Neste artigo da série sobre a Lei 11.101/2005, vamos abordar a recuperação de empresas, com ênfase na assembleia geral de credores e no abuso do direito de voto.
Assembleia Geral De Credores
O juiz, ao deferir o processamento da recuperação judicial deverá também nomear o administrador judicial. Após a nomeação haverá a publicação do primeiro edital de credores com base nos documentos e informações apresentados pelo devedor ao juízo através da petição inicial.
Consecutivamente, os credores terão o prazo de 15 dias, a partir da publicação do edital, para apresentar sua divergência ou habilitação perante o administrador judicial, conforme o previsto no Art. 7º, §1º da Lei 11.101/2005. O administrador judicial, então, irá avaliar os créditos levando em consideração não somente o que a recuperanda apresentou, mas também os dados fornecidos por cada credor.
Posteriormente à avaliação dos créditos feita pelo administrador judicial, o administrador irá publicar outro edital, este contendo a segunda relação de credores. No segundo edital publicado constará os credores que faltavam ou as devidas alterações nos créditos dos credores que já estavam presentes. A partir da publicação do segundo edital, haverá o prazo de 10 dias para apresentar impugnação quanto à relação de credores, seja em relação a ausência de crédito, legitimidade, importância ou classificação.
Significativo ressaltar que dessa vez a impugnação não é apresentada perante o administrador judicial, mas sim perante o juízo. Com a resposta do juiz às impugnações, haverá a publicação da 3ª e última relação dos credores, que formará o Quadro Geral de Credores.
A Assembleia Geral de Credores é composta pelos credores presentes no Quadro Geral de Credores, que surge com a 3ª relação de credores. Entretanto, enquanto ocorre a apuração dos créditos, ou seja, até chegar ao QGC, paralelamente há o prazo para a apresentação do plano de recuperação judicial, a contar da publicação do deferimento da recuperação judicial pelo prazo de 60 dias.
Para que se possa compreender a votação da Assembleia Geral de Credores em relação ao plano de recuperação judicial, é imprescindível explicar como os créditos são classificados e como funciona o voto de cada credor na assembleia.
Nesse caso, a Assembleia Geral de Credores consiste, de acordo com Sergio Campinho, em:
A assembleia geral de credores consiste na reunião dos credores sujeitos aos efeitos da falência ou da recuperação judicial, ordenados em categorias derivadas da natureza de seus respectivos créditos, com o fim de deliberar sobre as matérias que a lei venha exigir sua manifestação, ou sobre aquelas que possam lhe interessar. Revela um foro facultativo e não permanente de decisões dos credores, instalado e operado em estrita obediência das prescrições legais, para decidir situações específica eventualmente surgida no curso do processo.
A Assembleia Geral de Credores tem competência de deliberar sobre as matérias previstas em lei, conforme prevê o Art. 35 da Lei 11.101/2005. Acontece que as matérias dentro do processo de recuperação judicial que necessitam de votação podem ser incidentais ou derivar de situação processual específica. Quando incidentais, a abertura da Assembleia Geral de Credores é facultativa, enquanto que a matéria que necessita de votação por derivar de situação processual específica tem a abertura da Assembleia Geral de credores como obrigatória.
Dentre as matérias de competência do conclave deliberativo, no que cabe a recuperação judicial, há necessidade de instalação para a deliberação quanto a aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor. Cabe ressaltar que na primeira convocação da assembleia, essa instalar-se-á caso estejam presentes os credores titulares dos créditos que equivalem a mais da metade do valor total dos créditos de cada classe. Caso a quantidade de credores presentes não seja equivalente a mais da metade do valor total dos créditos em cada classe, a assembleia não será instalada, vindo a ser instalada na segunda convocação com qualquer número, ou seja, com qualquer quantidade de créditos representados presentes.
A partir do momento que é deferida a recuperação judicial, inicia-se a contagem do prazo de 60 dias para que o devedor apresente o plano de recuperação judicial. Com a apresentação do plano de recuperação judicial, todos os credores serão informados pelo juiz através de edital, e poderão apresentar objeções ao plano de recuperação judicial no prazo estipulado, de acordo com o Art. 53 da Lei 11.101/2005.
