O Direito à Saúde da População Prisional e a Responsabilidade do Estado

Por Thainara Dias - 02/07/2020 as 12:13

Neste artigo da série sobre direito à saúde, faremos uma análise desse direito no âmbito do sistema prisional, bem como abordaremos a responsabilidade do Estado pela sua garantia.

Para a execução da política pública caberia aos três poderes o dever de intervenção e organização, sendo o legislativo o responsável por transformar os projetos em textos legais, o executivo a instauração de uma política nacional de saúde única (BAPTISTA; MACHADO; LIMA,  2008) e o judiciário seria uma espécie para a fiscalização e efetividade nos casos de falhas dos outros dois poderes.

A constituição atribuiu competência para legislar de forma concorrente entre União, Estados e Município, de acordo com os artigos 24, XII, e 30, II da Constituição Federal de 1988. Sendo de responsabilidade da União as normas gerais (art. 24 § 1º); a responsabilidade dos Estados vem de forma suplementar (art. 24 §2º) e aos Municípios legislar sobre interesses locais (art. 30, I e II), os três entes federativos possuem a competência para formular e executar políticas públicas. (apud SARMENTO, p. 885).

A responsabilidade em legislar e formular as políticas públicas são responsabilidades estatais para que seja possível que saia do modo abstrato, pois muito embora a Constituição assegure em seu art. 196 que é direito de todos e dever do estado, na prática, só haveria efetividade no cumprimento do dispositivo legal tal organização que fizesse com que esses direitos fossem de fato cumpridos.

É de competência do poder público dispor, nos termos da lei, a sua regulamentação, fiscalização e controle, sendo sua execução deverá ser feita de forma direta ou até mesmo através de terceiros, podendo ser por pessoa física ou jurídica, é o que dispõe o art. 197 da Constituição Federal de 1988.

As ações e serviços públicos de saúde são regionalizados e hierarquizados dentro de uma rede que constitui um sistema único, que faz com que haja a descentralização em cada esfera do governo, tem atendimento integral que prioriza a atividade preventiva, não causando prejuízo aos serviços assistenciais e com participação da comunidade, é o que dispõe o art. 198 da Constituição Federal.

A norma Constitucional dispõe em seu art. 196 o seguinte texto:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Dentro dessa organização, com a norma geral constitucional e a criação do SUS, ainda haveria diversas leis que especificariam suas aplicações fazendo uma separação através de grupos. 

Em questão faremos uma breve análise da Lei de Execuções Penais que aborda diversos direitos da população prisional, inclusive o direito social à saúde, sendo este um grupo específico na busca da aplicação de direitos constitucionais.

A Lei de Execução Penal, A LEP, de nº 7210/1984, em seu art. 41, inciso VII dispõe que é um direito do preso o direito à saúde, especificando o que se entende por assistência à saúde em seu art. 14, que compreende como atendimento médico farmacêutico e odontológico.

No entanto, o conceito de direito à saúde, apesar de expresso por lei em específico, este também deve ser interpretado como um direito humano, visto que trata-se de um direito social, sendo este mais abrangente e de ampla interpretação, podendo chegar a conclusão que o direito à saúde é mais que a ausência de enfermidade, mas também usufruir uma vida digna.

É de responsabilidade estatal a promoção de saúde através de políticas públicas voltadas não só para a remediação, ou seja, não apenas se tratando de reparar danos causados pelo próprio estado na perda ou na ausência de direitos, mas também fazer de tudo para que o conceito de dignidade de pessoa humana seja de fato atendido em forma de política pública, em um aspecto preventivo, visto que se trata de um direito fundamental.

Há alguns marcos de implementação legal para que fosse assegurados os direitos sociais da população prisional, a Lei de Execução Penal (LEP), que foi criada em 1984, o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), de 2003 e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), de 2014 (LERMAN et al. 2015).

A Lei de Execuções Penais (LEP 7.210/1984) é a lei que mais organiza os direitos dos apenados brasileiros, com a previsão do cumprimento da pena, os direitos e deveres do apenado, a adoção das medidas punitivas, concessão de benefícios e organização das casas prisionais (MALLMAN, 2015, p. 22).

