Pornografia de Vingança: Adestramento dos Corpos

Importa aduzir, precipuamente, que, de acordo com a percepção de Focault, o termo Adestramento dos Corpos, igualmente cunhada pelo sociólogo em seu livro "Vigiar e Punir", consiste no ato de disciplinar comportamentos e de criar vocações sociais para cada classe de ser. Neste trabalho busca-se elucidar o efeito dicotômico da disciplina sobre os corpos masculinos e femininos. De toda sorte “A disciplina aumenta as forças dos corpos (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência), a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e a dominação acentuada”. (FOCAULT, 2000, p. 150)

A partir da identificação e definição do fenômeno da Pornografia de Revanche, insta analisar alguns pontos que são cruciais para entender as motivações e construções sociais que tornam esse tipo de violência cada vez mais comum.

Em referência à Simone de Beauvoir, em sua obra O Segundo Sexo, é necessário pontuar que a pretensa superioridade masculina não se trata de um fato natural, mas sim de uma construção social iniciada ainda na infância. A autora evidencia que não há qualquer explicação biológica ou psíquica que determine a forma assumida pela mulher e pelo homem na sociedade, mas a explicação reside no conjunto da civilização que forma esses papéis.

A infância é uma fase determinante no que toca à assimetria sexual e cultural existente entre homens e mulheres. Nos primeiros três ou quatro anos de vida, o menino e a menina são submetidos às mesmas experiências, possuem os mesmos tipos de comportamentos e anseios, bem como ainda não são objeto de diferenciação significativa pelos adultos. (BEAUVOIR, 1967, p. 11)

A partir desse marco temporal – que não deve ser observado de forma tão linear – é possível conferir aos corpos femininos e masculinos características “típicas” que irão contribuir contundentemente para a tomada de papéis sociais fixos pelos homens e mulheres que se formarão. O termo “conferir aos corpos” determina, desde logo, que essa diferenciação não trata de aspectos biológicos, mas sim culturais. 

Conforme pontua Beauvoir, com o passar do tempo, os pais vão delimitando papéis aos filhos e filhas. Sendo certo que passam a tratar com repulsa os comportamentos afetivos, frágeis e amorosos dos meninos, afastando eventuais demonstrações de tristeza ou fraqueza. Buscando, dessa forma, nutrir nas crianças do sexo masculino uma espécie de “orgulho da virilidade” (BUZZI, 2015, p. 17)

Essa prática, por sua vez, cria no menino um espectro de dominação, ou seja, passa a projetar-se como uma figura forte e superior. As exigências a que são submetidos, implicam, de imediato, em uma espécie de valorização do gênero masculino. Os adultos, nesse ínterim, levam a criança a crer que é por conta da superioridade dos meninos que exigem mais dele.

Às meninas, por outro lado, é reservado o papel “privilegiado” de estar ao lado da mãe, tendo sua feminilidade incentivada e nutrida. Essa feminilidade pode ser definida e ilustrada pela fragilidade, delicadeza e afetividade que se espera de uma mulher. Sendo certo que é a partir da construção dessas características que se cria a chamada “vocação feminina”. 

Assim, a passividade que caracterizará essencialmente a mulher "feminina" é um traço que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas é um erro pretender que se trata de um dado biológico: na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade. A imensa possibilidade do menino está em que sua maneira de existir para outrem encoraja-o a pôr-se para si. Ele faz o aprendizado de sua existência como livre movimento para o mundo; rivaliza-se em rudeza e em independência com os outros meninos, despreza as meninas. Subindo nas árvores, brigando com colegas, enfrentando-os em jogos violentos, ele apreende seu corpo com um meio de dominar a natureza e um instrumento de luta; orgulha-se de seus músculos como de seu sexo. (...) Ao contrário, na mulher há, no início, um conflito entre sua existência autônoma e seu "ser-outro"; ensinam-lhe que para agradar é preciso procurar agradar, fazer-se objeto; ela deve, portanto, renunciar à sua autonomia. (BEAUVOIR. 1967, p. 21, 22)

Conforme a menina vai crescendo, mais clara e presente se torna a superioridade masculina. Quando chega a hora de se afastar do lar materno, a “vocação feminina” passa a ganhar outro viés e o privilégio feminino construído, até então, passa a ser desconstruído gradualmente. Concomitantemente à percepção da superioridade masculina, vivencia a experiência da inferioridade feminina, seja pela aquisição de discernimento acerca da dominação do pai sobre a mãe, seja na imagem social nutrida sob seu corpo. 

A puberdade, enfim, é o ápice da construção hierárquica do corpo masculino sob o feminino. Até então, mesmo com a diferenciação socialmente perceptível, a relação da menina e do menino com seus corpos era bastante similar. Contudo, nessa fase, diante das diversas transformações corporais que ambos sofrem, nasce uma dicotomia clara e perigosa entre os meninos e as meninas. 

