Neste artigo da série sobre sentenças aditivas, vamos analisar o caso da greve no serviço público.
Análise do conceito de servidor público e pensamento inicial sobre direito de greve do Supremo Tribunal Federal.
A greve no serviço público, indubitavelmente, envolve parâmetros específicos para sua análise e para sua configuração. Devem-se ser extraídos alguns conceitos do ramo do Direito Administrativo para que possa haver o entendimento acerca do assunto, principalmente, o de servidor público, a fim de entender a decisão da Corte Suprema nos Mandados de Injunção números 670, 708 e 712.
Por servidor público tem-se “as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos”. Compreendem-se entre os servidores públicos: I) servidor estatuário, que é sujeito ao regime estatutário e ocupante de cargo público; II) empregado público, que é o contratado sob o regime da legislação trabalhista e ocupantes de emprego público; e III) servidor temporário, é aquele contratado por tempo predeterminado para atender à necessidade temporária excepcional de interesse público. Então é perceptível que servidor público seria um conceito latu, ou seja, um gênero que subdivide-se em espécies.
No que tange ao direito de greve, tal direito só foi garantido ao servidor público com a promulgação da Constituição Cidadã, uma vez que nas Constituições anteriores, o direito de greve pelo servidor público era expressamente vedado, cite-se por exemplo art. 162 da Constituição do período militar.
Embora a Carta de 1988 tenha previsto o direito de greve para o servidor no seu art. 37, inciso VII, a norma é claramente de eficácia limitada, depende, portanto, de uma legislação infraconstitucional para que possa produzir seus efeitos. Outrossim, o pensamento inicial do Supremo Tribunal Federal aduzia sobre a inaplicabilidade do referido dispositivo constitucional, consequentemente pela impossibilidade de exercício de greve do servidor público, conforme mandado de injunção nº 20-4/DF 19 de maio de 1994, cujo impetrante era a Confederação dos Servidores Públicos do Brasil. Na decisão de tal mandado de relatoria do Ministro Celso de Mello, o único efeito da decisão foi constituir o Poder Legislativo em mora:
“Direito de Greve no Serviço Público: o preceito constitucional que reconheceu o direito de greve ao servidor público civil constitui norma de eficácia meramente limitada, desprovida, em consequência, de auto-aplicabilidade, razão pela qual, para atuar plenamente, depende da edição da lei complementar exigida pelo próprio texto da Constituição.
A mera outorga constitucional do direito de greve ao servidor público civil não basta – ante a ausência de auto-aplicabilidade da norma constante do art. 37, VII da Constituição – para justificar o seu imediato exercício.
O exercício do direito público subjetivo de greve outorgado aos servidores civis só se revelará possível depois da edição da lei complementar reclamada pela Carta Política (...).
(...) acórdão os Ministros do Supremo Tribunal Federal (...) por maioria de votos, em deferir o pedido de mandado de injunção, para reconhecer a mora do Congresso Nacional em regulamentar o art. 37, VII da Constituição Federal e comunicar-lhe a decisão, a fim de que tome as providências necessárias à edição de lei complementar indispensável ao exercício do direito de greve pelos Servidores Públicos Civis.”
Conquanto o pensamento inicial fosse de impedir o exercício do direito de greve pelo servidor público, é importante salientar que nem todas as espécies de servidor público eram obstaculizadas pela falta da norma regulamentadora. A doutrina e a jurisprudência entendiam que a Lei Geral de Greve (Lei nº 7.783/1989) aplicava-se aos empregados públicos (subespécie de servidor público conforme preconizado alhures) das empresas públicas e das sociedades de economia mista, por disposição do art. 173, § 1º, II da Constituição Federal, o qual impõe regime jurídico igual das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e a obrigações trabalhistas.
Sendo assim, as demais espécies de servidor público (servidor estatutário e servidor temporário) que são reguladas pelo regime jurídico administrativo eram impedidas de exercer o direito de greve. Esse entendimento ainda encontrava espeque no art. 16 da Lei Geral de Greve que aduz sobre a impossibilidade de aplicação das disposições da lei para o servidor público, portanto a mens legislatoris era clara em não abarcar o servidor público (regime administrativo) como destinatário da lei.
Vale destacar ainda que parte da doutrina entende que a matéria sobre servidor público não é de competência privativa da União, sendo assim os entes federativos poderiam editar lei sobre o exercício do direito de greve por seus servidores públicos. Esse é o entendimento da doutrinadora Di Pietro: “Como a matéria de servidor público não é privativa da União, entende-se que cada esfera de Governo deverá disciplinar o direito de greve por lei própria”. Inclusive há a Lei Estadual nº 7.311/2002 do Espírito Santo que confirma a possibilidade da edição de leis sobre direitos de greve dos servidores públicos por Estados-membros e Municípios.
