A Corrupção No Brasil: Casuísmos e Pessoalidade no Modelo Colonizatório

A Coroa, ao implementar modelos administrativo e judicial em território brasileiro, deixou nítido seu projeto econômico de exploração. Dominou povos, exterminou nativos, trouxe escravos e impôs regras, um conjunto normativo e burocrático, que impôs a todos o seu cumprimento.

O vasto conjunto de regras de conduta imposto pela Metrópole à população brasileira, aculturada e heterogênea, restava incompreendido, apesar do projeto ter sido exitoso, afinal a Metrópole exerceu seu domínio por 322 anos, conteve as insatisfações da colônia pela repressão bruta, garantiu a hegemonia católica, lucrando com o conjunto de atividades econômicas coloniais (pau-brasil, açúcar, ouro e minérios, tráfico negreiro, principalmente).

Hábitos e culturas completamente diferentes, choques inevitáveis sofridos por uma massa humana dispersa em um vasto território brasileiro: esse era o panorama brasileiro durante o processo de colonização. Mitchell Garfield explica:

Na época em que o favoritismo começou a viçar, a Coroa poderia ter posto fim aos abusos exercendo seu poder superior sobre os donatários e os próprios funcionários por ela nomeados. O fato de ter decidido omitir-se só se pode atribuir à sua relutância em interferir com o ritmo da colonização, sempre acelerado por homens que possuíam os recursos necessários à formação de lavouras e fazendas de criação e, ao mesmo tempo, à sua miopia em não prever consequências lógicas da entrega à aristocracia de um vasto e exclusivo monopólio da terra.(...) ( GARFIELD, 1983, p.127).    

Em verdade, o pessoalismo1 e casuísmo foram verificados nos primórdios do Brasil Colonial, quando realizada a distribuição de terras, maios fonte de riquezas naquele período histórico. Ensina Oliveira Viana (1973, p.68): 

O costume, então dominante, de concederem-se sesmarias, de preferência a pessoas fidalgas, ou com posses bastantes para construir engenho, exclui da propriedade da terra as classes pobres e desfavorecidas. Todos os requerentes de sesmarias têm sempre, por isso, o cuidado de alegarem que não são homens sem meios. Pedem terras justamente porque dispõem de recursos. Cada um deles faz ver aos donatários, capitães-mores e governadores, que “He home de muita posse e família”, ou que “He home de posse assim de gente como de criasões q há um morados san pertenersentes”, ou que “tem muita fabriqua de guado de toda a sorte e escravos como qualquer morador” 

E também se arraigou em todo o contexto do Brasil colonial, em todas relações de poder ali verificadas, já que  

O Personalismo não se limitou ao ambiente das relações diretas entre senhor e escravo. O lugar estrutural, tanto no sentido social quanto no econômico, do sistema escravocrata lançou sua sombra para todas as outras relações sociais. Isso é especialmente verdade para outro estrato social fundamental e numeroso do Brasil Colônia- e sob formas modificadas, como veremos, também do Brasil moderno-, que é o dependente ou agregado formalmente livre e de qualquer cor. A situação social do dependente estava marcada pela posição intermediária entre o senhor proprietário e o escravo obrigado a trabalhos forçados. Ele era um despossuído formalmente livre, cuja única chance de sobrevivência era ocupar funções nas franjas do sistema como um todo (SOUZA. 2018. p.178).

 

Por muitos autores defende-se a ideia de que a pessoalidade nas relações, isto é, o tratamento pessoal informal e, de certa forma, mais humanizado, é uma característica dos países da Península Ibérica. Diante da colonização portuguesa em solo brasileiro, por consequência, essa característica teria sido incorporada aos hábitos e cultura popular brasileira. Já concordava, inclusive, Buarque de Holanda:

 A cultura da personalidade, como salientou Sérgio Buarque de Holanda, é “uma característica bem peculiar à gente da Península Ibérica, uma característica que está longe de partilhar, pelo menos na mesma intensidade, com qualquer de seus vizinhos do continente. “Não se trata de um puro individualismo, em que não se estabelece nenhuma característica própria de um indivíduo em relação aos outros, mas sim de uma demarcação constante de qualidades pessoais, boas ou más, tornando cada qual uma personalidade única e inconfundível.” (COMPARATO, apud HOLANDA, 2016, p. 51)

Por período histórico expressivo das ciências políticas e sociais, o personalismo nas relações brasileiras fora apontado como uma nota marcante brasileira, distinta das demais populações do globo. No entanto, há uma face negativa à impessoalidade das relações:

Essa mesma ausência de impessoalidade existe no funcionamento da Administração Pública. É comum, quando se tem uma questão contenciosa no serviço público, procurar antes de tudo um conhecido ou amigo na repartição competente. É importante assinalar aqui a ligação do personalismo com a oligarquia que, no dizer de Sérgio Buarque de Holanda, “é o prolongamento do personalismo no espaço e no tempo.” (COMPARATO apud HOLANDA, 2016, p.30)

Toda a estrutura do Brasil colônia fomentava a formação de redes clientelares, a exemplo do que faz lembrar Maria Yedda Linhares:

Já Gorenstein, analisando o desenvolvimento de outro setor da classe dominante-  os negociantes de grosso trato do Rio de janeiro-, chamou atenção para a reder de relações pessoais que então se constituiu entre estes e a aristocracia rural e a burocracia da Corte, e para o papel fundamental que desempenharam os capitais privados daquele setor (investidos em companhias de seguros, navegação abastecedora de cabotagem e tráfico negreiro) na esfera de atribuições de um Estado incapaz de arcar com todas as suas despesas; em contrapartida, o Governo concedia mercês, honrarias, títulos de nobreza,cargos de importância, privilégios e monopólio (mediante o sistema de arrematação de contratos da Coroa) a seus fiéis colaboradores.   (LINHARES. 2000. p.191)

Os casuísmos, a ausência de regulamento normativo, genérico e impessoal e, por consequência, o tratamento pessoal e personalizado a muitos interessavam. Afinal, havia uma camada pequena de privilegiados que ditavam as regras, e da mesma forma, ao seu alvedrio, poderiam alterar as regras, segundo o tempo, seu interesse e seu destinatário.

Este trabalho faz parte de uma série de artigos sobre as origens históricas e sociológicas da corrupção no Brasil. Clique no currículo da autora para acessar os demais artigos.

Explica-se: A objetividade, a impessoalidade das relações entre súdito e autoridade, com os vínculos racionais de competências limitadas e controles hierárquicos, será obra do futuro; do distante e incerto futuro. Agora, o sistema é o de manda quem pode e obedece quem tem juízo, aberto o acesso ao apelo retificados do rei somente aos poderosos. O funcionário é a sombra do rei, e o rei tudo pode: o Estado pré-liberal não admite a fortaleza dos direitos individuais, armados contra o despotismo e o arbítrio. (FAORO. 2008. p.198)