A Origem
A definição mais comum do chamado “estado de coisas inconstitucional - ECI” é no sentido de que se trata de “um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem alterar a situação inconstitucional ”.
É uma definição abrangente, e que se adequa perfeitamente à realidade brasileira de 2020 e 2021. O estado de coisas inconstitucional surgiu na Sentencia de Unificación (SU) 559, da corte constitucional colombiana, em 1997, que decidiu sobre a questão dos direitos previdenciários dos professores colombianos. Posteriormente, em 1998 e 2004, a mesma corte aplicou o conceito do ECI.
Na mencionada decisão SU-559, de 6 de novembro de 1997, a corte colombiana declarou o ECI face omissão de dois municípios do departamento de Bolívar, que não filiaram seus docentes no Fundo Nacional de Prestações do Magistério, mas estavam descontando dos salários destes professores não filiados recursos para subsidiar o referido fundo.
Na decisão, a corte considerou que, do mesmo modo que há o dever de comunicar o cometimento de um crime, igualmente existe o dever de comunicar omissão que ofende ditames constitucionais. Decidiu ainda que, sendo a corte constitucional o guardião da constituição, cabe-lhe instar o cumprimento de tais ditames, devendo o ECI estar vinculado à violação de direitos fundamentais, com amplo limite de abrangência, no que foi chamado de “questão jusfundamental”.
Posteriormente, na sentença T-068 de 1998 (acerca de mora habitual da Caixa Nacional de Previsão em resolver as petições dos aposentados), nas decisões SU-250 de 1998 e T-1695 de 2000 (falta de convocatória de concurso público para preencher vagas no sistema de notariado e registro), na Sentença T-590 de 1998 (que declarou o ECI pela omissão do Estado em adotar medidas para garantir a segurança dos defensores de direitos humanos), a corte colombiana decidiu sobre a concretização dos direitos fundamentais trazidos pela Constituição de 1991, notadamente seu artigo 95, segundo o qual a constituição obriga a defender e difundir os direitos humanos como fundamentos da convivência pacífica.
E prosseguiu a corte colombiana pronunciando o ECI, como se vê em decisões subsequentes (Tutelas 719 de 2003, 1191 de 2004 e 025 de 2004, a famosa tutela sobre a violação dos direitos dos povos deslocados).
No Brasil, o ECI veio suscitado perante o Supremo Tribunal Federal – STF, em 2015, na Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 347/DF, Rel. Min. Marco Aurélio. DJ. 09/09/2015), na qual se discutia o sistema penitenciário brasileiro. Os pedidos na ADPF foram:
“a) que fossem determinados ao Governo Federal a elaboração e o encaminhamento ao Supremo, no prazo de três meses, de um plano nacional visando à superação, dentro de três anos, do quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro;
b) que o aludido plano contivesse propostas e metas;
c) que o plano previsse os recursos necessários à implementação das propostas e o cronograma para a efetivação das medidas;
d) que o plano fosse submetido à análise do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da Procuradoria-Geral da República (PGR), da Defensoria-Geral da União, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e de outros órgãos e instituições que desejassem se manifestar e da sociedade civil;
e) que o Tribunal deliberasse sobre o plano, para homologá- lo ou impor providências alternativas ou complementares;
f) uma vez homologado o plano, fosse determinado aos governos dos estados e do Distrito Federal que formulassem e apresentassem ao Supremo, em três meses, planos próprios em harmonia com o nacional, contendo metas e propostas específicas para a superação do ECI;
g) que o Tribunal deliberasse sobre cada plano estadual e distrital, para homologá-los ou impor providências alternativas ou complementares;
h) que o Supremo monitorasse a implementação dos planos nacional, estaduais e distrital, com o auxílio do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (DMF) e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, em processo público e transparente, aberto à participação colaborativa da sociedade civil.”
Os ministros do Supremo Tribunal Federal só conseguiram chegar a duas conclusões e decidir somente dois dos oito itens do pedido: proibição à União de contingenciar o dinheiro do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) e realização urgente de audiências de custódia.
Ao contrário do panorama colombiano, no Brasil o reconhecimento do ECI não foi muito prolífico, havendo conhecimento apenas da ADPF 347 e na ADI 5569 de 2021, que declarou ECI no sistema de patentes de medicamentos e suspendeu a vigência do artigo 40 da Lei de Patentes brasileira. Notícia há do reconhecimento do ECI no Peru, mas em amplitude tão tímida quanto a brasileira.