Introdução
O presente artigo versa sobre o fenômeno denominado Pornografia de Vingança, que consiste em uma das espécies de divulgação não consentida de material íntimo na internet. A escolha deste tema visa ampliar o debate em torno da temática, além de buscar retirá-la do campo da invisibilidade jurídica e social. A questão tratada ultrapassa os limites da privacidade e diz respeito a uma forma devastadora de violência de gênero, visto que as mulheres são as mais afetadas pela incidência do compartilhamento de imagens sexuais sem consentimento – conforme dados e argumentos.
Os esforços foram direcionados para enfatizar o questionamento acerca das estruturas sociais e culturais que legitimam e viabilizam a manutenção e ampliação da incidência do fenômeno estudado. Nesse sentido, o artigo foi elaborado de forma a ilustrar e demonstrar que a Dominação Masculina não só paira sobre a nossa sociedade, como também é mantida e sustentada pelos institutos patriarcais presentes nela – em especial a mídia (hoje por meio das redes sociais, principalmente) e o aparato judiciário como um todo.
Desmonta-se o viés biológico que é utilizado para manter a binariedade sexual entre homens e mulheres, a partir da afirmação de que se trata de uma construção social repetida tantas vezes que se tornou aceita de modo geral. É notório, pois, que desde a infância somos influenciados a acreditar que meninos e meninas possuem vocações e aptidões diferentes – trata-se do início do ciclo de subordinação pelo qual as mulheres são condicionadas durante toda a sua vida. Diante do reconhecimento de que os espaços femininos são limitados a ambientes domésticos e que sua sexualidade não deve ser exercitada, é possível compreender a Pornografia de Vingança como uma espécie de punição à mulher que subverte a ordem imposta.
Enquanto mulher, sempre me foi corriqueiro o questionamento sobre que ordem é essa, de onde ela surgiu e como se fez aceita ao longo de gerações, apesar das históricas lutas por igualdade. A partir do reconhecimento dessa ordem, é possível observar os esforços na manutenção dessa estrutura desigual através de instrumentos que estão e sempre estiveram à disposição da dominação masculina.
Com isso, foi possível demonstrar como a violência de gênero, em especial a Pornografia de Vingança, é um fenômeno que ultrapassa barreiras geográficas, etárias e sócio econômicas, atingindo mulheres muito distintas entre si, mas que possuem histórias similares: tiveram suas vidas modificadas contundentemente por força do machismo intrínseco na estrutura social.
Em sequência, busca-se refletir, na construção desse artigo, a necessidade veemente de promover a reversão da ordem de subordinação na qual estamos inseridas, pois embora a Pornografia de Vingança atinja privativamente cada vítima, trata-se uma questão que atinge a todas as mulheres coletivamente.
Aspectos Gerais da Contrução Socio-Cultural da Pornografia de Vingança
O fenômeno da Pornografia de Vingança, que se origina do termo em inglês “revengeporn”, consiste na exposição sem consentimento de qualquer material sexualmente gráfico, íntimo e privado de alguém. (PIMENTA, 2016) Em geral, essa exposição tem como objetivo principal gerar constrangimento e humilhação para a mulher vítima que, independentemente de ter consentido ou não com a gravação ou a fotografia, não consentiu a sua divulgação. Por fim, cumpre destacar que, embora o termo “pornografia de vingança” seja o mais conhecido na mídia, não é o mais correto, tendo em vista que não engloba todas as situações possíveis, isso, pois existem casos em que não há envolvimento pessoal entre as partes, ocorrendo ainda situações de hackers que visam obter alguma vantagem, que é o caso da chamada sextorsão. Diante do exposto, a terminologia que melhor se enquadra é “pornografia não-consensual”- vez que se trata da distribuição de imagens sexualmente gráficas de indivíduos sem o seu consentimento”, conforme elucida a organização EndRevengePorn.
Essa forma de violência moral – que, segundo a classificação do Conselho Nacional de Justiça, é toda ação destinada a caluniar, difamar ou injuriar a honra ou a reputação da mulher e, logo, a pornografia de vingança se enquadra nesse conceito pois tem como finalidade humilhar a mulher a partir da divulgação não consentida de material gráfico íntimo – se dá, em regra, quando o agressor possui algum vínculo afetivo com a vítima. Como a própria nomenclatura já pressupõe, trata-se de um ato movido – em princípio – pelo descontentamento com o fim de um relacionamento. Nesses casos, o vínculo de afetividade existente entre a vítima e o autor pode, inclusive, caracterizar o ato da divulgação como uma forma de violência doméstica.
