Mídia a Serviço da Pornografia de Vingança

O presente artigo objetiva demonstrar que a mídia – enquanto veículo de comunicação de massa – tem grande influência na perpetuação e promoção de conceitos e perspectivas no meio social. O espaço virtual ganha destaque nesse debate, tendo em vista ser o mais abrangente meio de propagar notícias, bem como por representar um local de fácil acesso e veiculação. Insta salientar, ainda, que devido à democratização do acesso aos veículos digitais, a mídia reforça seu papel histórico de formação do imaginário social, que  é composto por um conjunto de relações imagéticas que atuam como memória afetivo-social de uma cultura, um substrato ideológico mantido pela comunidade. Trata-se de uma produção coletiva. Se expressa por ideologias e utopias, e também por símbolos, alegorias, rituais e mitos. Tais elementos plasmam visões de mundo e modelam condutas e estilos de vida, em movimentos contínuos ou descontínuos de preservação da ordem vigente ou de introdução de mudanças” (MORAES, 2002.)

Nesse sentido, Denis de Moraes (2013, p. 12) chama atenção ao fato de que a comunicação digital é um poder desmaterializado, ou seja, uma força capaz de promover a legitimização de discursos veiculados e penetrá-los no cotidiano e nas pessoas, influenciando na forma de agir e pensar as relações sociais e culturais no meio em que convivem. A mídia virtual, em comparação com a tradicional, atinge uma dimensão espacial de cada vez mais ampla incidência.

Não obstante, as notícias apresentadas pela mídia são construídas a partir de procedimentos de seletividade e hierarquia das informações. A partir da análise da veiculação midiática das notícias acerca da pornografia de vingança – conforme será apresentado ao longo do capítulo –, é notório o quanto a mídia está mais comprometida com a culpabilização das vítimas em detrimento da problematização dos fatores que originam as violências contra as mulheres. Conforme pontua Taís de Souza Leite, a estrutura dos títulos poucas vezes apresenta o agressor em foco na chamada, tampouco o contexto que aconteceu a violência é evidenciado – em regra, a vítima é retratada no centro dos fatos, levando-a a desmoralização e culpabilização. (LEITE, 2017)

Leite, ao elaborar pesquisa voltada à interpretação de notícias sobre estupros em Rondônia, concluiu que a reprodução das notícias nos jornais, da forma como é veiculada, é reflexo da sociedade estruturada sob bases do patriarcado, bem como é ferramenta para fortalecer e perpetuar a cultura do estupro e machismo. Além disso, notou que a vítima é culpabilizada a partir de suas decisões, comportamentos e de como se veste. Isso, pois as estruturas sociais de dominação masculina apontam que a culpa é da vítima e não do agressor, havendo a inversão dos papéis capaz de gerar efeitos devastadores. 

Em seu livro BlamingtheVictim (de tradução livre: culpando a vítima), de 1971, o psicólogo William Ryan cunhou pela primeira vez a expressão culpabilização da vítima para se referir à situação corriqueira em que uma vítima de um crime ou agressão é considerada causadora do próprio ato de violência sofrida, imputando-lhe um descrédito e desvalorização demasiados (BUZZI, 2015, p. 45). Destarte, parte-se desse pressuposto para demonstrar o tratamento midiático conferido à ocorrência da violência de gênero, em especial a modalidade de Pornografia de Revanche estudada neste trabalho.

 

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Quando observadas as notícias de violências de gênero veiculadas na mídia, pode ser identificada uma tendência corriqueira na estrutura dos títulos: poucas vezes a origem da violência é imputada ao agressor, a contrario sensu, a mulher e suas escolhas ganham praticamente toda atenção no texto, como é notório na seguinte passagem: “Mulher diz ter sido espancada e estuprada após pegar carona” (Jornal da Paraíba, 2016). Ou, ainda, é comumente observado um padrão nas manchetes que demonstram a busca pelos editores em justificar as violências, por exemplo: “Mulher tem fotos íntimas divulgadas pelo ex após terminar relacionamento” (VACCARI, 2017)

As abordagens midiáticas, em regra, cumprem sua função de informar questões essenciais - o que, onde e com quem ocorreu determinado fato -, porém são falhas ao buscar qualquer tipo de comportamento culposo da vítima. Ao invés de direcionar o entendimento do leitor para a origem essencial da violência, os veículos de comunicação tradicionais se encarregam de forçar a correlação entre o resultado violento e algum comportamento da vítima que justificaria o ato. Dessa maneira, promove-se a potencial desmoralização da vítima, pois seu comportamento e suas decisões tornam-se o centro dos debates, sendo utilizados para justificar, de forma velada, o injustificável: a violência sofrida.