Curiosamente essa lei foi produzida quando ocorria o julgamento do mandando 670/ES que pleiteava o direito de greve do servidor público, cujo impetrante era o Sindicato dos Servidores Policiais Civis do Espírito Santo (SINDPOL). Ratificando assim que a utilização de mandados de injunção e de ação direta de inconstitucionalidade por omissão pode ser um reforço positivo para que o legislador desconstitua a mora legislativa, ou seja, esses institutos, por vezes, fazem um diálogo entre os Poderes.
Portanto, o entendimento inicial do Supremo Tribunal Federal era sobre a impossibilidade do exercício do direito de greve pelos servidores públicos stricto sensu e pelos servidores temporários pela falta de norma regulamentadora, pugnando pelo entendimento de constituição em mora do Poder Legislativo para que o mesmo adotasse meios e modos para a fruição do supracitado direito pelo servidor estatutário e temporário.
Evolução de pensamento do Supremo Tribunal Federal acerca do direito de greve pelo servidor público stricto sensu.
Entre os anos de 2001 a 2003, os Sindicatos dos Servidores Policiais Civis do Espírito Santo (SINDPOL), dos Trabalhadores em Educação do Município de João Pessoa (SINTEM) e dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Pará (SINJEP) impetraram, respectivamente, os mandados de injunção 670, 708 e 712.
Os Sindicatos pleiteavam a garantia para poderem iniciar uma greve, a declaração sobre as regras que disciplinariam o movimento e a manifestação sobre a demora do Legislativo em aprovar uma lei de greve e do Executivo em propô-la.
O caso foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal, por causa da expressa previsão do art. 102, inciso I, alínea q da Constituição Federal, uma vez que a falta da norma regulamentadora – lei específica- era de competência do Congresso Nacional, insta salientar que a lei específica não foi feita até hoje. E a decisão foi surpreendente (e ainda continua sendo), haja vista que demonstrou uma evolução concreta de pensamento da Corte Suprema acerca dos institutos que têm por finalidade a complementação de lacunas inconstitucionais (mandado de injunção e ação direta de inconstitucionalidade por omissão), uma vez que regulamentou as condições sobre o direito de greve no serviço público.
Anteriormente a essa consolidação de pensamento, o Supremo Tribunal Federal adotava em suas decisões que os direitos com previsão constitucional, mas pendentes de norma regulamentadora não poderiam ser fruídos face à impossibilidade de a Corte exarar um ato normativo que regulasse tal disposição. Portanto a decisão ficava jungida à ciência e à constituição em mora do Poder ou órgão que tivesse a atribuição para editar a norma. E ainda, preceituava sobre uma igualdade entre os institutos do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, não haveria, por conseguinte, diferenças determinantes entre tais institutos, ou seja, tanto o mandado de injunção quanto ação direta de inconstitucionalidade não seriam aptos a suscitar um provimento que determinasse a criação da norma faltante. Esse pensamento é corroborado e explicitado na decisão do mandado de injunção nº 107/DF:
“(...) i) os direitos constitucionalmente garantidos por meio de mandado de injunção apresentam-se como direitos à expedição de um ato normativo, os quais, via de regra, não poderiam ser diretamente satisfeitos por meio de provimento jurisdicional do STF; (....) iv) a decisão proferida em sede de controle abstrato de normas acerca da existência, ou não, de omissão e dotada de eficácia erga omnes, e não apresenta diferença significativa em relação a atos decisórios proferidos no contexto de mandado de injunção”
Percebe-se então que, na decisão do mandando de injunção nº 107/DF, o STF se desincumbia da função do legislador positivo, bem como igualava os institutos supridores de omissões inconstitucionais. Esse entendimento do Supremo é plausível em ser aceito quando, por exemplo, tem-se uma decisão como do caso de mandado de injunção nº 107 em 1990 (somente dois anos da promulgação da Constituição). No entanto, ao haver direitos previstos constitucionalmente e pendentes de norma regulamentadora depois de quase 30 anos da promulgação da Constituição é fato difícil de ser aceito, sendo mais difícil ainda quando no julgamento de outros mandados de injunção o Judiciário constitui em mora o Poder Legislativo, e este queda-se inerte reiteradamente, como no caso da greve no serviço público.
A decisão dos mandados de injunção 670, 708 e 712 deu-se no ano de 2007 (logo, 19 anos depois da promulgação da Constituição) e foi, como preconizado acima, um passo importante para a superação do antigo pensamento do Supremo Tribunal Federal.