Existem inúmeros casos onde os materiais foram distribuídos por amigos, familiares e outras pessoas do círculo de confiança da mulher vítima. Nesse sentido, além dos danos causados pela invasão da privacidade, bem como pela violação não consensual de sua intimidade, há também a ocorrência da quebra de confiança da mulher vítima em relação ao agressor (RODRIGUEZ; DUTRA, 2016, p. 11).
A Pornografia de Revanche, outra nomenclatura utilizada para definir esse fenômeno, tornou-se um problema ainda mais latente a partir da ascensão da informática e da ampliação das relações sociais por meio virtual. Isso, pois, além das consequências mencionadas anteriormente, a mulher vítima pode ter sua intimidade exposta de forma permanente caso o material seja distribuído na rede mundial de computadores.
Quando off-line, é mais viável mensurar o alcance do conteúdo a um limitado grupo de pessoas. No entanto, a partir do momento que é exposto na internet, o material ganha abrangência global e torna-se, na prática, impossível de ser excluído permanentemente da rede. Esse ato que, inicialmente, tem repercussão negativa “apenas” no ciclo de convivência da vítima, ganha uma abrangência nacional ou mesmo mundial, tendo em vista as diversas formas de compartilhamento existentes na atualidade.
Além dessa repercussão exacerbada, o conteúdo se espalha de forma muito veloz, o que torna a remoção das imagens ainda mais distante do êxito total. Mesmo que a vítima busque a exclusão dessas imagens pela via judicial, é certo que a ordem de remoção, em regra, só surte efeito na esfera local e nacional. Com o advento da divulgação do conteúdo íntimo na internet, as consequências se tornam perpétuas. Isso, pois o material, quando vinculado a web, pode ser salvo e, portanto, é passível de novo compartilhamento a qualquer tempo – gerando uma apreensão para a vítima, que nunca sabe quando poderá ser exposta novamente. Configurando-se, assim, como uma violência continuada em relação à mulher vítima, que pode ser surpreendida em qualquer fase de sua vida pela reexposição do conteúdo.
Geralmente, o autor da divulgação, por ter vínculo com a vítima, tem acesso a diversos âmbitos de sua vida – ciclo profissional, de amizade e familiar. Sendo assim, além de realizar o compartilhamento de modo geral na web, o agressor pode, como é comum, inclusive, endereçar o conteúdo sexual para os parentes, amigos e até mesmo colegas de trabalho, garantindo que o dano seja, de fato, ainda mais gravoso. Nesse ínterim, torna-se claro o efeito devastador nas relações de trabalho e sociais da vítima, que pode ficar sujeita à demissão, bem como à exclusão do grupo social ao qual faz parte.
A mulher vítima sofre uma punição dupla, além do constrangimento provocado pela divulgação não consentida de sua intimidade a terceiros, também lhe é atribuída a culpa pelo vazamento do conteúdo íntimo, vez que constantemente é colocada em voga a razão pela qual a mulher consentiu a gravação, mas quase nunca se questiona o porquê de o autor ter quebrado a confiança da vítima e a exposto perante milhões de internautas.
A Partilha consensual de imagens íntimas (nuas) muitas vezes é feita com a compreensão implícita ou expressa de que estas imagens permanecerão confidenciais. Como vítimas de pornografia vingança geralmente afirmam, elas compartilharam suas imagens íntimas e fotos nuas porque, e somente porque, seus parceiros lhes asseguraram que estas imagens seriam mantidas em sigilo. No entanto, o público tem dificuldade em reconhecer a importância dessa “promessa” de confidencialidade, ainda que implícita, no contexto de um relacionamento.
Críticos resistem à criminalização da pornografia de vingança com o argumento de que o consentimento de ter ou tirar fotos em um contexto de um relacionamento de confiança se traduz em consentimento em outros contextos, como compartilhar estas imagens com o mundo. Esse entendimento de consentimento é contrário à ideia de compartilhar informações confidenciais em um contexto restrito. Expressos como, por exemplo, na lei de privacidade e na lei de bolsas de estudos.
