O Conceito – O ECI Tópico
O ECI é uma criação jurídica que personifica um estado de violação massiva, habitual, do sistema de direitos fundamentais em sua globalidade, e não apenas de um direito individual violado. Através da noção de que uma suprema corte constitucional é a guardiã da constituição de um país, convencionou-se que o ECI é suscitado perante esta corte excelsa e por ela decidido, reconhecendo-se o estado de coisas inconstitucional e declarando-se as medidas necessárias ao restabelecimento da observância da constituição.
Deste modo, a violação aos direitos fundamentais deve ser, além de geral e reiterada, também oriunda da ação ou omissão de diferentes órgãos estatais, alcançando um número amplo e indeterminado de pessoas. Não se confunde o ECI com a proteção deficiente. No ECI, a proteção é mais do que ineficiente, é ineficaz, e afeta toda a coletividade. Na proteção deficiente, ainda é possível o exercício dos direitos fundamentais, embora com certo grau de especificidade e abrangência.
O reconhecimento do ECI como conhecido em nosso país e mesmo em outros países que o aplicam passa pela condução do processo pelo poder judiciário, cuja função originária é prestar a tutela jurisdicional e resolver conflitos, através de sua corte suprema constitucional, que no Brasil é o STF, na condição de guardião dos princípios, valores e normas constitucionais.
Quando esta violação atinge uma determinada categoria de diretos fundamentais, ocorre o ECI tópico. O exemplo da ADPF 347, do STF, é de ECI tópico. A causa de pedir e o pedido foram alusivos à violação contundente de apenas uma categoria de direitos fundamentais: a da população carcerária. Na verdade, foram questionadas a própria falência e desumanidade do sistema carcerário brasileiro.
Este ECI reconhecido pelo STF na ADPF 347 é meramente tópico, pois enquanto as violações massivas e reiteradas aos direitos fundamentais verificam-se em todas as instâncias sociopolíticas, cuidou apenas da população carcerária, não abrangendo as graves violações no sistema de saúde, de segurança pública etc.
Em 07/04/2021, em medida liminar concedida na ADI 5529, o Ministro do STF Dias Toffoli reconheceu o ECI no tocante ao imobilismo legiferante no setor de patentes, afirmando que a renovação automática de patentes de medicamentos era lesiva à saúde pública, pois impedia a prática de políticas públicas respectivas, mormente em tempos de pandemia, razão pela qual suspendeu o artigo 40 da Lei de Patentes brasileira.
Esta decisão liminar do Ministro Dias Toffoli exemplifica o ECI tópico, pois declara o estado de inconstitucionalidade pela omissão de determinados e identificáveis órgãos públicos. Enquanto o ECI é tópico, enquadra-se na definição doutrinária e jurisprudencial existente, sendo possível legitimar o poder judiciário, via corte suprema, para sua condução e implementação. O problema surge quando o ECI é estrutural.
O ECI Estrutural
A hipótese de um ECI estrutural era possível, mas não provável, até que a OMS declarasse estado de pandemia pela covid-19. Em fevereiro de 2020, o governo federal brasileiro alertou a OMS para que declarasse a covid-19 uma pandemia, ao mesmo tempo em que solicitava ao congresso brasileiro que declarasse estado de calamidade no Brasil. Apesar disto, seus apelos não foram ouvidos naquele primeiro momento, e a avaliação estratégica equivocada de políticos, estados e municípios fez com que, ainda em fevereiro de 2020, milhares de turistas nacionais e estrangeiros lotassem as ruas por ocasião do carnaval. Uma situação inédita em nossa história contemporânea e que alterou profundamente nossa realidade local e mundial. Uma nova geopolítica desenhou-se, demandas antes sentidas somente em tempos de guerra se impuseram, ao passo que demandas que nunca víramos apareceram.