Ressalta-se que o prazo para as objeções dos credores quanto ao plano de recuperação é de 30 dias, sendo estes contados a partir da publicação da segunda relação de credores, ou seja, a relação realizada pelo administrador judicial. Porém, caso a publicação da segunda relação de credores aconteça sem que tenha ocorrido a publicação do edital com aviso aos credores do recebimento do plano de recuperação judicial, então a contagem do prazo começará a partir da publicação do edital, conforme aponta o Art. 55 da Lei 11.101/2005:
Art. 55. Qualquer credor poderá manifestar ao juiz sua objeção ao plano de recuperação judicial no prazo de 30 (trinta) dias contado da publicação da relação de credores de que trata o § 2º do art. 7º desta Lei.
Parágrafo único. Caso, na data da publicação da relação de que trata o caput deste artigo, não tenha sido publicado o aviso previsto no art. 53, parágrafo único, desta Lei, contar-se-á da publicação deste o prazo para as objeções.
Com a objeção de qualquer credor o juiz convocará a Assembleia Geral de Credores e eles irão deliberar sobre o plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor. Com a votação dos credores que se saberá o que acontecerá com a empresa, ou seja, se ela será resgatada ou se será decretada a falência.
Para que se entenda a votação do plano de recuperação, é mister que se explique a composição da Assembleia Geral de Credores. Desta forma, conforme o Art. 41 da Lei 11.1001/2005 prevê, esta assembleia é constituída por quatro classes de credores, estando eles previstos no Quadro Geral de Credores.
A primeira classe é a dos titulares de créditos trabalhistas e créditos decorrentes de acidentes de trabalho. A segunda classe é a classe de credores com garantia real. A terceira classe é a dos credores quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados. A quarta e última classe é composta pelos titulares de créditos que são tidos como de microempresa ou de empresa de pequeno porte.
Como o conclave deliberativo é composto por 4 classes, para que o plano de recuperação ocorra ele deve ser aprovado em todas as classes. Acontece que a votação em todas as classes de credores não é igual, uma vez que o legislador previu critérios de aprovação diferentes para algumas delas. Logo, cada classe deverá seguir o critério previsto para que a aprovação do plano possa ocorrer dentro dela. Em posicionamento não diferente explica Campinho que a aprovação deve ocorrer em cada classe ao afirmar que: “nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial, todas as classes que integram a assembleia geral (Art. 41) deverão aprovar a proposta. A votação terá um curso especial, sendo realizada dentro de cada classe em particular.”.
Na classe dos titulares de créditos trabalhistas, créditos decorrentes de acidentes de trabalho e titulares de créditos enquadrados como de microempresa e empresa de pequeno porte os votos são por cabeça, ou seja, cada credor vale 1 voto, independentemente do valor do seu crédito, precisando da maioria simples dos presentes para poder aprovar o plano. Sergio Campinho, sem divergências, aduz:
Na categoria pertinente aos titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho, a proposta deverá ser aprovada pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor do seu crédito. A votação se faz, nesse particular, por cabeça. O mesmo método se observa em relação aos titulares de créditos enquadrados como microempresa e empresa de pequeno porte.
Enquanto na classe de titulares de créditos trabalhistas, de derivados de acidente de trabalho, de microempresas e de empresas de pequeno porte a votação ocorre por cabeça, na classe dos credores com garantia real e dos credores quirografários, credores com privilégio especial, geral ou subordinados, o voto é em conformidade com o valor de seus créditos e cumulativamente por cabeça. Logo, haverá aprovação do plano, se este for aprovado por credores que representem mais da metade do valor dos créditos presentes na assembleia e, cumulativamente, maioria simples dos presentes.
Sergio Campinho ainda discorre sobre essas classes de credores que:
Em cada uma das demais classes, ou seja, a dos titulares de créditos com garantia real e a dos titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados, a proposta deverá ser aprovada, em cada uma das categorias respectivas, por credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à votação e, cumulativamente, pela maioria simples desses credores, tomados os votos, assim, por cabeça. Verifica-se, pois, que nessas classes a aprovação dependerá da obediência de dois requisitos não alternativos: aprovação pela maioria dos presentes à votação, tomada segundo o critério geral do peso do voto proporcional ao valor do crédito, e pela maioria dos presentes, tirada por cabeça, independentemente do valor do crédito.
Portanto, diante do apresentado, entende-se que para que haja a convocação da Assembleia Geral de Credores, primeiramente deve haver objeção de qualquer credor ao plano de recuperação apresentado. Entretanto, se não forem apresentadas objeções, a homologação do plano pelo juiz ocorre logo a seguir.
