A Teoria da Cegueira Deliberada trata da ignorância de determinada origem ilícita de bens, direitos ou valores para eximir-se de eventual responsabilidade. Parte-se da teoria para a compreensão das diretrizes que a jurisprudência adota para solucionar as lides e, ao final, analisam-se as dificuldades de cumprimento do transporte da teoria.
Origem da Teoria da Cegueira Deliberada
A Suprema Corte dos Estados Unidos desenvolveu a teoria da cegueira deliberada - "Willful Blindness Doctrine", dentre outras nomenclaturas - para classificar, inicialmente, crimes de lavagem de dinheiro. O objetivo era tornar típica a conduta do agente que tem consciência sobre a provável origem ilícita dos valores envolvidos e, deliberadamente, abstém-se da responsabilidade de conhecer a origem deles. Assim como a avestruz (vocábulo núcleo de outra designação para o mesmo instituto), ao se esconder a cabeça por debaixo da terra, oculta-se para evitar a consciência da ilicitude. A consequência é responder pelo delito na modalidade do dolo eventual.
Teoria da Cegueira Deliberada na Jurisprudência Brasileira
Utilizada em casos significativos no Brasil, como o furto ao Banco Central em Fortaleza/CE (2005) e a AP 470 (Mensalão), fora empregado como argumento palavras do à época Juiz Federal Sérgio Fernando Moro para classificar as condutas de alguns agentes na qualidade de dolo eventual.
Exemplificando através do ocorrido no Banco Central, proprietários de uma concessionária que recebem quase R$ 1.000.000,000 (hum milhão de reais) em notas de R$ 50,00 (cinquenta reais), para pagamento à vista de onze veículos no dia seguinte daquele furto, demonstraria o dolo eventual dos agentes por assumirem o risco da transação de provável origem ilícita. Situação em que foram processados e julgados pelo então crime de lavagem de capitais, que hoje traz diferente redação. Absolvidos, todavia, pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que reconheceu a existência da teoria, mas não sua aplicação para tal caso.
O Dolo na Teoria da Cegueira Deliberada
Intenta-se a abordagem do elemento subjetivo ‘dolo’, como consciência e vontade de realizar ações, como uma espécie de “dominabilidade” do comportamento humano.
O debate intensifica quanto ao alcance do dolo eventual ou negligência dos agentes durantes as infrações; e a teoria busca representar o encaixe daquele.
Categoria de juristas que entende por sua aplicação, de forma a atender a responsabilidade por trás da verdadeira – ou não – intenção, fundamenta nos requisitos do juiz referenciado: consciência do agente de que os valores podem ser provenientes de origem ilícita, e ignorância acerca da ilicitude daquele valor.
Categoria divergente expõe o perigo de se ver como dolo eventual o que seria, em verdade, negligência. É uma ultrapassagem de contornos legais, importados incorretamente de uma teoria estrangeira que pouco tem a ver com sua proposição original e nada tem a ver com nosso sistema jurídico; tentar aplicar o conceito de dolo a partir disso é arriscado.
Lucchesi (2018, p. 18) é coerente na exposição sobre a fragilidade de se interpretar culpa como dolo.
Diante de toda a exposição teórica e doutrinária sobre a cegueira deliberada, não se vislumbra qualquer utilidade na teoria, visto que não facilita o reconhecimento do dolo, apenas o obscurece ao se sobreporem requisitos indispensáveis, sem precisão legal.
Vê-se com frequência a utilização de institutos do direito comparado, mas não é sóbrio distanciar da realidade ímpar que cada nação vivencia. Levantou-se uma teoria que funciona em alguns dos cinquenta estados unidos, onde em alguns deles existem regras positivadas, noutros aplicam-se princípios – e onde estudaram e aprovaram o “conhecimento de se desconhecer” o elemento subjetivo.