O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, cujo propósito é contemplar a liberdade de expressão comercial e defender os interesses das partes envolvidas no mercado publicitário, inclusive os do consumidor, demonstra, no capítulo que trata dos princípios gerais para a veiculação de material publicitário, que toda atividade publicitária deve pautar-se no respeito à dignidade da pessoa humana e no direito à intimidade garantida pelo Artigo 19, clarificando que atividade publicitária deve caracterizar-se pelo respeito à dignidade da pessoa humana, à intimidade, ao interesse social, às instituições e símbolos nacionais, às autoridades constituídas e ao núcleo familiar. De forma analógica, é possível correlacionar essas obrigações com a prática jornalística, imputando aos jornais, revistas e ferramentas da era digital esses preceitos. A despeito disso, percebe-se que o veículo midiático, ao elaborar manchetes que mascaram a deflagração da violência contra a mulher, corrobora para a humilhação da vítima, bem como vai de encontro à disposição do referido código.

É mister ressaltar que a discussão que envolve a mídia enquanto instrumento de manutenção da cultura patriarcal não se iniciou recentemente. Em 2012, ocorreu um manifesto intitulado como “Marcha Nacional Contra a Mídia Machista” que, mesmo sem ter atingido as proporções necessárias, tornou-se um marco da luta contra essa ferramenta de dominação masculina. O estopim para o movimento deu-se a partir de uma campanha publicitária da Nova Schin, conforme explicado pela página online do movimento:

Há alguns meses, vem sendo veiculada na TV a propaganda da Nova Schin, com apologia ao estupro. No comercial publicitário, cinco homens que bebem num quiosque de praia imaginam: “E se fôssemos invisíveis?” Já no campo da imaginação, tudo o que se vê é uma latinha flutuante, e então, o “homem invisível” aproveita de seu “poder” para passar a mão em mulheres deitadas na areia e invadir o vestiário feminino, fazendo as moças saírem correndo de dentro do lugar, seminuas. A propaganda da Nova Schin presta um desserviço à sociedade enquanto corrobora com a mentalidade de que abusar de uma mulher e invadir sua privacidade é aceitável. (Marcha Nacional Contra a Mídia Machista, 2012)

Ainda neste sentido, cabe citar o seguinte recorte:

Enquanto houver uma mídia sem escrúpulos controlada por uma sociedade patriarcal, haverá as campanhas machistas de cerveja onde a mulher é uma mercadoria, ou as propagandas de cosméticos e vestuário, onde é tida como alienada, superficial e quase sempre dependente do marido, ou até mesmo nas propagandas de carro, onde está quase sempre no banco do passageiro, acalmando as crianças e sorrindo para situação.

O estereótipo da beleza e da submissão é reproduzido diariamente na TV, nas rádios, nos jornais e permeiam o imaginário popular. É preciso democratizar os meios de comunicação e alterar esse contexto carregado de estereótipo e preconceito contra a mulher, em todas as fases de sua vida. (UJS – União da Juventude Socialista, 2013)

Outra evidência do exposto é o fato de que a produção midiática voltada para o público feminino reforça e estimula a perpetuação de papéis e vocações referentes ao gênero. Isso, pois constantemente ensina e demonstra às mulheres como se enquadrar no modelo imposto tradicionalmente – aquele exaustivamente abordado ao longo do trabalho, em que o homem exerce a dominação sobre a mulher. A fim de ilustrar essa afirmação, é possível observar que as matérias vinculadas em revistas e sites voltados às mulheres sempre estimulam habilidades domésticas, apresentam procedimentos estéticos, bem como ensinam dicas e técnicas para ser uma boa parceira – sempre com a finalidade de agradar os homens. (SEMÍRAMIS, 2013)

É evidente, em síntese, que a mídia se comporta como um instituto aliado à estrutura social patriarcal, contribuindo para a manutenção dos papéis sociais destinados a cada gênero. O que se pretendeu esclarecer principalmente até aqui é o efeito que a mídia pode exercer perante uma mulher vulnerabilizada. A abordagem midiática, a depender de como é feita, é capaz de trazer mais uma espécie de sofrimento à vítima da Pornografia de Vingança, punindo-a, para além da exposição que sofreu, ao conferir a ela o sentimento de culpa, bem como promovendo justificativas ao agressor e desmoralizando-a perante a opinião pública. 

Convém, portanto, conferir rostos, corpos e histórias para esse fenômeno que vem sendo esmiuçado ao longo da presente pesquisa, a fim de ilustrar o duplo padrão sexual demonstrado até aqui. Importante salientar que, por tratar-se de um tema relativamente novo no meio acadêmico - que se trata de um fenômeno recente em sua incidência, apenas pouco abordado academicamente.