Caso haja alguma objeção, o juiz irá convocar a Assembleia Geral de Credores e essa será instalada em primeira convocação se presentes os credores que representem mais da metade do valor total dos créditos de cada classe, não estando estes presentes, não será instalada a assembleia. Na segunda convocação a assembleia será instalada independentemente da quantidade de credores presentes. Com a instalação da Assembleia, cabe a votação em cada classe de acordo com os critérios adotados em lei, conforme mencionado alhures.
O plano de recuperação, portanto, só será adotado caso seja aprovado em cada classe de credores (seguindo os critérios já previstos). Cabe ressaltar que, caso o plano de recuperação seja rejeitado pela Assembleia Geral de Credores, o juiz decretará a falência do devedor, conforme o Art. 56 § 4° da Lei 11.101/05, a não ser que se considere a hipótese do Cram Down. Nesse caso, o juiz, em razão do princípio da recuperação judicial, poderá conceder a recuperação.
Abuso do Direito de Voto
O abuso do direito de voto está presente no Art. 187 do Código Civil. Este artigo prevê que aquele que excede na atuação de seu direito também comete ato ilícito. Observa-se que, dentro do processo de recuperação judicial, este abuso de direito pode ocorrer na deliberação da Assembleia Geral de Credores quanto ao plano de recuperação judicial.
Para que haja a votação claramente têm-se presente o direito ao voto. Assim sendo, os credores presentes no QGC, que são os que compõem a assembleia, tem o direito de voto e irão usá-lo de acordo com seus interesses para aprovar ou não o plano de recuperação apresentado pelo credor. Entretanto, por mais que o voto seja um direito, algumas vezes ocorre o abuso desse direito.
Para que a votação seja realizada de forma correta, o voto deve se dar sem que haja fraude ou qualquer tipo de tentativa de prejudicar o devedor ou os demais credores. Sérgio Campinho ao tratar do tema comenta de forma bem esclarecedora que: “(...) o voto deve ser proferido de maneira livre e isenta, refletindo, desse modo, o legítimo interesse do credor que o manifesta. Cumpre esteja perfeitamente conformado com a lei, a moral, os bons costumes, com a ordem pública e que guarde a boa-fé objetiva.”.
Logo, entende-se que não basta que o voto seja proferido da maneira que o credor bem entender, mas que este seja fundamentado de forma que esteja em consonância com a previsão legal, seja valorativo segundo a moral, a ética e carregue a boa-fé.
Diante do exposto, cabe entender que o voto dos credores estará protegendo seu verdadeiro interesse, entretanto, por mais que o voto seja algo individual, que esteja de acordo com o interesse de cada um, também deve existir uma consciência coletiva em relação a empresa e aos princípios que envolvem a própria recuperação, que são a função social da empresa, o princípio da preservação da empresa e o estímulo à atividade econômica.
Por mais que o voto do credor tenha que levar em consideração os pontos propostos no parágrafo acima, isso não quer dizer que este não possa ser desfavorável à recuperação da empresa. Ora, se o credor (com o interesse legítimo de receber o que lhe é devido), ao analisar as condições estipuladas no plano de recuperação, entender que esta não deve seguir por esse caminho, mas que a falência seria a opção mais adequada, até mesmo cumprindo o intuito de preservar a empresa, não há abuso de direito.
Nesse caso, o credor não teria votado com intenção de receber algum benefício, muito menos de fechar a empresa por satisfação, mas analisou a proposta e entendeu não ser suficiente para a recuperação. Adriana Valéria Pugliesi expõe o seguinte:
Não é possível levar a conta de abuso um voto resistente ao plano - esse é um direito legítimo do credor, - pois cada um o exerce baseado em condições específicas que encontram sua razão de ser (...).
(...) quando as maiorias necessárias para aprovação do plano são obtidas mediante alguma vantagem a certo credor ou determinado grupo de credores, à margem das condições do plano ficadas para os demais credores no âmbito da recuperação judicial. Portanto, se um credor (ou grupo de credores) recebe alguma vantagem para além do pagamento previsto no plano e, em razão disso, vota pela aprovação, há fraude, com evidente voto abusivo na assembleia.