[…] Por se afigurar como uma força capaz de influenciar o movimento de uma dada formação social, a ideologia só pode ser efetiva caso seja de fato incorporada pelos sujeitos que a colocarão em prática. […] Embora não se caracterize por ser falsa ou verdadeira, deve ser expressada […] como uma explicação plausível pela qual seja possível projetar um decurso da vida social então desejável. (Cacicedo, 2019, p. 74)
Teoria da Cegueira Deliberada na Realidade Brasileira
No Brasil, considerando suas dimensões continentais e grande heterogeneidade social, a aplicação do direito varia, incorretamente, por alguns critérios desleais. O poder por diversas vezes é a raiz da opressão, e permitir que haja tamanha subjetividade na decisão pode implicar prejuízos para as classes socialmente vulneráveis.
[…] O uso de conceitos abertos é medida que traz consigo grave insegurança jurídica, subvertendo a legalidade em nome de uma conveniente discricionariedade. Acertada, pois, a percepção de que [...] não pode haver espaços juridicamente vazios, todos devem ser fundamentados na lei e na Constituição. O campo da discricionariedade da Administração diminui. (Roig, 2018, p.23)
Esta preocupação pela subjetividade decorre da grave seletividade em nosso sistema penal, quando Roig (2018, p. 78) comenta que não é de se estranhar que o banco de informação genética, a título de exemplo, fique repleto de dados de jovens negros pobres, pois são o alvo frequente de detenções, logo acabam tendo seu material genético registrado, o que potencializa, sobremaneira, suas chances de condenação criminal – por inevitável estigmatização.
Cacicedo (2019, p. 91) ainda abordando sobre ideologia, comenta que ela é uma forma de consciência que oculta, inverte e naturaliza, impedindo que outras determinações sejam percebidas e compreendidas.
Assim, falta clareza na jurisprudência e diretrizes na legislação para que se possa aplicar a teoria da cegueira deliberada, seja para crimes de lavagem de bens, direitos ou valores; tráfico de drogas ou outros delitos. Em decorrência da perspectiva social, sugere-se o vislumbre da teoria no julgamento de um crime de receptação. É simples visualizar a classe que adquire bens em, por exemplo, feiras de origem duvidosa, além do nível de instrução de quem pratica possível receptação (culposa) – numa perfeita adequação da vulnerabilidade institucional, de quem seria penoso exigir consciência do ilícito e/ou alcance da sagacidade.
Se a lei define o que é dolo, não compete à jurisprudência ampliar seu alcance sem critérios claros. Seria, em verdade, violação aos princípios da legalidade e da segurança jurídica, disfarçada de adorno teórico e discussão contemporânea.
Todavia, emprestando conceitos humanísticos (Neto, p. 36), parece acertar a postura do ‘Juiz Hermes’, aplicador de garantias constitucionais, que anseia compreender o complexo mundo em que vivemos para, a partir do direito, com suas instituições e normas, buscar o discurso jurídico possível capaz de legitimar o direito, mas também de responder aos anseios da sociedade.
Falta oxigênio para definir esses anseios. O embate gira em torno do risco da subjetividade nas decisões, sobretudo quando no polo passivo houver classe marginalizada, representando a segregação social e reforçando as desigualdades historicamente construídas. Considerar como possível a hipótese de aplicação de uma teoria que envolve das mais importantes partes de um crime (elemento subjetivo), de forma pouco balizada, partindo-se de critérios abstratos, é temeroso. Inseguro permitir a discricionariedade indiscriminada; e utopia não acreditar que ela existe.
Bibliografia
BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro II. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
CACICEDO, Patrick Lemos. Ideologia e Direito Penal. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo – o uso da cegueira deliberada no Brasil. São Paulo: Marcial Pons, 2018.
MORO, Sérgio Fernando. Crimes de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010.
NETO, Bianor Arruda Bezerra. Júpiter, Hércules, Hermes e a Efetivação dos Direitos Sociais: quem são e por que estes juízes decidem de forma tão diversa? Biblioteca da Justiça Federal da Paraíba. Disponível em: <file:///C:/Users/DPGE/Downloads/40-171-1-PB.pdf >. Acesso em: 04 de setembro de 2019.
ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal. Teoria Crítica. São Paulo: Saraiva, 2018.