Logo após, com o PLANO NACIONAL DE SAÚDE NO SISTEMA PENITENCIÁRIO (PNSSP) em 2003, este assegurou as assistências sociais no sistema prisional, sendo sua proposta principal garantir o acesso a saúde nas unidades prisionais com base nos princípios basilares do SUS, incluindo a população carcerária no Sistema de Saúde Único. 

Neste contexto, verifica-se que por mais que a Constituição Federal assegure que o direito à saúde seja um direito de todos sem distinção, era necessário a individualização para a real aplicação desses direitos, fazendo com que a cidadania fosse de fato efetivada em uma população que até então estava sendo omitida dos princípios da universalidade e igualdade que regem o Sistema Único de Saúde.

Após, no ano de 2014 houve mais um avanço no sentido das políticas públicas para a garantia do direito à saúde da população carcerária, visto que, se antes o PNSSP tratava-se apenas da aplicação para àqueles que se mantinham em situação prisional em estabelecimentos de penitenciária, precisaria de atendimento aos demais que não necessariamente cumpriam pena em penitenciária, criando assim o programa de Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), que visa atender todas as pessoas que encontram-se privadas de liberdade sob a tutela estatal.

O que de fato foi totalmente necessário a criação do PNSSP, visto que o Brasil é um país que mais prende pessoas no mundo, conforme uma pesquisa realizada pelo CNJ, o Brasil tem a 5ª maior taxa de custodiados provisórios em uma comparação mundial, sendo cerca de 40% (quarenta por cento) dos presos brasileiros ainda não teriam sido julgados ainda em uma pesquisa feita em 2014, sendo assim seria inviável que a lei especificasse apenas as pessoas que estariam dentro das penitenciárias. 

Sendo assim, diante de toda a legislação pátria verificamos que o Estado tem o dever de fornecer e proteger o direito à saúde de todos sem distinção, e diante de toda a problemática da saúde pública não conseguir atender de forma totalmente eficaz, o Estado tem mais responsabilidade ainda àqueles que não têm condições de sozinhos conseguirem atendimento e promoção necessária da dignidade humana e provimento e manutenção da saúde, sendo o caso das pessoas que estão privadas de sua liberdade sob a tutela estatal.

Em razão de o preso ficar sob a tutela estatal na maioria do tempo, podemos concluir que o Estado tem até mesmo mais responsabilidade à saúde com este do que com os demais cidadãos, em razão do preso ter o direito de ir e vir suspenso até o final de sua pena. E em razão de proporcionalidade deveria ser até mais fácil controlar uma situação em relação ao direito à saúde da população carcerária do que de uma população como um todo, visto que estão todos no mesmo lugar e é uma quantidade menor de pessoas.

Nas palavras da médica Natália Madureira Ferreira (apud BERNARDES, 2017 há um contrassenso:

Teoricamente deveria ser muito mais bem controlado, seria muito mais fácil você controlar a situação de saúde dos presos, do que a população fora dos presídios. Mas na realidade, não é isso que acontece. 

Assim como a população como um todo, a população carcerária tem necessidades de assistência à saúde, e vejamos que possui mais necessidades de um suporte à manutenção à saúde maior do que os demais, visto que além de estarem sob a custódia do Estado em tempo integral, como já foi dito, o próprio sistema carcerário coloca essas pessoas em uma situação de vulnerabilidade em razão das más condições dos ambientes em que são submetidos. O próprio ambiente prisional é um dos fatores determinantes para a proliferação de doenças contagiosas, além de se tratar muita das vezes pessoas que são usuários de drogas que possui baixa imunidade, e em razão disso acabam contraindo doenças com mais facilidade.

A responsabilidade do Estado acaba sendo de forma maior do que com os demais, mesmo que isso cause certa estranheza à população em geral e ao poder público, porque visto pela visão do senso comum e da ignorância essas pessoas são enxergadas como pessoas indignas e não merecedoras de receber qualquer amparo, em virtude de estarem em condições de cumprimento de pena ou respondendo algum processo criminal.

