Responsabilidade Civil: Os Riscos da Proliferação dos Danos

Por Maria Fernanda Dias Mergulhão - 07/04/2024 as 22:00

Em rápida pesquisa pelos meios eletrônicos, ou no acervo documental forense, é possível constatar número crescente de danos, de novos danos em espécie.

O sistema civil, na responsabilidade civil, é aberto, posto que Código e Leis esparsas apresentam disciplina normativa para algumas hipóteses passíveis de ocorrência no mundo fenomênico, mas que à evidência, não têm o condão de cerrar in abstracto todos os possíveis casos em concreto para, sobre eles, apresentar o tecido normativo aplicável. Impossível. Se feito hoje, amanhã, ao certo, sobrevierá nova hipótese e o pretenso sistema fechado se ruirá.

Denomina-se, aqui, “tipicidade aberta”  para sintetizar o sistema normativo vigente, ora para estabelecer as responsabilidades subjetiva e objetiva, ora para estabelecer as responsabilidades contratual e extracontratual, posto que pelo fato do Código ou Leis nominarem, e optarem por disciplinar, determinados fatos, nem por isso outros não poderão se amoldar à regra geral, de acordo com a categoria que se subsumam.

No mesmo sentido, mas apresentando denominação diversa, e de grande relevo, ensina Anderson Schreiber:

“Em outras palavras, nos ordenamentos típicos, o legislador limita o dano ressarcível a certos interesses previamente indicados, restringindo a atuação judicial a um campo determinado. Nos ordenamentos atípicos, ao contrário, o legislador prevê tão somente cláusulas gerais, que deixam ao Poder Judiciário ampla margem de avaliação no que tange ao merecimento de tutela do interesse alegadamente lesado. Nesta esteira, diz-se típico, originariamente, o ordenamento alemão, em que o ressarcimento dos danos vem assegurando apenas em face da lesão a interesses tipificados em lei, como a vida, a integridade física, a saúde, a liberdade e a propriedade. É atípico, por outro lado, o ordenamento brasileiro, em que o legislador não indica os interesses cuja violação origina um dano ressarcível, limitando-se a prever uma cláusula geral de ressarcimento pelos danos patrimoniais ou morais.

Doutrina Guilherme Calmon:

No Direito brasileiro, a idéia dos atos ilícitos segue um sistema aberto, ou seja, é orientada pelo princípio da atipicidade desses atos. Tal princípio significa que os atos ilícitos não estão tipificados em preceitos legais específicos, diversamente do que se verifica no que tange aos crimes e contravenções no Direito Penal. Pelo contrário, o que existe são verdadeiras cláusulas gerais de responsabilidade subjetiva (arts. 186 e 927 do Código Civil de 2002), de ampla extensão, que só implicam a obrigação de indenizar, quando verificados os elementos que constituem suas respectivas hipóteses de fato. 

Entretanto, a questão não é tão simples quanto se possa imaginar no que tange à identificação do an debeatur, face às novas espécies de danos, já que no ponto envolvendo a quantificação, nada mudou, salvo à mudança inerente a flexibilização do dano em hipótese excepcional prevista no parágrafo único do artigo 944 do Código Civil.

A medida em que novos danos forem surgindo, correlatos a novos fatos, a soma de valores será fato incontroverso. Para apresentar, ao final, a reparação pecuniária almejada, os danos em espécie, quantificados, terão que ser somados. Conseqüência lógica e natural.

O problema está exatamente aí: a soma desses valores, não raro, alcançará cifras astronômicas dissociadas da realidade do dano causado, do prejuízo efetivamente sofrido pela vítima.

Comumente essa situação é constatada, se repete e se expande, atormentando muitos estudiosos e operadores do direito porque adjetivar danos, em homenagem fiel ao fato que estão atrelados, sem pressupostos e elementos necessários distintos dos que já existem- dano material e dano moral-, é medida contrária ao direito e a todo o ordenamento jurídico.

Ações são ajuizadas, pedidos julgados procedentes, ou improcedentes, sem que se observe à flagrante atécnica na criação dos novos danos. Em primeira instância os resultados são vários, e em segunda instância, como nas Cortes superiores, observa-se o “corte” no pedido, para amenizar o quantum debeatur, por várias razões, mas não para a fulcral, que é a atécnica do surgimento dos novos danos, ou na famigerada proliferação dos danos. 

