Nubentes e Conviventes: É Possível Renunciar à Herança com Pacto Antenupcial ou Contrato de Convivência?

Por delegação, coube-me examinar a viabilidade legal-jurídica do convivente, em uma união estável, ou do nubente, no contexto de uma relação matrimonial, renunciarem o direito sucessório em relação ao seu consorte, mediante a manifestação da vontade livre em ato solene- escritura pública-, aderente ao contrato de união estável, ou ao pacto antenupcial, na hipótese de matrimônio.

Na virada do milênio, no século XXI, é possível observar grandes mudanças sociais, não só em território brasileiro, mas em boa parte do globo, motivadas em boa parte pelo influxo de novas culturas aproximadas pela velocidade da informação. Instituições seculares, hábitos e rituais sacramentais passaram a ser contestados, negados e redefinidos, segundo ótica endemonista, que centraliza a pessoa humana como o maior protagonista das relações sociais. A realização da pessoa humana, como sujeito de direitos, a primazia do ser, a despatrimonialização do direito civil, a positivação dos direitos da personalidade e o grande movimento inerente à constitucionalização do direito civil, inegavelmente, podem ser citados como frutos advindos do novo milênio.

A família, que é a célula-mãe, não poderia ser indiferente a uma intensa gama de novas relações sociais, muito menos poderia deixar de se adaptar aos novos influxos sociais. O Direito, como consectário necessário à regulação da vida em sociedade, da mesma forma, deve disciplinar os novos anseios que vieram à lume, ao certo, após longo processo de insatisfação e repressão a um modelo canônico imposto como modelo ideal de família, que vigeu desde as Ordenações Manuelinas em terras brasileiras.

Nesse sentido, a família patriarcal, e constituída pelo matrimônio, perde sua centralidade para que outras, também, tenham referência normativa e reconhecido valor jurídico, a exemplo das famílias constituídas por um único grau de parentesco (as famílias monoparentais), as famílias constituídas por filhos de qualquer origem, as famílias constituídas sem a ritualística matrimonial e as famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo. O afeto passa a ser reconhecido como bem jurídico e a filiação socioafetiva, por consequência, passa a desafiar os operadores do Direito quanto aos grandes impactos nos diversos casos em concreto a desafiarem soluções equânimes.

A realização do ser humano como pessoa humana, como o maior protagonista da vida em que está inserido, com direito a suas próprias escolhas, prima facie, soaria como completamente descabido raciocínio contrário a evidência dessas questões. Entretanto, reputa-se de extrema importância ressaltar a evolução jurídica, o que aconteceu, o que se pretendeu, e o que foi possível regular e aceitar, dentro de uma ótica em que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana não se apresenta como recomendação ao legislador ordinário, mas como princípio constitucional de aplicação imediata a todas as relações jurídicas, penais e não penais.
Dentro do que fora possível regular, o legislador brasileiro, na seara do direito de família, prima pelo respeito ao indivíduo, no exercício do livre arbítrio, primando pelo respeito e responsabilidade nas escolhas e decisões pessoais, a fim de que a família seja o agrupamento que propicie, sobretudo, o desenvolvimento humanístico de seus membros. As relações de afeto, em última análise, devem ser o substrato necessário à formação de um núcleo familiar e é papel do Estado o seu respeito e regulação.  Nessa linha, por diversas vezes o STF ressaltou o valor jurídico do afeto nas relações de direito de família e o reconhecimento pela busca da felicidade- verbis:

RE 477554 AgR-- 
Órgão julgador: Segunda Turma
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
Julgamento: 16/08/2011
Publicação: 26/08/2011
Ementa

LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR: POSIÇÃO CONSAGRADA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (ADPF 132/RJ E ADI 4.277/DF) - O AFETO COMO VALOR JURÍDICO IMPREGNADO DE NATUREZA CONSTITUCIONAL: A VALORIZAÇÃO DESSE NOVO PARADIGMA COMO NÚCLEO CONFORMADOR DO CONCEITO DE FAMÍLIA - O DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE, VERDADEIRO POSTULADO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO E EXPRESSÃO DE UMA IDÉIA-FORÇA QUE DERIVA DO PRINCÍPIO DA ESSENCIAL DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - ALGUNS PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA SUPREMA CORTE AMERICANA SOBRE O DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA FELICIDADE - PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA (2006): DIREITO DE QUALQUER PESSOA DE CONSTITUIR FAMÍLIA, INDEPENDENTEMENTE DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL OU IDENTIDADE DE GÊNERO - DIREITO DO COMPANHEIRO, NA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA, À PERCEPÇÃO DO BENEFÍCIO DA PENSÃO POR MORTE DE SEU PARCEIRO, DESDE QUE OBSERVADOS OS REQUISITOS DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL - O ART. 226, § 3º, DA LEI FUNDAMENTAL CONSTITUI TÍPICA NORMA DE INCLUSÃO - A FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO - A PROTEÇÃO DAS MINORIAS ANALISADA NA PERSPECTIVA DE UMA CONCEPÇÃO MATERIAL DE DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL - O DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO DE IMPEDIR (E, ATÉ MESMO, DE PUNIR) “QUALQUER DISCRIMINAÇÃO ATENTATÓRIA DOS DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS” (CF, ART. 5º, XLI) - A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O FORTALECIMENTO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: ELEMENTOS QUE COMPÕEM O MARCO DOUTRINÁRIO QUE CONFERE SUPORTE TEÓRICO AO NEOCONSTITUCIONALISMO - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. NINGUÉM PODE SER PRIVADO DE SEUS DIREITOS EM RAZÃO DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL. - Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual. Os homossexuais, por tal razão, têm direito de receber a igual proteção tanto das leis quanto do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual. RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR. Observação:Princípio nº 24 da Carta de Princípios de Yogyakarta (Coordenação da Comissão Internacional de Juristas e do Serviço Internacional de Direitos Humanos - Conferência na Indonésia, novembro de 2006), Apelação Cível 1.0145.02.012887-5/001 do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e Revista.


A judicialização em questões de família, percebe-se também, que é outro ponto que precisa ser destacado dentro desses 21 anos de novo milênio, como forma de minimizar os grandes conflitos de interesses, cujas respostas jurisdicionais não poderiam aguardar o trâmite legislativo de um novel instituto de direito.

Neste contexto, indaga-se acerca da viabilidade, ou não, de ser admitida a renúncia recíproca dos conviventes ou consortes quanto ao direito sucessório, motivo pelo qual passaremos a tecer considerações específicas sobre essa temática.

O Código Civil e as leis esparsas não disciplinaram a renúncia de herança nas hipóteses suso mencionadas, ressaltando-se que não há qualquer regra, expressa, em sentido proibitivo. Não há, portanto, disciplina legal sobre a hipótese sob exame.

Diante da análise sistemática do Direito Civil afere-se que um dos princípios vetores do direito das sucessões relacionado à vedação de “disposição sobre herança de pessoa viva”, parece-nos que não se aplica a hipótese vertente porque o escopo não é o mesmo pretendido com a proibição genérica, amplamente aplicada nos Tribunais.

O objetivo do respeito ao Princípio da Vedação das Heranças de Pessoas Vivas primar pela valorização da pessoa, o esforço normativo para que o “ser” tenha primazia quanto ao “ter”, nas relações humanas, já que o patrimônio, não raro, faz revelar no ser humano aspectos nocivos do caráter das pessoas. A cobiça, como grande erva daninha, desde a Antiguidade Clássica, revelam os mais sagrados escritos, sempre foi grande fonte de discórdia, guerras, desagregação e destruição de famílias.

A organização de uma nova família formada, ora pelo matrimônio, ora pela união estável, impõe organização patrimonial responsável de seus integrantes. Razoável nos parece que possa lhes outorgar o direito de disciplinarem sobre o direito sucessório, principalmente, quando observadas as cautelas legais quanto à solenidade do ato (escritura pública), a fim de que o ato seja publicizado para proteção, sobretudo, de terceiros alheios à manifestação de vontade, que deve ser livre e consciente.

Da mesma forma em que o Código Civil vigente passou a admitir a mudança de regime de bens no casamento, no curso da relação matrimonial (artigo 1639, parágrafo 2º Código Civil), não mais vigendo o princípio vetor da imutabilidade do regime de bens, também nos parece razoável que seja admitido o exercício da escolha quanto ao destino dos bens após a morte, sem que se imponha a necessidade de lavratura de testamento.

