Requisitos Constitucionais para Criação das Comissões Parlamentares de Inquérito

Por Natália Paiva - 27/04/2024 as 15:05

Quorum Mínimo de Abertura

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 58§ 3º, estabeleceu três requisitos para a criação das CPIs. O primeiro a ser abordado trata-se do requisito deflagrador (MELLO, 2009). Tal requisito é uma regra de formalidade que diz respeito à necessidade de que o requerimento para a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito obtenha, no mínimo, um terço das assinaturas dos membros das respectivas Casas Legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal), podendo ser separadamente ou em conjunto, no caso das Comissões Parlamentares Mistas de Inquérito.

Desta forma, ao estabelecer um quorum mínimo para a criação da CPI, o legislador Constituinte objetivou garantir que a investigação parlamentar não ficasse a mercê da vontade de uma maioria, geralmente aquela que não se interessa em investigações dessa ordem ou em trazer a tona fatos que possam colocar em risco os interesses que representam. Nota-se, portanto, que o foco foi resguardar meios hábeis de controle ao governo, ainda que este tenha o apoio da maioria no Congresso Nacional.

Hugo Nigro Mazzili leciona:

(...) quando a Constituição assegura, no Congresso, a instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), está conferindo o direito de investigação não apenas às maiorias, mas necessariamente também às minorias. Seria absurdo supor que só a maioria pudesse investigar. É preciso conviver com o direito de as minorias investigarem se o governo está agindo corretamente, se está aplicando adequadamente os recursos de todos, se está cumprindo a Constituição, a lei, o orçamento, ou seja, se está governando em beneficio de todos ou só em favor das maiorias.

Dito isso, é que se pode afirmar que o direito atribuído às minorias de instaurarem inquérito parlamentar é uma manifestação nítida da garantia ao exercício do direito de oposição, instituto de grande importância para a manutenção do Estado Democrático de Direito e ponto notável de diferenciação de regimes autoritários que se camuflam em uma fachada de organização constitucional democrática.

Neste sentindo, pode-se dizer que não existirá regime democrático sem oposição e que a esta deve-se assegurar sempre o pleno direito de fiscalizar os atos do grupo majoritário, contribuindo de tal modo para o aperfeiçoamento das instituições.

Outro exemplo da explícita proteção ao direito das minorias parlamentares, que gera grande discussão na doutrina, é a possibilidade de requerimento de criação das comissões parlamentares de inquérito contida na primeira parte do parágrafo único do artigo 1º da Lei 1.579/52, que diz:

Art. 1º. (...)
Parágrafo único. A criação de Comissão Parlamentar de Inquérito dependerá de deliberação plenária, se não for determinada pelo terço da totalidade dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado.

Trata o referido dispositivo da possibilidade de criação das Comissões Parlamentares de Inquérito, ainda que o quorum mínimo estipulado constitucionalmente não seja preenchido, ou seja, consiste na abertura do inquérito parlamentar com o requerimento de menos de um terço dos membros de cada Casa ou do Congresso Nacional. Tal hipótese seria possível exclusivamente se o requerimento dessa minoria fosse submetido à deliberação plenária.

Desta feita, por tratar-se de uma legislação ordinária que objetiva regulamentar a CPI naquilo em que a constituição foi omissa, muito se discutiu na doutrina sobre a recepção ou não do referido artigo, uma vez que, para aqueles que realizam uma interpretação literal do artigo 58§ 3º, da Constituição Federal de 1988, a possibilidade de submeter o requerimento de menos de um terço dos parlamentares ao plenário seria inconstitucional, já que o referido artigo não foi omisso ao prever o quorum necessário para criação da CPI.

Somente 1/3 da totalidade dos membros da Câmara dos Deputados ou do  Senado Federal pode requerer a formação ou organização de uma comissão parlamentar de inquérito. É o que deflui, irretorquivelmente, do texto constitucional. Não pode, pois, haver essa Comissão sem a manifestação expressa daquele quorum. É, portanto, inconstitucional o parágrafo único do art. 1º da Lei n. 1579. Falece competência ao legislador ordinário para inovar na matéria. Independe de deliberação plenária, mas só pode ter existência constitucional uma Comissão Parlamentar de Inquérito que resultar do requerimento de 1/3, pelo menos, de deputados ou de senadores. (FRAGA, Albérico apud MELLO, 2009, p. 52)

Tal posicionamento também é comungado por Odacir Klein, é o que diz:

Sabidamente o constituinte de 1988 estabeleceu a exigência de assinatura de pelo menos um terço dos deputados ou senadores para a instalação de CPIs numa ou noutra Casa do Congresso Nacional, ou, então, um terço dos membros de uma e outra para a instalação de CPIs Mistas (congressuais) não admitindo mais que as mesmas possam originar de iniciativa parlamentar isolada submetida à aprovação em plenária, prevista no art. 1º, parágrafo único, da Lei 1.579/52. (KLEIN, Odacir apud MELLO, 2009, p. 52)

