O STF e o Direito Fundamental à Autodeterminação Informativa

A proteção aos direitos fundamentais é prática em movimento, e o Supremo Tribunal Federal não se furta a reconhecê-los. O presente artigo traz o direito à autodeterminação informativa sob a óptica da recente jurisprudência da Corte constitucional brasileira, tendo como linha condutora os votos já proferidos em sede da ADI nº 5527 e da ADPF nº 403, bem como a medida cautelar concedida na ADI nº 6387 (e outras).


Mais uma vez o Supremo Tribunal Federal se debruça sobre os direitos digitais e constrói nova camada de compreensão acerca dos direitos fundamentais.

Nesta quarta-feira, dia 27 de maio de 2020, teve início o julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5527 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 403, que foi continuado no dia subsequente. Em ambos os controles concentrados de constitucionalidade, o STF é instado a se manifestar sobre a possibilidade de suspensão dos serviços de mensagens pela internet, como o aplicativo WhatsApp, pelo suposto descumprimento de ordens judiciais que determinem a quebra de sigilo das comunicações.

Votaram os respectivos relatores, a Ministra Rosa Weber (ADI 552) e o Ministro Edson Fachin (ADPF 403) pautados na compreensão da inserção do sigilo das comunicações entre as garantias constitucionais. 

Ao votarem, entenderam que a inteligência da  Lei nº 12. 965/2014 (Marco Civil da Internet) não deve permitir que seja dado acesso ao conteúdo de mensagens criptografadas ponta-a-ponta, mesmo que por ordem judicial. Avançam para esposar a compreensão de que o Marco Civil da Internet permite apenas o fornecimento pelas empresas quanto aos metadados - informações não protegidas por sigilo.

Ao iniciar o seu voto, o Ministro Edson Fachin parte de algumas premissas que merecem atenção. Compreende que “o impacto tecnológico das mudanças porque passa a sociedade reclamam um permanente atualizar do alcance dos direitos e garantias fundamentais”, e vincula o direito à autodeterminação informativa ao direito constitucionalmente previsto à privacidade.

Afirma, ademais, que a garantia à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações configura condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet, sendo os direitos digitais também direitos fundamentais.

Segundo o Ministro Fachin, a utilização de criptografia ponta-a-ponta é um meio de se assegurar a proteção de direitos que são essenciais para a vida pública numa sociedade democrática. Frisa, ainda, que o reconhecimento a esse direito constitucional não afasta das empresas que produzem apps da incidência da legislação e nem da jurisdição brasileira  que tenham por determinação a entrega de dados que não dependam da quebra de criptografia.

Nessa toada, importante que se traga à mesa recente acórdão proferido-  em 7 de maio deste ano - também pelo Supremo Tribunal Federal, em que o plenário da Corte, em referendo ao voto condutor da Relatora Ministra Rosa Weber (ADIs nº 6387; 6388; 6389; 6390 e 6393) , houve por bem conceder medida cautelar para suspender a Medida Provisória 954/2020, que previa o compartilhamento de dados de titulares entre as operadoras de telefonia - móvel e fixa - com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE para fins de produção de estatística oficial durante a pandemia da Covid-19.

Em seu voto, a Relatora Ministra Rosa Weber, em menção ao artigo The Right to Privacy, de autoria dos Justices da Suprema Corte estadounidense Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis, reconhece que “as mudanças políticas, sociais e econômicas demandam incessantemente o reconhecimento de novos direitos, razão pela qual necessário, de tempos em tempos, redefinir a exata natureza e extensão da proteção à privacidade do indivíduo”.

Avança na compreensão de que “permanece como denominador comum da privacidade e da autodeterminação o entendimento de que a privacidade somente pode ceder diante de justificativa consistente e legítima”.

Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal, em sua configuração plenária, compreendeu que compartilhamento previsto na Medida Provisória nº 954/2020 viola o direito constitucional à intimidade, à vida privada e ao sigilo de dados, suspendendo, assim, a sua vigência.

Com efeito, trata-se de um esforço hermenêutico necessário, que trouxe o direito à autodeterminação informativa ao patamar de  verdadeiro direito fundamental.