O primeiro a sentir o colapso nos tempos pandêmicos foi o sistema de saúde. Despreparado ante algo novo e mortal em escala global, o sistema de saúde de cada país viu-se sem armas para lutar contra a contaminação e mortes em série. No Brasil, a situação foi ainda mais grave, pois o sinistro pandêmico encontrou um cenário de caos na saúde pública, com histórica e reiterada falta de leitos, de profissionais médicos, de tratamento ambulatorial a contento. São de longa data as fotografias, denúncias e reportagens sobre pacientes morrendo no chão de enfermarias lotadas e recepções de hospitais. Apesar disto, nunca foi suscitado o ECI quanto a este problema recorrente e histórico.
A economia foi a segunda a sentir os efeitos deletérios da pandemia, com decretos estaduais e municipais fechando comércios e serviços rotulados como não essenciais, paralisação de transporte público, toques de recolher, dentre outras medidas, numa espécie de lockdown à brasileira, o qual, obviamente, não funcionou como pretendido. Cito como exemplo os estados de São Paulo e Espírito Santo. Em São Paulo, apesar das medidas restritíssimas da fase roxa, houve o infeliz e inédito número de 1.300 mortos em 24 horas, em pleno dia 06 de abril de 2021, dias após a imposição de tais medidas. No Espírito Santo, foram 110 mortos em 24 horas na mesma data de 06 de abril, em duas semanas de um lockdown pela metade, em que nem todos os serviços foram paralisados. O número de leitos ocupados não se reduziu significativamente. A politização da pandemia também foi outro fator obscurantista que trouxe agravamento ao cenário de caos.
A situação em 2021 foi a de uma segunda onda mais agressiva e mortal, inexplicável se analisadas somente as falas dos gestores estaduais e municipais ao longo do ano de 2020. Com efeito, em fevereiro de 2020, enquanto o governo federal alertava para a pandemia e o estado de calamidade, os gestores estaduais convidavam todos, dentro e fora do país, a virem passar o carnaval no Brasil e em seus estados, desprezando as mortes já verificadas pela covid-19.
Em épocas próximas, conhecido médico brasileiro, referência em informativos de saúde e habituée de grandes mídias, afirmava, no início da pandemia, que a covid-19 significaria não mais que uma gripe, com raríssimos casos fatais, enquanto o presidente da república, em fala oficial, afirmava que nele, presidente, devido ao seu histórico de atleta, a covid-19 significaria apenas uma gripe comum.
Posteriormente, ambos os personagens mencionados tiveram suas falas interpretadas e mesmo distorcidas. O conhecido médico tratou de publicar uma nova fala, desdizendo-se e alertando para os reais perigos da covid-19. Já o presidente da república não se preocupou em realizar uma correção enfática do que estava sendo distorcido pelos meios noticiosos e de opinião, o que fez com que se tornasse quase uma verdade oficial a versão distorcida de que tal gestor havia declarado que a covid-19 era apenas uma gripe, quando o vídeo da transmissão governamental mostra que o presidente referiu-se a ele próprio, à sua condição pessoal particular, como causadora do efeito de apenas uma gripe.
Ainda em outubro de 2020, assistiu-se a estes mesmos gestores desmontarem (os que chegaram a montar) hospitais de campanha e declararem estarem preparados caso viesse a segunda onda da pandemia em 2021. A falta de consciência gestora e humanitária fez com que se visse líderes das políticas de restrição fazendo o oposto do que pregavam, viajando para o exterior, sem uso de máscaras, indo à praia, aglomerando-se em inaugurações e eventos, enfim, dando o exemplo para que a população também praticasse a desobediência civil.
Na segurança pública, profissionais se contaminando e morrendo em número elevado, causando déficit de efetivo, aliado à já histórica falta de estrutura e prerrogativas para as forças policiais, contribuíram para a piora da segurança e o aumento da criminalidade.
Na educação, a paralisação de aulas presenciais trouxe um paliativo de menor rendimento e maior dano social, que foram as aulas remotas. No caso da educação infantil, o fechamento das escolas feriu de morte a educação de 0 a 6 anos, etapa de vida em que o aprendizado se dá pelo contato, pela troca de experiências e pelo estímulo direto de professores e colegas sobre a iniciativa e interesse do pequeno aluno.