Verifica-se, contudo, que existem outros doutrinadores que entendem de maneira diversa, ao argumento de que não devemos realizar uma interpretação isolada do dispositivo constitucional. Sendo assim, é necessário que se leve em consideração o verdadeiro propósito do legislador constituinte ao privilegiar a minoria com o quorum mínimo de criação da CPI. Neste sentido, afirmam que interpretação feita, baseada somente no aspecto literal do artigo, não pode ser capaz de restringir o poder de fiscalização e controle do Poder Legislativo. Ao contrário, somente determinada previsão infraconstitucional que limitasse tal direito poderia ser tratada como inconstitucional e longe se negar normatividade à Constituição, o artigo art. 1º da Lei n. 1.579 apenas reforça seu conteúdo.

Tal é o posicionamento de Plínio Salgado:

De fato, se a vontade de uma terça parte dos componentes de cada Câmara do Congresso é suficiente para determinar a criação, automaticamente, de comissão de inquérito, nada poderia impedir, de que conformidade com o princípio democrático, que a Casa respectiva, em deliberação plenária, por maioria, criasse tais comissões, se provocada por sugestão ou requerimento de um ou poucos parlamentares, que embora minoria, têm o direito de fiscalizar atividades da Administração Pública, como função inerente ao mandato que lhes foi conferido pelas coletividades, e assim, obter, da maioria, o pronunciamento favorável ou desfavorável à sua pretensão. (SALGADO, Plínio. apud MELLO, 2009, p. 52)

De tal modo, entendemos que não há motivo de fato para se julgar inconstitucional o dispositivo em análise, uma vez que o próprio legislador constituinte resguardou o direito de criação automática (SCHIER, Paulo Ricardo. apud BROZOZA, 2010) da CPI pelo requerimento de um terço dos parlamentares. Tornar-se-ia ainda mais legítimo o direito dessa minoria, ainda que não representada pelo quorum determinado pela constituição, se fosse ratificada pelo plenário. É a hipótese de criação não automática das CPI’s que, após o crivo do plenário, se tornam tão obrigatórias quanto às constituídas por requerimento previsto constitucionalmente.

Fato Determinado

O segundo requisito que será abordado é chamado pela doutrina (MELLO, 2009) de requisito material. Trata-se da delimitação do objeto a ser investigado pelo inquérito parlamentar que, por mandamento constitucional, deve ser um fato determinado.

Em outros termos, tal requisito também funciona como um limite material para as investigações parlamentares, tendo em vista que seus poderes não são amplos e irrestritos. Coube à constituição zelar pelas garantias dos cidadãos e evitar que assuntos puramente particulares pudessem ser objeto de uma CPI.

De acordo com Miguel Reale, “fato” é aquilo que indica algo ocorrido no mundo jurídico e “fato determinado” é fato, porém, definido, delimitado. (CARAJELESCOV, 2007)

A conceituação de tal expressão é um dos pontos mais controversos na doutrina e jurisprudência atuais, uma vez que o ordenamento jurídico infraconstitucional não determinou de modo suficiente a sua abrangência, ocasionando, assim, perigoso subjetivismo que, não raras vezes, gera margem para arbitrariedades por parte do Poder Legislativo.

A Lei 1.579/52, em seu artigo 1º, dispõe:

“Art. 1º. As Comissões Parlamentares de Inquérito, criadas na forma do art. 53 da Constituição Federal, terão ampla ação nas pesquisas destinadas a apurar os fatos determinados que deram origem à sua formação.

Já o artigo 35 §1º, do regimento interno da Câmara dos Deputados, na tentativa de regulamentar o texto constitucional e suprir tal omissão, descreve:

Art. 35. § 1º. Considera-se fato determinado o acontecimento de relevante interesse para a vida pública e a ordem constitucional, legal, econômica e social do País, que estiver devidamente caracterizado no requerimento de constituição da Comissão.

De tal modo, somente realizando uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico é que se torna possível afirmar que fato determinado, para fins de investigação por uma CPI, são aquelas situações que geram algum tipo de irregularidade ou anormalidade no ordenamento jurídico ou em face do interesse público como um todo. (KIMURA, Alexandre Issa. Apud BROZOZA, 2010).

Cabe ainda ressaltar que neste conceito está implícita a exigência de que se trate de algo que tenha estreita ligação com a atividade legislativa, fiscalizadora ou que sirva para um real esclarecimento do público e da comissão que realizará a investigação. É neste sentido que reside a limitação para o conteúdo da investigação. Em última análise, deve-se tratar de um assunto do qual a respectiva Casa Legislativa tenha competência para deliberar por lei ou resolução.

