A dominação masculina sobre as mulheres trata de uma ordem hegemônica que se perpetua há séculos e desenvolve, de forma incansável, mecanismos eficazes para mantê-la inquestionável, natural e invicta.
Jamais deixei de me espantar diante do fato de que a ordem do mundo, tal como está, com seus sentidos únicos e seus sentidos proibidos, em sentido próprio ou figurado, suas obrigações e suas sanções, seja grosso modo respeitada, que não haja um maior número de transgressões ou subversões, delitos e "loucuras" ou, o que é ainda mais surpreendente, que a ordem estabelecida, com suas relações de dominação, seus direitos e suas imunidades, seus privilégios e suas injustiças, salvo uns poucos acidentes históricos, perpetue-se apesar de tudo tão facilmente, e que condições de existência das mais intoleráveis possam permanentemente ser vistas como aceitáveis ou até mesmo como naturais. (BOURDIEU, 2012, p. 7)
Faz-se importante desenvolver e reiterar, aprioristicamente, a relação direta entre a sexualidade e o exercício do poder, sendo aquela, instrumento para a manutenção deste. A pornografia em geral é construída a partir de uma lógica masculina, vez que prioriza o prazer do homem a partir da submissão e sexualização da mulher. (Recomendação da Clínica de Direitos Humanos da UFMG, 2015, p. 5) Tanto na indústria pornográfica profissional, quanto nas produções "amadoras'' consensuais ou não, a mulher é objetificada seja no ato sexual em que foram gravadas as imagens, seja na exposição diante dos espectadores.
A preocupação com a objetificação causada pela pornografia – enquanto instrumento do poderio masculino – não é recente. Na década de 70, destacou-se um movimento nomeado de WomenAgainstPornography (em tradução, "Mulheres contra a pornografia"), encabeçado pelas feministas Andrea Dworkin e Catherine MacKinnon e representou uma grande força contra a cultura pornográfica e de deterioração feminina, além de ter sido baseado na tese de que a indústria pornográfica está a serviço da dominação masculina sobre as experiências e corpos femininos. A partir desse movimento histórico, extrai-se o entendimento de que a pornografia se firmou, desde seus primórdios, como um aparato para assegurar as relações desiguais de poder.
Atualmente, a hegemonia das produções pornográficas enquanto meio de propagar a submissão, apresenta-se a partir de dispositivos tecnológicos, sociais e até mesmo políticos de disciplina das experiências corporais e sexuais, o que torna essa questão ainda mais latente e preocupante. Isso, pois é materializado em manifestações de violência, como é o caso da pornografia não consensual, que ao tangenciar as fronteiras entre o desejado e o abusivo, representa um desdobramento do poder masculino hegemônico.
A subordinação erotizada da mulher é uma forma de humilhação que consiste em um instrumento simbólico a serviço da dominação masculina. Além da pornografia, o espectro da dominação paira sobre outros aspectos cotidianos. Conforme elucida Bourdieu, o olhar masculino sobre a mulher é uma arma para garantir sua dominação. Não se resumindo, portanto, em um simples ato de apreciação pelo qual as mulheres deveriam sentir-se contempladas. Trata-se, pois, de um constante aviso, uma chamada à ordem, que relembra as mulheres sua posição de objeto ante a posição masculina de sujeito.
A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos simbólicos, cujo ser {esse) é um ser-percebido (percipi), tem por efeito colocá-las em permanente estado de insegurança corporal, ou melhor, de dependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis. Delas se espera que sejam "femininas", isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas. E a pretensa "feminilidade" muitas vezes não é mais que uma forma de aquiescência em relação às expectativas masculinas, reais ou supostas, principalmente em termos de engrandecimento do ego.(BOURDIEU, 2012, p. 82)
Sabe-se que aos homens é destinado o espaço público, ao passo que a “vocação” atribuída ao sexo feminino limita-se ao ambiente doméstico, privado. Com o esforço intrínseco para diferenciar os corpos e conferir-lhes atribuições específicas, o poder masculino busca construir os chamados “encontros harmoniosos entre as disposições e posições (BORDIEU, 2012, p. 30) – que procuram induzir as vítimas da dominação simbólica, a partir do credo da vocação, a cumprir “seus papéis” de forma pacífica e inquestionável.
A partir dessa divisão de aptidões promovida desde a infância, instaura-se um duplo padrão entre atividades tipicamente masculinas e femininas. Os homens, detentores do espaço público e, originalmente, provedores do lar, não podem submeter-se à realização de tarefas domésticas majoritariamente desvalorizadas. Ao passo que as mulheres, cuja vocação destina-se unicamente aos cuidados domésticos e do lar, não devem atrever-se a transgredir o ambiente privado.
O que causa estranhamento, por sua vez, é quando há a inversão de papéis. Quando os homens realizam as tarefas direcionadas ao sexo feminino são supervalorizados e endeusados, mesmo diante da realização de funções tidas como insignificantes ou imperceptíveis quando feitas por mulheres. Ao contrário é o tratamento perante as mulheres quando buscam se aventurar no “universo masculino”. Quando buscam participar de debates públicos, da vida política ou de assuntos relacionados ao saber intelectual, as mulheres são constantemente desmotivadas e humilhadas.