No congresso nacional, notou-se como a lentidão e as votações seletivas de determinados temas se agravaram com a pandemia, pois, se antes questionava-se o critério de urgência de determinadas matérias, agora questiona-se a própria realização de atividade legiferante condizente com as necessidades sociais.
O transporte público superlotado sem que se tomassem medidas a respeito, enquanto igrejas eram fechadas para culto, evidenciou uma situação próxima ao surrealismo, sendo claro que o correto seria estabelecer a mesma política para todos, pois eram um só o problema e seu público-alvo.
Até aqui, ainda se poderia imaginar a solução deste estado de coisas através do ECI tópico, com o poder judiciário capitaneando a empreitada. Isto já exigiria certa dose de boa vontade, pois a amplitude de instituições comprometidas com o ECI era de tal monta que seria questionável o simples ECI tópico para o caso. O problema é que também ele, poder judiciário, viu-se enredado em questionamentos acerca de abuso de poder e violação de direitos fundamentais.
Sem adentrar no mérito de tais questões, que obviamente não compete a este trabalho, o fato é que se viu, de forma inédita na história brasileira, o poder judiciário, especialmente o STF, nas manchetes de notícias sobre abuso de autoridade e frontal contrariedade à constituição federal, principalmente nos casos de inquérito 4870, da prisão do deputado federal Daniel Silveira, dentre outros.
A estas notícias, somam-se as acusações de invasão nos outros poderes da república pelo STF, de uma corte colegiada ter se convertido em tribunal de decisões monocráticas, de abalo à ordem jurídica, pública e social face à insegurança jurídica com decisões desencontradas entre si ou que causem clamor social. Até mesmo uma denúncia à corte interamericana de direitos humanos foi aventada.
Repita-se, sem analisar a veracidade ou não de tais denúncias e manchetes, é certo que, queiramos ou não, a credibilidade da corte suprema foi colocada sob dúvida, com movimentos para seu fechamento, sua extinção, o que, desde já, tem-se por espúrio, porque contrário à própria constituição.
Portanto, a esta verdadeira “pane” geral nas instituições brasileiras, soma-se o arrastar do poder judiciário para o centro das imputações de suspeita, o que fez com que o poder judiciário se tornasse, também ele, parte do problema. E é aqui que se chega ao ECI estrutural.
No ECI estrutural, a violação aos direitos fundamentais se torna mais que tópica, ela é geral, verificada na própria estrutura do sistema de direitos fundamentais previstos. Nada lhe escapa, nem mesmo a espinha dorsal dos direitos garantidos na constituição. No ECI estrutural, a violação é massiva, reiterada e afeta as instituições de forma naturalmente insanável. Por exemplo: saúde, educação, segurança, economia, ordem jurídica, organização do estado, de tal forma atingidos ou ameaçados que os mecanismos de resolução do ECI tópico já não eram suficientes.
Importante apontar: não é necessário esperar que se concretize o abalo incontornável das instituições no ECI estrutural. Basta a ameaça verificada de forma clara. Em metáfora, seria um contrassenso esperar que alguém fosse atingido por um tiro para evitar que o crime fosse cometido.
Também não é estritamente necessário que sejam comprometidas todas as instituições e órgãos estatais, mas apenas que o número de instituições e serviços comprometidos seja em tal monta que inviabilize o estado como prestador e garantidor dos direitos fundamentais.
Crio, portanto, o conceito de um ECI que considera como atentatório aos direitos humanos fundamentais e às garantias individuais, à liberdade, à vida e à democracia um ECI de tal modo imbricado em toda a rede de instituições e serviços públicos, que encampa, de uma só vez, todos os microproblemas verificados, todas as inconstitucionalidades estruturais específicas, as quais passam a constituir um quadro único e de macroespectro em que estão viciados os fundamentos do Estado: o EIC estrutural.