Nesse aspecto, importante invocar Häberle em seu pensamento do possível que vem a abrir perspectivas  constitucionais para novas realidades, para o fato de que a realidade de hoje pode corrigir a de ontem, especialmente a adaptação às necessidades do tempo de uma visão normativa.

De fato, pela lição de Scheuner, citada por Häberle, a Constituição,  a fim de ser preservada sua força regulatória em uma sociedade pluralista, não pode ser vista como texto acabado ou definitivo, mas sim como “projeto” em desenvolvimento contínuo. 

O STF traz, assim, o entendimento de que a garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet, ou seja, os direitos digitais são também direitos fundamentais.

Nesse aspecto, importa observar a garantia à privacidade constitui pilar para estruturações de sociedades democráticas e, como tal, é alçada à direito fundamental no Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), em seu artigo 11.

Segundo o dispositivo, garante-se a proteção da honra e da dignidade ao determinar-se que “ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”. Nessa mesma toada a Convenção Europeia de Direitos Humanos (artigo 8º) e o Declaração Universal de Direitos Humanos (artigo 12).

Quando se fala da implementação desses dispositivos via prestação jurisdicional internacional, vê-se que a Corte Europeia de Direitos Humanos já lançou mão da proteção ao direito à privacidade para tutelar casos de vazamento indesejado de fotos e quebra de sigilo de correspondências.

Destaca-se o caso Big Brother Watch na Others v. the United Kingdom, (application no. 58170/13) que trata das denúncias trazidas por jornalistas, cidadãos e organizações jurídicas sobre três diferentes regimes de vigilância: (1) a interceptação em massa das comunicações; (2) compartilhamento de inteligência com governos estrangeiros; e (3) obtenção de dados das comunicações a partir dos provedores de serviço.

Nesse contexto, a Corte Europeia entendeu que os programas de coleta de dados em massa implementados pelo Reino Unido constituem violação aos Direitos Humanos uma vez que deixou de incorporar as salvaguardas adequadas de privacidade. Entendeu, num movimento evolutivo ainda tímido, que a vigilância em massa e o compartilhamento de inteligência não constituem mácula ao direito internacional.

Num outro giro, observa-se, sob a perspectiva dos diferentes tratados internacionais de Direitos Humanos, que a proteção de dados – especialmente a proteção de dados sensíveis - busca, em grande medida, evitar potenciais distinções odiosas e discriminatórias de tratamento com base em raça, etnia, religião, posicionamento político, filiação sindical e  orientação sexual. Nesse sentido a previsão da Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 2º) bem como a  Convenção Americana de Direitos Humanos  (artigo 1º, item 1).

Como nos ensina Joaquin Herrera Flores (2009, p. 28) “os Direitos Humanos, mais que direitos ´propriamente ditos´, são processos; ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários para a vida”.

Exatamente nesse movimento constante e necessário a Suprema Corte brasileira traz a Constituição de 1988 para o diálogo sobre novos-velhos direitos e para a construção do cenário que receberá a Lei Geral de Proteção de Dados a partir de agosto deste ano.

Referências bibliográficas

Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5527. 

Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 403. 

CONVENÇÃO Americana de Direitos Humanos = CONVENCIÓN Americana de Derechos Humanos. 22 de novembro de 1960. 

CONVENÇÃO Europeia de Direitos Humanos = EUROPEAN Convention on Human Rights. 4 de novembro de 1950. 

DECLARAÇÃO Universal de Direitos Humanos = UNIVERSAL Declaration of Human Rights. 10 de dezembro de 1948. 

EUROPE. European Court of Human Rights. Grand Chamber hearing on complaints about surveillance systems in the case of Big Brother Watch and Others v. the United Kingdom

HÄBERLE, P. Demokratische Verfassungstheorie im Lichte des Möglichkeitsdenken, in: Die Verfassung des Pluralismus, Königstein/TS, 1980. Apud MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisprudência de Crise e Pensamento do Possível: caminhos constitucionais. Consultor Jurídico. 

HERRERA FLORES, Joaquín.  A reinvenção dos direitos humanos. Tradução de : Carlos Robertor Diogo Garcia; Antônio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias. – Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.387 – Distrito Federal. 

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. “Relatores consideram inconstitucional quebra do sigilo de comunicação em aplicativos de mensagens”.