Consentimento para compartilhar informações em um contexto não serve como consentimento para compartilhar essa informação em outro contexto. Quando uma pessoa dá seu cartão de crédito a um garçom, ela não está consentindo para deixar o garçom usar esse cartão para fazer compras pessoais. Quando uma pessoa confia um médico com informações confidenciais de saúde, ela não está autorizando que o médico de compartilhar essas informações com o público. O que os companheiros compartilham um com o outro não é equivalente a compartilham com colegas de trabalho, conhecidos ou empregadores. O consentimento é contextual; não é um interruptor liga e desliga. (FRANKS; CITRON. 2014, p. 11)
Por todas as consequências originadas do compartilhamento pelo meio cibernético, cria-se a ilusão de que esse é um fenômeno atinente apenas à modernidade tecnológica. No entanto, a partir de uma breve análise da origem histórica da Pornografia de Revanche, é possível observar que essa é uma problemática que não nasceu na última década, mas vem se perpetuando há bastante tempo, sendo a internet um meio de intensificar exponencialmente os efeitos desse delito.
Em 1980, a revista americana Hustler convocou e incentivou que seus leitores enviassem fotos íntimas de suas parceiras para que o veículo de comunicação as publicasse. Essa ideia foi fruto de uma campanha nomeada de “Beaver Hunt” (em tradução livre, "Caçador de Castores"). Além da exposição de imagens de cunho privado, os leitores revelavam informações sobre as mulheres, bem como características de seu comportamento sexual. Ocorre que, os editores da revista não buscavam investigar a procedência das informações e imagens e isso resultou na divulgação de imagens sem o conhecimento ou consentimento das protagonistas, deflagrando-se, assim, o fenômeno contemporâneo tratado no presente trabalho.
Já nos anos 90, a partir do aumento de usuários na rede, o pesquisador Sérgio Messina passou a observar uma conduta cada vez mais recorrente na web, prática essa que denominou de “Real core Pornography”, cuja tradução livre é "Pornografia real". Esse termo foi utilizado pelo pesquisador para denominar a conduta característica de diversos usuários em publicar imagens pornográficas de ex-parceiros, com uma finalidade de caráter difamatório, cuja finalidade era prejudicar a chamada identidade virtual das vítimas.(GOMES, 2015)
Somente a partir do ano de 2010, com a fundação do site IsAnyoneUp?, nos EUA, este tipo de conduta passou a ser nomeado de RevengePorn. Isso, pois o site passou a incentivar a pornografia de vingança – no sentido mais literal do termo – entre seus usuários. Intitulando-se, ainda, “especialista em pornografia de revanche”. Tal veículo possuía uma média de 350 mil visualizações por dia, tendo seu funcionamento proibido e cancelado apenas dois anos depois, em 2012. (GONÇALVES, 2016, p. 26)
Mesmo que esse não seja um fenômeno exclusivo da atualidade, é evidente que com a evolução dos mecanismos cibernéticos a incidência aumentou de forma potencial. Há alguns anos as pessoas precisavam revelar e escanear as imagens para compartilhá-las, hoje a propagação se faz a partir de um “clique” e tem uma abrangência e repercussão praticamente imediatas em toda a rede, haja vista a facilidade advinda do avanço das máquinas fotográficas digitais, webcams e, principalmente, dos smartphones que, além de meio para capturar as imagens, é o principal instrumento para propagá-las.
Superada a questão do aumento potencial da revengeporn quando do advento da internet, cumpre ressaltar que, no que tange à incidência desse fenômeno, as mulheres são as principais atingidas por essa violência. (PORTAL SAFERNET, 2016) Não podendo ser ignorado, por óbvio, a existência de homens sujeitos à exposição por força da Pornografia de Vingança. No entanto, tal fenômeno deve ser tratado como um problema específico de gênero, no qual o sexo feminino é afetado de maneira desproporcional em comparação com o masculino.
Segundo dados vinculados pela ONG Marias da Internet, fundada por uma vítima de Pornografia de Vingança, Rose Leonel, que se dedica à orientação e apoio psicológico às vítimas da disseminação indevia de material íntino, a organização virtual atende em média 10 (dez) mulheres, de todos os lugares do país, por mês, segundo informações obtidas por entrevista feita pelo Painel RPC no ano de 2018. (PORTAL MARIAS DA INTERNET, 2018) Importa salientar que essa contabilidade é muito restrita, tendo em vista que boa parte das mulheres não busca ajuda e acaba convencendo-se de que errou em compartilhar sua intimidade.
Historicamente, foi imputado à imagem da mulher o recato e a castidade. Sendo assim, a vítima mulher que tem a sua vida sexual exposta sofre uma represália social muito maior do que o homem. Esse tipo de conduta torna clara a situação de desigualdade entre os gêneros, ainda nos dias de hoje, reforçando a ideia de opressão e dominação masculina.