E com isso também podemos ver que há um reflexo muito que moral da sociedade com este grupo de pessoas, vejamos, que de acordo com uma pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública 60% dos brasileiros concordam com a frase bandido bom é bandido morto, sendo assim, estas não são vistas como dignas de qualquer tratamento digno, muito menos a ter direito à saúde (EXAME DA ORDEM, 2016).

Entretanto, toda e qualquer pessoa é sim digna de direitos, e devem ter sua dignidade respeitada inclusive quando estão submetidas as situações de cárcere, para que seja assegurado seus direitos humanos que são violados diariamente dentro das cadeias brasileiras.

Para João Batista Herkenhoff, o conceito de Direitos Humanos é:

Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente, entendidos aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir" (HERKENHOFF, 1997. p. 33). 

Além de todos os problemas que a saúde pública em geral já sofre de fato, a saúde pública do indivíduo que tem sua liberdade privada acaba sendo ainda mais omitida pelo poder público e não causa revolta aos demais da população em razão de todo um preconceito institucionalizado, racista e classista que envolve há anos a população brasileira, ficando ainda mais prejudicado colocar em prática tudo que é assegurado pela Constituição e pela Lei de Execução Penal, e violando os princípios que tangem a dignidade da pessoa humana.

O que não se vê é que a negligência com a saúde da população carcerária por mais que enxerguem que esses indivíduos estão excluídos socialmente, na verdade não estão, colocando em risco também a saúde pública de uma forma geral, visto que tais doenças são fáceis proliferadas quando essa população entra em contato com as demais quando saem da prisão, ou até mesmo quando há um contato em visitas íntimas ou de familiares (HCW, 2016). 

Assim, a má gestão e escassez de recursos para a promoção da saúde pública também se reflete aqui, ocorrendo as mesmas deficiências que ocorre geralmente, seja problemas técnicos de gestão e execução como falta de medicamentos, falta de transporte para a locomoção de emergência, carência de profissionais as saúde e etc, bem como a ausência de interesse público na implantação de políticas efetivas e a melhora das já existentes.

Aqui, além de se tratar de direito à saúde aos que necessitam, trata-se de direito à saúde a uma população marginalizada pela sociedade como um todo, assim como também pelo poder público.

Vejamos que além da previsão de forma ampla na Constituição Federal, a Lei de Execuções Penais especifica em seu art. 10 que é dever do Estado prestar assistência ao preso, para que se previna o retorno ao crime e oriente no retorno à convivência em sociedade, e em seu art. 11 enumera quais são os tipos de assistência que o Estado deve prestar estando especificado em seu inciso II o direito à saúde.

A Lei de Execuções Penais (LEP) dá a garantia do direito à saúde em âmbito prisional, no entanto, tais garantias acabam não sendo cumpridas nos cenários estabelecimentos prisionais, necessitando da intervenção de um plano jurídico. 

O indivíduo que se encontra em situação prisional em algum momento voltará a conviver em sociedade, sendo certo que a ausência da aplicação de direitos básicos de saúde e cidadania, bem como a falta de condições dignas para a sua passagem pela situação prisional, faz com que os indivíduos encarcerados voltem a cometer crimes e retornem para a situação de prisão, indo totalmente de encontro com a política prisional de ressocialização que deveria ser imposta. Negar para esses indivíduos direitos básicos, prejudicam não só eles, mas como um todo.

Referências Bibliográficas

BERNARDES, José Eduardo. Superlotação dos presídios facilita proliferação de doenças, afirma médica. 

EXAME DA ORDEM. “Bandido bom é bandido morto", dizem 60% dos brasileiros. Pesquisa revela também que 70% da população acham que a polícia exagera na violência.

LERMEN, Helena Salgueiro; et al. Saúde no cárcere: análise das políticas sociais de saúde voltadas à população prisional brasileira. Physis, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, jul./set. 2015. 

MALLMANN, Bárbara Moreira. Violação dos direitos dos apenados: uma análise do precário sistema prisional brasileiro. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2015.

SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Claudio Pereira. Direitos sociais fundamentos judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.