Não é raro, na situação mencionada, que as mulheres tenham suas falas questionadas ou reduzidas à sua feminilidade. É comum, nessa perspectiva, que a atenção seja desviada para suas roupas e aparência. Além disso, como recorda Buzzi, é corriqueira a referência às mulheres a partir de nomes íntimos e termos familiares, tais quais “querida”, “amor”, entre outros – mesmo que diante de espaços formais. (BUZZI, 2015, p. 16)
A partir da incidência recorrente dessa problemática, foi elaborado o termo “manterrupting” pela juíza Roselene Aparecida Taveira com a finalidade de definir a prática de silenciamento das mulheres pelos homens e demonstrar que a linguagem pode ser utilizada como forma de dominação masculina. O termo parte da junção das palavras man (homem) e interrupting (interrupção) e demonstra a tendência masculina à interrupção e apropriação da fala feminina. (TAVEIRA, 2018)
Tal tratamento conferido à mulher no espaço público origina-se, irrefutavelmente, da dominação. Um exemplo claro dessa problemática se deu recentemente em uma entrevista realizada pelo programa Roda Viva com a pré-candidata à presidência Manuela D’ Ávila. Mesmo enquanto concorrente ao cargo mais alto do executivo, a pré-candidata foi interrompida sessenta e duas vezes enquanto respondia às questões formuladas pelos entrevistadores.
Sessenta e duas. Esse foi o número de vezes que a pré-candidata à presidência Manuela D’Ávila (PCdoB) foi interrompida durante o programa Roda Viva, exibido ontem, dia 25 de junho, pela TV Cultura. A título de comparação, o presidenciável Ciro Gomes (PDT) foi interrompido apenas oito vezes pelos entrevistadores quando passou pela sabatina. (BONFANTI, 2018)
Conforme explicado no capítulo anterior, desde a infância, a partir da estipulação de papéis ‘femininos’, as mulheres não são incentivadas a estudar, pesquisar, aprender e se interessar por ambientes alheios ao doméstico. Essa questão explica a desmotivação profissional do público feminino em relação a algumas posições sociais, sendo certo que sequer almejam profissões, posições ou cargos de alta hierarquia. Cumpre necessário reiterar que esse fenômeno foi construído historicamente quando tais funções sempre lhe foram negadas, determinando uma incapacidade permanente em assuntos, carreiras e espaços tidos como não-femininos.
A violação sofrida pela pré-candidata à Presidência da República, Manuela D’ Ávila, em 2018, é a ilustração clara da situação acima referida. Sabe-se que a eleição para um cargo, sobretudo de autoridade, inclui especificidades e aptidões delimitadas sexualmente. Se dadas posições dificilmente são ocupadas por pessoas do sexo feminino, é porque a elas não foi atribuída, historicamente, características e vocações que a habilitem àquele cargo. Para alcançar determinadas posições, como é o caso dos cargos políticos, a mulher deve ser detentora de todas as exigências obrigatórias à candidatura, como também todos os atributos que a virilidade masculina confere culturalmente aos homens – a falta de sensibilidade, a firmeza, autoridade, posição de domínio, etc.
Cabe destacar, ainda, mais um mecanismo desenvolvido e nutrido para garantir o exercício da dominação masculina: o cavalheirismo. Apesar de ser valorizada socialmente, a chamada “proteção cavalheiresca” é mais uma forma de reforçar a posição de superioridade masculina, ao mesmo tempo que enfatiza a situação de vulnerabilidade e fragilidade impostas historicamente pelo mito da feminilidade.
E compreendemos que, por essa lógica, a própria proteção "cavalheiresca", além de poder conduzir a seu confinamento ou servir para justificá-lo, pode igualmente contribuir para manter as mulheres afastadas de todo contato com todos os aspectos do mundo real "para os quais elas não foram feitas" porque não foram feitos para elas. (BORDIEU, 2012, p. 77)
O cavalheirismo, apesar de semanticamente significar gentileza, emana profundos efeitos e significações quando interpretado a partir da lógica da dominação masculina. Ao ser proferido pelo homem e ter como destinatário a mulher, o ato de gentileza e solicitude são objetos de justificativa para comportamentos machistas. Trata-se do homem que utiliza dessa ferramenta para disfarçar seu descrédito em relação à capacidade feminina.
A fim de ilustrar tal situação, é possível citar a atitude de um homem que, gentilmente, fornece ajuda – mesmo sem qualquer pedido –a uma motorista para que ela estacione seu carro em segurança em uma vaga na rua, bem como quando o homem se posiciona como provedor de um jantar em um relacionamento casual, imputando a si a responsabilidade do pagamento da conta, entre outros tantos exemplos experimentados pelas mulheres cotidianamente. É notório, dessa maneira, que o cavalheirismo, por ser prática estimada na sociedade, naturaliza a subordinação feminina.
A partir desse ponto, o entendimento acerca dos contornos que delimitam o fenômeno da Pornografia de Vingança torna-se de mais fácil compreensão. Conforme Simone de Beauvoir elucida “A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem, e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o sujeito, o absoluto: ela é o outro”. (BEAUVOIR, 1970, p.11.) Sendo assim, a lógica da dominação simbólica exercida pelos homens permanece como grande influenciadora na perpetuação das violências cotidianas.