Ainda que embaraçosas e problemáticas, as transformações corporais masculinas são motivo de orgulho, vez que os meninos sentem que o crescimento de pelos ao redor de seus corpos é mais um sinal da virilidade que desde sempre lhe foi imputada e incentivada. (BUZZI, 2015, p. 19) A partir dessa fase, passam a ser pressionados para aflorar sua sexualidade o quanto antes, o que acaba imputando-lhes um “instinto sexual” mais intenso e precoce do que das meninas da mesma idade. 

Já as meninas enfrentam uma problemática diferente, passam a serem percebidas, notadas e desejadas por olhares masculinos, o que desencadeia uma espécie de repugnância ao seu próprio corpo, porque, além de agradarem a si próprias, passam a necessitar da aprovação masculina. (BEAUVOIR, 1967, p. 48) Desse modo, a disparidade com que é tratada a puberdade masculina e feminina evidencia uma hierarquia social e determina a significação atribuída a cada sexo no futuro.

Nesse sentido, quando da iniciação sexual, o duplo padrão com que são tratados os sexos é determinante para as mulheres. A dicotomia se revela, principalmente, no tratamento que a sociedade despende em relação à vontade sexual feminina e masculina. Durante toda a infância e principalmente na fase pós-puberdade, os homens são ensinados e incentivados sexualmente, demonstrando que o sexo é forma de afirmação de sua virilidade. 

Todavia, às mulheres é reservada a passividade, a castidade e a inibição de seus desejos sexuais. Até mesmo a educação sexual das mulheres é efetivada com base na aceitação masculina. A partir dessa perspectiva, tem seus comportamentos e pensamentos podados com o intuito de não causar qualquer inconveniente ou desagrado aos homens, bem como buscam adequar-se à figura feminina clássica e inalcançável, que se autodetermina a partir das determinações e desejos do homem.

A padronização sexual de homens e mulheres pode ser a origem de frustrações sexuais para ambos, sendo certo que aos homens é imputado um excessivo incentivo à sexualidade – por vezes desrespeitando seus desejos, suas orientações sexuais e seu próprio tempo. Enquanto à mulher é reservado o incontestável recato e a imposição inquestionável da virgindade, como forma de dignificá-la ante ao julgamento social e, principalmente, masculino. Sendo certo que às mulheres é reservado o objetivo de “conseguir”um casamento e, a partir dele, lançar mão de sua máquina reprodutiva. Este se relaciona no que toca ao estado civil de solteiro, onde há uma discrepância entre o tratamento experimentado pelo homem e pela mulher. O homem solteiro mais velho é visto como alguém que não encontrou a parceira ideal, ao passo que o status de solteira para uma mulher da mesma idade é sinônimo de amargura e representa algo de errado com ela e, por isso, ninguém a quis. A dignidade feminina para a sociedade depende de um casamento bem-sucedido, ao passo que o homem basta-se por si só. 

A jovem apresenta-se, pois, como absolutamente passiva; ela é casada, dada, em casamento pelos pais. Os rapazes casam-se, resolvem casar. Buscam no casamento uma expansão, uma confirmação da sua existência mas não o direito mesmo de existir: é um encargo que assumem livremente. [...] isso é para eles um modo de vida apenas, não um destino (BEAUVOIR, 1967, p. 168)

Enquanto na puberdade os meninos são incentivados a partir da doação de revistas de pornografia e pressionados por outros homens a iniciar-se sexualmente, as mulheres buscam esconder sua sexualidade e frustrar seu desejo sexual, vez que se veem diante de uma educação patriarcal que impossibilita até mesmo suas próprias mães de dialogar sobre o assunto com elas, transformando a descoberta e desenvolvimento sexual feminino em um grande tabu. 

Aos homens, portanto, reservou-se o papel de iniciar-se e desenvolver-se sexualmente o quanto antes com o intuito de alcançar a virilidade e “dar o primeiro passo” em uma relação, visto que tal comportamento é socialmente reservado aos homens, que devem ser os detentores da iniciativa. Incompatível se faz, no entanto, com a situação da mulher que não deve, tão cedo, submeter-se à iniciação ou sucumbir ao seu desejo sexual. 

Tal dicotomia acaba por explicar inúmeros fenômenos sociais. Para o homem se fez natural e necessária a variedade sexual, em contrapartida a mulher sempre foi influenciada a casar-se virgem e manter seu casamento a qualquer custo. 

