública. (MUNIZ, 2001, p. 179)
Porém, os “inimigos” da Polícia foram alterados no decorrer do tempo. Na ditadura de Vargas, por exemplo, a Polícia foi utilizada como instrumento de garantia e manutenção do regime opressor, e com isso, os comunistas foram elencados como inimigos. Alessandro Rocha (2013, p. 153) explica como isso ocorreu, informando que a Constituição de 1937, com a inserção do título “da defesa do Estado”, ampliou o conceito de defesa e segurança, passando a:
[…] aludir a “perturbações internas”, “plano de conspiração” que pusessem em xeque a segurança do Estado. Em nome da defesa do Estado, foram perseguidos os opositores políticos, especialmente os comunistas. A proteção ao Estado se confundia com as estratégias para prevenção e eliminação dos inimigos internos e os subversivos.
Igualmente, no Governo Militar, a Polícia também estava afastada de sua função essencial e, mais uma vez, foi utilizada para combater os opositores do regime:
Na época conhecida como os anos de chumbo da ditadura militar, fazer o "serviço sujo" de repressão política incluía, além do controle de multidões e as operações de choque nas situações de distúrbios civis, as atividades de "caça às bruxas". Por força do Decreto-lei n. º 66.862, publicado em 08/07/1970, as Polícias Militares passaram a integrar o serviço de informações e contra-informações do Exército (MUNIZ, 2001, p. 8).
Ter, na prática, como função a eliminação de inimigos, sendo que esses “inimigos” são concidadãos, fez com que por diversas vezes houvesse violação dos Direitos Humanos por parte da Polícia. Na obra “Operários da Violência”, de Mika Haritos-Fatouros, Martha Knisely Huggins e Philip Zimbardo (2006), foram entrevistados, em 1993, 23 policiais civis e militares que atuaram durante a Ditadura Militar. Desses, 14 praticaram diretamente a violência, seja com tortura ou assassinato, sendo rotulados de “operários da violência. Os outros 9, chamados de “ facilitadores de atrocidades”, participaram indiretamente da violência, e, como o próprio nome sugere, facilitaram a atuação dos operários. Dos 14 torturadores/assassinos, 9 eram policiais civis e 5 eram policiais militares. Dos 9 facilitadores, 8 eram PMs, 7 eram policiais civis. Dos 14 operários, 8 admitiram que praticaram torturas, 07 confessaram que cometeram homicídios. Dos diversos relatos de casos de violência policial praticados contra opositores políticos durante as quase três décadas da Ditadura Militar, um chamou bastante atenção, Jorge (pseudônimo), ex-agente do DOI/CODI, relatou aos autores que cometeu 80 incidentes de assassinato. Questionado pelos entrevistadores se teria matado pessoalmente 80 pessoas, ele respondeu que não, que “foram oitenta incidentes. Conto uma família inteira como um só! ” (HARITOS-FATOUROS; HUGGINS; ZIMBARDO, 2006, p. 430). O livro não atesta a veracidade das falas dos entrevistados, mas, aparentemente, não haveria razões para eles mentirem. De qualquer maneira, além desse relato, há outros que demonstram que os horrores praticados no período militar não se limitavam a atuação do Exército, mas também, das polícias estaduais.