A imposição de que seja bilateral a disposição abdicativa reflete a preocupação com os fins colimados para uma vida em família, e o papel do Estado como agente regulador e de fomento aos melhores valores de desenvolvimento humano.

Para parte da doutrina e jurisprudência, os fatos que animam a mudança de regime de bens no casamento devem ser sopesados pelo Judiciário, de modo que a aferição seja considerada plausível, ou não, e consequentemente deferido, ou não, o pedido. A judicialização é imprescindível, com vistas à preservação dos fins sublimes que devem ser o sustentáculo de uma família. Ao revés, para outra parte da doutrina e jurisprudência, não é necessária essa aferição, sendo suficiente a manifestação de vontade livre e consciente dos nubentes.   

A partir de uma interpretação analógica relacionada à reorganização patrimonial quanto ao regime de bens no casamento e sua mutabilidade, entendemos ser possível a organização, e mesmo reorganização, do regime sucessório dos conviventes e consortes, por ato de vontade em vida, durante o regime de união estável e casamento. Nessa seara, entretanto, há princípios cogentes, a exemplo da reserva do quinhão dos herdeiros necessários e, nesse aspecto, a renúncia ao direito sucessório não poderá ser renúncia translatícia, mas tão-somente a renúncia abdicativa.

Não entendemos, portanto, que o princípio da vedação à herança de pessoa viva seja aqui aplicado porque, em verdade, o oposto está sendo realizado diante da renúncia abdicativa, inexistindo qualquer aquisição de  bens após morte!

Aduz-se que, por diversificadas razões possam ser apresentadas justificativas dos conviventes e consortes ao pleitearem a renúncia ao direito sucessório, necessariamente recíproca, de bens reservados a cada um, por ocasião do falecimento. Inobstante não entendermos necessária a aferição meritória pelo Poder judiciário, assim como também reputamos sua desnecessidade quanto à hipótese de mutabilidade de regime de bens no casamento, fato certo é que essa disciplina, quando normatizada, deve receber tratamento analógico à disposição de bens quando em vida, diante da proximidade dos mesmos motivos ensejadores, que aqui poderemos sintetizar: organização patrimonial e maior relevo ao afeto nas relações familiares.  Em sendo assim, por coerência de raciocínio a mesma forma em que a mudança de regime de bens for disciplinada, o tratamento isonômico deve ser impingido à mudança patrimonial a ser disciplinada após a morte.

Ultrapassada essa questão, reputamos que o sistema civil brasileiro deve fomentar a disponibilidade de bens patrimoniais, a exemplo do direito sucessório em discussão, resguardando-se, no entanto, o interesse de terceiros de boa fé, dos vulneráveis e dos herdeiros necessários. 

Não se coaduna com o Princípio do Afeto nas relações de família, na nova vertente Despatrimonializante do direito civil, assim como na promoção dos valores humanísticos, em respeito ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, vedar a companheiros e consortes, partes capazes, de renunciarem, reciprocamente, patrimônio individual, quando preenchidos todos os requisitos de existência, validade e eficácia de um negócio jurídico. 

Inexistindo regra proibitiva, afigura-nos possível referida renúncia, uma vez que o silêncio eloquente do legislador não deve preterir direitos legítimos, como o examinado no presente estudo, aplicando-se os artigos 4º e  5º da Lei de Introdução às Normas de Direito Civil aos casos em concretos postos a exame e, para que sejam dissipadas dúvidas, e de forma mais generalizante, seja indicada a formulação de projeto de lei federal, discutindo-se previamente, a constitucionalidade do projeto, que aqui sugere-se, na Comissão de Constituição e Justiça.

No ensejo, diante da instabilidade jurídica possível, e não almejada, nas decisões judiciais inerentes ao tema proposto, cremos ser de bom alvitre seja proposta alteração legislativa para que seja acrescentado parágrafo único, ou mesmo inclusão no caput do artigo 426 do Código Civil a possibilidade de renúncia à sucessão dos nubentes e conviventes, com redação final nos seguintes termos: Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva, salvo nos pactos antenupciais ou no contrato de união estável.

É o parecer que submeto ao sr. Presidente da Comissão de Direito de Família, assim como aos nobres colegas do Instituto dos Advogados do Brasil.