Um único ato de adultério por parte de uma esposa era uma violação imperdoável da lei da propriedade e da ideia de descendência hereditária e a descoberta punha em ação medidas altamente punitivas. O adultério por parte dos maridos, ao contrário, era amplamente encarado como uma fraqueza lamentável, mas compreensível (GIDDENS. 1993. p. 17)

Conforme afirma Pierre Bourdieu, as mulheres estão inscritas na fisionomia do ambiente familiar, ao passo que os homens raras vezes se veem associados à casa e às atribuições inerentes ao lar. (BORDIEU, 2012, p. 72) Esse é um ponto crucial para elucidar qual a relação do adestramento dos corpos, iniciado ainda na infância, com o fenômeno tratado no presente trabalho. 

A perpetuação de um enquadramento feminino ou masculino em determinadas vocações e funções sociais gera um efeito ainda mais danoso para as vítimas femininas de pornografia de vingança. A partir do momento que a sexualidade é um símbolo de virilidade para o homem e uma representação de culpa para a mulher, os efeitos que emanam de seu exercício são também dicotômicos. 

A repercussão dos casos de pornografia de vingança varia de forma contundente entre homens e mulheres. Os dados acerca do assunto são ainda muito incipientes, mas uma pesquisa realizada no ano de 2014 pela instituição conhecida como SaferNet, identificou que 81% (oitenta e um por cento) das vítimas de pornografia de vingança são mulheres. (PORTAL EBC, 2015) Tal diferença se verifica em razão da estipulação de papéis sociais que determinam a criação de tabus em torno da sexualidade feminina. Portanto, a exposição masculina é uma forma de promoção, enquanto a feminina é uma das piores formas de depreciação. 

Não é complexo compreender que os seres humanos nascem como telas em branco e são moldados conforme suas respectivas experiências sociais. Os corpos, nesse sentido, funcionam essencialmente como instrumentos para definir papéis sociais. A grande problemática se dá quando esse adestramento corporal se torna ferramenta de dominação e supressão de uns em relação a outros, leia-se: dos homens em relação às mulheres.

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo — ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. (FOCAULT, 1999, p. 163)

Ainda no que toca ao adestramento dos corpos, Beauvoir observa na moda mais um mecanismo criado para aprisionar a mulher. A moda, mesmo que quase sempre tenha sido vista como uma forma de livre expressão de personalidade, nada mais é do que uma privação da própria existência feminina. Isso, pois foi construída de forma a, quase sempre, mostrar e oferecer o corpo feminino, que é utilizado, mais uma vez, como uma “presa” aos desejos masculinos. (BEAUVOIR, 1970, p. 296)

A partir desse pressuposto, conclui-se que a mulher tem uma autonomia completamente condicionada à existência masculina. Sendo assim, a mulher possui uma autonomia mitigada, cujos desejos são subordinados aos desejos do homem. Caso uma figura feminina busque se contrapor a essa lógica, é punida e relembrada que a sexualidade feminina está em constante serviço à sexualidade masculina. 

Uma mulher que solicita por demais abertamente o desejo do macho é mal vista; mas que parece repudiá-lo não é muito mais recomendável: pensam que ela quer masculinizar-se, que é uma lésbica; ou singularizar-se: é uma excêntrica; recusando seu papel de objeto, desafia a sociedade: é uma anarquista. Se deseja tão somente não ser notada, cumpre que conserve sua feminilidade.(BEAUVOIR, 1967, p. 298)

Desse modo, o convívio social encarrega-se de construir essa diferença entre os sexos biológicos. Promove-se socialmente a masculinização do corpo masculino e a feminilização do feminino a partir da naturalização de características, aptidões, vocações e inclinações típicas de cada um dos sexos. Trata-se, então, de uma ordem social naturalizada e inquestionável que a sociedade sexualmente hierarquizada lança sobre os corpos, condicionando-os às construções, permissões e proibições impressas na ordem sexual.

É evidente, portanto, que a Pornografia de Vingança é um fenômeno fruto do adestramento dos corpos. Posto que, como demonstrado preteritamente, trata-se um instrumento de perpetuação da dominação masculina, vez que atinge, em grande maioria, as mulheres. Essa é, de forma geral, uma violência perpetrada contra a mulher em razão de sua própria condição de mulher. É justamente diante da insubordinação feminina e da quebra da lógica de dominação, que esse tipo de violência surge.

 

Referências Bibliográficas

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo II – A experiência vivida. São Paulo. Difusão Européia do Livro. 1967.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo I – Fatos e Mitos. 4ª Ed. São Paulo. Difusão Européia do Livro. 1970.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. 11 Ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2012.

BUZZI, Vitória de Macedo. Pornografia de Vingança: Contexto Histórico-Social e Abordagem no Direito Brasileiro. Florianópolis: UFSC, 2015. Trabalho de Conclusão de Curso da Graduação de Direito.

FOCAULT, Michel. Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro. Editora Vozes, 1999.

GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. São Paulo. Universidade Estadual Paulista. 1993