A referida decisão foi tomada por maioria de votos (8 a 3), sendo de suma importância, porque afastou a orientação inicialmente preconizada no sentido de estar limitada à declaração da existência de mora legislativa para a edição de norma regulamentadora específica. Passando, destarte, para a função de legislador positivo nos casos de omissões inconstitucionais, que criem óbices para o gozo de direitos constitucionalmente previstos, e regulando tais omissões por normas temporárias engendradas pelo próprio Judiciário.
Na decisão sobre a greve no serviço público, o Tribunal propôs como solução para sopesamento da omissão legislativa a aplicação, no que for passível, da Lei 7.783/1989 (utilizou-se a analogia), a qual dispõe sobre o direito de greve na iniciativa privada, bem como foi dado o prazo de 60 dias para que o Poder Legislativo legislasse sobre a matéria. Pode-se perceber que o teor da decisão foi um zigoto da disposição prevista no art. 8º e incisos da Lei 13.300/2016, a qual aduz sobre os efeitos do mandado de injunção, quais sejam, constituição em mora pelo poder competente e suprimento da lacuna pelo Judiciário, corroborando ainda mais sobre a importância da mencionada decisão.
Sendo assim, no caso das omissões inconstitucionais, a morosidade legislativa em criar a norma regulamentadora dá azo para que o Judiciário quando instado a se manifestar, crie a norma para o caso em concreto. Isso não configura usurpação da competência legislativa, a uma por que o Legislativo deixou sua competência constitucional latente, a duas pelo fato de que ao retirar sua competência do estado de latência criando a norma inexistente, o Legislativo faz com que a decisão judicial anterior perca a sua eficácia. Esse pensamento fica expresso nas decisões dos mandados de injunção 670, 708 e 712, respectivamente, transcritos abaixo:
“Considerada a omissão legislativa alegada na espécie, seria o caso de se acolher a pretensão, tão somente no sentido de que se aplique a Lei nº 7.783/89, enquanto a omissão não for devidamente regulamentada por lei específica para os servidores públicos civis (CF, VII) (grifos nossos).”
“O que deve ser regulado, na hipótese dos autos, é a coerência entre o exercício do direito de greve pelo servidor público e as condições necessárias à coesão e interdependência social, que a prestação continuada dos serviços público assegura.
O argumento de que a Corte estaria então a legislar, o que se afiguraria inconcebível, por ferir a independência e harmonia entre os poderes (art. 2º da Constituição do Brasil) e a separação dos poderes (art. 60º, §4º, III) é insubsistente.
O Poder Judiciário está vinculado pelo dever-poder de, no mandado de injunção, formular supletivamente a norma regulamentadora de que carece o ordenamento jurídico.”
Assim nas decisões dos mandados de injunção acerca do direito de greve erige-se, insofismavelmente, um novo pensamento sobre as sentenças aditivas. Se antes elas eram repudiadas e havia dúvidas se seriam possíveis dentro do ordenamento jurídico, em 2007, essa incerteza desmoronou com a decisão do direito de greve pelo servidor público, decretando-se assim o marco das sentenças aditivas no Brasil. Esse pensamento fica premente no Informativo nº 485 – Mandado de Injunção e Direito de Greve - editado pelo Supremo Tribunal Federal:
“Aduziu-se, no ponto, no que concerne à aceitação das sentenças aditivas ou modificativas, que elas são em geral aceitas quando integram ou completam um regime previamente ou complementam um regime previamente adotado pelo legislador ou, ainda, quando a solução adotada pelo Tribunal incorpora solução constitucionalmente obrigatória.”
A doutrina vai preconizar que as sentenças de perfil aditivo vão se instalar principalmente em situações de retração do Poder Legislativo, em que ocorra, mormente, o deslocamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. Isso pode ser observado exatamente no caso da decisão dos mandados de injunção alhures, a inércia pelo Legislativo na criação da norma sobre o direito de greve do servidor Público foi o estopim para o marco das sentenças aditivas no Brasil.
Destarte, o pensamento tradicional acerca da separação de poderes foi mitigado pelo Supremo na decisão dos mandados de injunção que versavam sobre do direito de greve no serviço público. E ao que parece a nova Lei 13.300/2006, a qual regulamenta o mandado de injunção, parece ser o gran finale para derrocada desse antigo pensamento dentro do ordenamento jurídico, haja vista qual a Lei do Mandado de Injunção prevê expressamente em seu art. 8º e incisos a criação da norma pelo Judiciário em relação ao caso lacunoso, que pode ter inclusive por decisão fundamentada eficácia erga omnes.