Por outro lado é fundamental que os operadores do Direito brasileiro passem a encarar a falência como um eficiente método de preservação da empresa, instrumento alternativo que pode ser adotado para salvaguarda de determinado negócio (business), sendo útil até mesmo para separação entre “joio e o trigo”, com a cisão de uma parcela da atividade econômica que se mostre eficiente, daquela que não possa ser mantida no mercado, por não estar apta a cumprir sua função social.
Pugliesi ainda aduz que:
Por isso, o credor tem todo o direito de optar pela via da falência na salvaguarda de seus interesses, e votar contrariamente ao plano do devedor na recuperação judicial. O princípio d apresentação da empresa tal como está tutelado no direito concursal brasileiro não deve conduzir à ideia de manutenção do controlador (à testa da empresa), mas sim à de preservação do negócio, do organismo produtivo; finalidade essa que poderá ser plena e legitimamente alcançada na falência, bastando que os credores se organizem e se apoderem dessa faculdade que a LRE lhes oferece.
Um voto que venha a ser vetado não é somente aquele que está em contradição ao que a lei prevê, mas também votos proferidos com o intuito de frustrar a recuperação ou sem levar em conta a boa-fé, a moral, sendo um voto abusivo, como Campinho comenta:
Em outros termos, o direito de voto será exercido de forma a não colidir com os interesses gerais da recuperação e da falência. Assim é que, por exemplo, deve ser repelida a conduta do credor reveladora de uma intenção de frustrar, por simples capricho, a possibilidade de conservação da empresa pelo seu devedor. Têm-se, nessa hipótese, como abusivo o voto de rejeição do plano emanado por esse credor, porquanto traduz o exercício de um direito por parte de seu titular que, manifestamente, excede os limites impostos pelo seu fim econômico e social e pela própria boa-fé a que deve estar jungido. Da mesma forma, deve ser vetado pelo magistrado aquele voto que seguramente desvela a pretensão do credor de ver decretada a quebra do devedor, seja para eliminá-lo da concorrência no mercado, seja para, em situação vantajosa, adquirir o seu negócio.
Assim sendo, o pensamento de Campinho e de Pugliesi não são contraditórios, mas se completam, pois os dois concordam que o voto do credor deve carregar seu interesse legítimo, despido de fraudes, abuso de direito, dentre outros requisitos conforme citado anteriormente. A diferença estaria no fato de que Campinho foi mais abrangente e observou que, apesar do voto carregar o interesse verdadeiro do credor, não é por isso que deve estar afastado do princípio da preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, entretanto, isso não quer dizer que o credor não possa reprovar o plano, mas que tais princípios também devem orientar seu voto.
Em vista disso, o papel do magistrado é fiscalizar até mesmo os votos proferidos na assembleia, por mais que a decisão quanto à aprovação ou não do plano de recuperação ocorra nela, pois podem estar presentes vícios e fraudes. Diante de situações assim ocorre o controle judicial, ou seja, como consequência a algum voto fora dos requisitos há o veto do magistrado. Campinho vai além e completa o pensamento sobre o controle judicial das deliberações assembleares ao afirmar que o veto do magistrado não se encontra associado apenas ao controle formal, mas também associado ao controle material, conforme observa-se no trecho a seguir:
O controle judicial das deliberações assembleares se impõe quando presentes vícios ou defeitos capazes de macular o seu resultado. E esse controle não se limita à verificação de sua legalidade formal; igualmente se espraia à aferição de sua legalidade material ou substancial. Dessa feita, o poder de veto do magistrado pode e deve interditar aquelas deliberações havidas em conclave no qual foram preteridas formalidades essenciais à sua realização (veto formal), bem como aquelas tomadas em decorrência de voto ou votos tradutores de fraude ou de violação de lei ou, ainda, derivados de manifesto abuso de direito (veto material).
Continua Campinho se referindo ao controle judicial:
Em suma, faz parte do controle judicial expurgar os votos proferidos em evidente abuso de direito, fraude ou violação da lei, da moral, dos bons costumes, da ordem pública e da boa-fé objetiva, porquanto reveladores de uma ilicitude latu senso, no exato sentido da configuração de contrariedade ao direito em seu todo considerado.
Percebe-se, assim, que o juiz, no que concerne às deliberações assembleares, deverá analisar casuisticamente, para que ele venha a aplicar o controle judicial e consequentemente o veto a votos caso haja algum vício, fraude, abuso de direito, má-fé ou algo que transforme o resultado da deliberação. O juiz tem a competência de interferir na votação feita em assembleia em casos de votos que apresentem algum desvio.