Sendo assim, nas palavras do Ministro Celso de Mello:

Somente fatos determinados concretos e individuais, ainda que múltiplos, que sejam de relevante interesse para a vida política, econômica, jurídica e social do Estado, são passíveis de investigação parlamentar. Constitui verdadeiro abuso instaurar-se inquérito legislativo com o fito de investigar fatos genericamente enunciados, vagos ou indefinidos. (BROZOZA, 2010, p. 40)

Não se confunde, porém, a determinação dos fatos que dão ensejo ao inquérito parlamentar, a qual se demonstra um requisito obrigatório, com a possibilidade de investigação de fatos novos, mas conexos, que surjam no curso da CPI. Neste caso, não se trata de indeterminação, mas sim de uma questão de unidade, de aproveitamento dos trabalhos das comissões parlamentares.

No entanto, não se pretende com este trabalho esgotar o tema acerca do conteúdo da expressão fato determinado. Importa-nos somente esclarecer que tal requisito funciona como um importante limite de atuação em prol da minoria que delimitou no requerimento o objeto a ser investigado.

Prazo Certo

O segundo requisito que importa-nos abordar é chamado pela doutrina de requisito temporal. Trata-se da determinação de um prazo certo para o encerramento dos trabalhos de investigação por parte dos parlamentares.

Tal requisito deve constar expressamente no requerimento de instauração da CPI, sob pena de não se admitir o pedido de abertura, o que de fato aparenta ser uma determinação bastante lógica, uma vez que as CPIs são, antes de tudo, comissões temporárias, não podendo, de tal modo, perdurar seus trabalhos indefinidamente.

Ressalta-se que sabidamente o legislador originário não determinou prazo específico para a realização dos trabalhos da CPI, uma vez que, dependendo do grau de complexidade do fato determinado a ser investigado, o prazo deveria ser dilatado ou diminuído. Sendo assim, deixou a cargo da minoria a discricionariedade de estabelecer o prazo necessário bem como a transcrição deste para o requerimento.

A delimitação de um prazo certo de duração demonstra-se indispensável para que se atenda inclusive ao Princípio Democrático que deve permear todo o inquérito, garantindo aos investigados a ciência de por quanto tempo serão alvo da CPI.

Nas palavras de Uadi Lammêgo Bulos:

A fixação do prazo é um direito público subjetivo dos investigados, os quais devem saber, de antemão, o espaço temporal em que os trabalhos investigatórios serão realizados. Evitam-se assim chantagens políticas, ameaças veladas, pressões  psicológicas no sentido de se prolongar indefinidamente a CPI, expondo, ainda mais, os nomes das pessoas e entidades perante a opinião pública. (BULOS, Uadi Lammêgo apud BROZOZA, 2010, p. 44)

Trata-se, portanto, de um requisito que institui limites de atuação aos parlamentares e, sem dúvida alguma, garante direitos aos investigados.

Não há na doutrina, nem na jurisprudência, relevante de discussão sobre o prazo máximo em que deve ser encerrada a atuação das comissões parlamentares de inquérito.

Art. 5º. § 2º. A incumbência da Comissão Parlamentar de Inquérito termina com a sessão legislativa em que tiver sido outorgada, salvo deliberação da respectiva Câmara, prorrogando-a dentro da Legislatura em curso.

Sendo assim, a única discussão que se verifica é quanto à possibilidade de prorrogação ou não do prazo de investigação dentro da mesma sessão legislativa. Este tema foi definido depois de vários julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal (BROZOZA, 2010), o qual decidiu pela viabilidade de operar-se sucessivas dilações de prazo, desde que dentro da mesma Legislatura e com a condição de tal extensão de prazo ser contemplada pelo regimento da Casa Legislativa.

Resta ainda esclarecer que, o pedido de prorrogação, deverá ser aprovado pela maioria dos membros da comissão, sob pena de se configurar violação ao princípio da colegialidade, e que deve ser formulado previamente ao término dos trabalhos, uma vez que as comissões parlamentares de inquérito extinguem-se de modo automático com o decurso do prazo estabelecido para seu funcionamento.

Referências:

Nas palavras do Ministro Sepúlveda Pertence: “A duração do inquérito parlamentar – com o poder coercitivo sobre particulares, inerentes à sua atividade instrutória e a exposição da honra e da imagem das pessoas a desconfiança e conjecturas injuriosas – é um dos pontos de tensão dialética entre CPI e os direitos individuais, cuja solução, pela limitação temporal do funcionamento do órgão, antes deve entender matéria apropriada à lei do que aos regimentos: donde, a recepção do art. 5º, § 2º da L. 1579/52, que se situa, no termo final de legislatura em que constituída, o limite intransponível de duração, ao qual, com ou sem prorrogação do prazo inicialmente fixado, se há de restringir a atividade de qualquer comissão parlamentar de inquérito.” BROZOZA, Edson, op. cit., p. 47

“Princípio segundo o qual a competência atribuída a órgão colegiado não pode ser exercida individualmente pelos seus membros, ut singuli.” Disponível em:<http://www.jusbrasil.com.br/topicos/293638/principio-da-colegialidade>. Acesso em: 20 nov. 2011.