Identifica-se o problema e as conseqüências, mas necessário perquirir a causa desse problema. A tipicidade aberta seria o problema? Abolir esse sistema e normatizar todas as hipóteses em responsabilidade civil?

Como anteriormente ressaltado, impossível normatizar todas as hipóteses em responsabilidade civil- esforço hercúleo e inútil- porque o sistema será facilmente deteriorado com o tempo e com a diversidade de fatos e situações que a vida em sociedade produz. A causa do problema não está aí.

Em período anterior à codificação de 1916, Espínola já identificava o dano como elemento imprescindível à reparação civil, identificando-o como elemento que causa lesão a um direito. Nesse sentido, ensina: 

O damno entra, sem dúvida, como elemento do delicto civil. Para que se fale em obrigação proveniente de um facto ilícito, é necessário que se prove a existência de um prejuízo. Sem elle póde haver um acto reprovado pela moral ou reprimido pelas lei penaes, não haverá, porém, um delicto civiil, nem se poderá falar em lesão de direito. Todo e qualquer direito é susceptível de soffrer a influencia nociva do acto ilícito, tanto o direito patrimonial como o não patrimonial. Assim, a lesão de qualquer deles determina a obrigação de resarcir o damno causado.   

Mister se faz a apresentação de um conceito de dano, abstraindo-se do que indissociavelmente resulta, que é um prejuízo fruto de uma lesão patrimonial ou de uma lesão moral, mas lesão a um direito, já como alertava no início do século passado o doutrinador supra mencionado.

Apresentando-se conceito de dano como lesão a um patrimônio, que é um dos bens jurídicos tutelados pelo ordenamento normativo em vigor, a proliferação dos danos estará fadada ao insucesso e ao banimento de nossos Tribunais e acervos documentais porque não se encaixará nas balizas agora sedimentadas.

O Código civil anterior, e o vigente, não apresentaram um conceito de dano atribuindo, no entanto, essa tarefa à doutrina. Nesse ponto andou mal porque o problema não chegaria ao estágio de complexidade e preocupação, caso o conceito de dano estivesse presente em texto legal.

Nesse diapasão, propõe-se a permanência apenas dos danos material e moral porque possuem pressupostos e elementos próprios, não colidentes com os demais.

O dano material, e seus elementos, lucros cessantes e/ou danos emergentes, no âmbito da equivalência numérica, e o dano moral imbuído dos aspectos compensatório e punitivo, no âmbito da compensação pecuniária, são absolutamente suficientes, e aptos, a quantificar quaisquer valores a serem deduzidos em Juízo. Possuem balizas, e sedimentação legal-doutrinária, e se bastam para instrumentalizar todas as ações de responsabilidade civil no direito civil brasileiro com vistas a abominar, sempre, o enriquecimento sem causa, axioma permanente que não deve se perder de vista pelo operador do direito.

Com isso, o dano estético, o dano à imagem, o dano psíquico, o dano ambiental e tantos, e tantos outros danos, passam a perder campo porque padecem  de contorno jurídico próprio não só por terem sido criados através dos fatos que lhes deram origem (e só), como também padecem por não se inserirem na correta definição de dano, a medida em que a lesão do direito seria identificada e facilmente contrastada com a mesma sob o rótulo de outro dano, a exemplo do dano material em que todo o prejuízo advindo do dano estético poderia ser ali incluído, sem a necessidade de criação de um dano em especial.  Relembre-se, por oportuno, o acerto da melhor doutrina sobre o assunto: “Novamente, a questão é de conceito, e não adotado um ponto de partida firme, a polêmica perde-se no vazio.”

Referências:

CASTRO, Guilherme Couto de. A Responsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro. 2ªed. Rio de Janeiro:ed.Forense. 1997. p.21.

ESPÍNOLA E. Systema do Direito Civil Brasileiro-volume 2-Rio de Janeiro: ed.Livraria Francisco Alves. 1912.pp.697-698

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil. Obrigações. São Paulo:ed.Atlas. 2008.p.41.

SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. 3ªed. São Paulo:ed.Atlas. 2011.p.100.