O processo de colonização no Brasil não foi simples, não só pela vasta extensão territorial, mas pela dificuldade da metrópole administrar à distância, considerando as dificuldades de transporte e comunicação inerentes à época.
O choque de culturas distintas, a cobiça desenfreada, a escravidão, o extermínio indígena e a imposição de um novo modus vivendi foram traumas desde cedo verificados na formação da população brasileira.
Somados a estes, a doação de terras brasileiras para pessoas que, em tese, teriam condições financeiras de desenvolver atividade econômica, e a natural divisão social, com a formação de uma extensa população alijada dos bens de produção e consumo, arquitetaram a grande desigualdade social até hoje ressentida no Brasil contemporâneo. Acerca dessa desigualdade, ensina Oliveira Viana:
Tal, porém, como se constitui, o latifúndio do período colonial resume e absorve em si toda a vida em derredor; não deixa espaço para o pequeno e o médio proprietários rurais, vivendo independentes no seu pequeno domínio, à ilharga do grande domínio, e tão autônomos quanto ele. Pelo menos, a tendência do grande domínio é entravá-los, asfixiá-los, eliminá-los, criando um ambiente impróprio à sua vitalidade. Nos seus regimentos e alvarás, a metrópole procura, é verdade, defender e valorizar os pequenos domínios, obrigando os grandes senhores de engenho a moerem a cana dos lavradores vizinhos. Nem sempre, porém, os senhores de engenho cumprem essa obrigação. O próprio Pero Goes, da capitania de São Tomé, dá a entender, na carta a Martim Ferreira, sua intenção de eximir-se a este encargo: -“Entretanto que esses homens roçam, faço eu cá no mar dois engenhos de cavalos, que moía um deles para os moradores e outro para nós somente; e isto, presentemente, para os entreter, porque para estes dois engenhos, Bendito seja Deus, tenho gente...” (VIANA. 1973. p.69).
Apesar de usualmente ser mencionado que o ato de transferência das referidas propriedades fora realizado por doação, em verdade, se tratava de um empréstimo, e um empréstimo condicionado ao aproveitamento da terra. Assim, a propriedade de ditas terras permanecia com a Coroa que poderiam ser retomadas a qualquer momento.
Muitas fraudes e desvios de várias naturezas foram verificados pelos donatários e sesmeiros no uso da terra. Em muitas situações a Coroa quedava-se inerte quanto a tentativa de conter abusos. Nesse sentido, ensina Fábio Konder Comparato:
Sem dúvida, as autoridades metropolitanas advertidas dos maus resultados do sistema aqui implantado, procuraram, a partir de fins do século XVII, limitar a área de cada sesmaria: cinco léguas quadradas pela carta régia de 27 de dezembro de 1695, sem seguida reduzidas a três pela carta régia de 7 de dezembro de 1697; o que ainda representava uma grande superfícies, equivalente a 12.000 hectares. Em 3 de março de 1702, outra carta régia veio condicionar a legitimidade de cada data de terra à efetiva demarcação de sua área. Mas os historiadores são unânimes em reconhecer que tais limitações só existiam no papel. Frequentemente, os titulares do direito de exploração da terra avançavam muito além das lindas oficiais. Não eram raras as sesmarias de mais de 50 léguas, ou seja, 218.000 hectares. Nunca houve, deste lado do Atlântico, fiscais em número suficiente para controlar a aplicação das normas editadas na metrópole. Por último, em todo o período colonial, jamais existiu um registro de direitos sobre o solo agrário, dotado de fé pública. (COMPARATO, 2016, p.63).
Apresentar o panorama do Brasil Colônia é de suma importância para, a partir daí, ingressar no âmago da cultura brasileira desse período histórico a fim de perquirir a prática de atos de corrupção e mesmo sua naturalização entre os brasileiros. Nesse contexto, entender o longo processo de afirmação da cidadania no Brasil, a partir de institutos preponderantes na colonização, aponta José Murilo de Carvalho:
Escravidão e grande propriedade não constituíam ambiente favorável à formação de futuros cidadãos. Os escravos não eram cidadãos, não tinham os direitos civis básicos à integridade física (podiam ser espancados), à liberdade e, em casos extremos, à própria vida, já que a lei os considerava propriedade do senhor, equiparando-os a animais. Entre escravos e senhores existia uma população legalmente livre, mas a que faltavam quase todas as condições para o exercício dos direitos civis, sobretudo a educação. Ela dependia dos grandes proprietários para morar, trabalhar e defender-se contra o arbítrio do governo e de outros proprietários. Os que fugiam para o interior do país viviam isolados de toda convivência social, transformando-se, eventualmente, eles próprios em grandes proprietários. Não se pode dizer que os senhores fossem cidadãos. Eram, sem dúvida, livres, votavam e eram votados nas eleições municipais. Eram os “homens bons” do período colonial. Faltava-lhes, no entanto, o próprio sentido da cidadania, a noção da igualdade de todos perante a lei. Eram simples potentados que absorviam parte das funções do Estado, sobretudo as funções judiciárias. Em suas mãos, a justiça, que, como vimos, é a principal garantia dos direitos civis, tonava-se simples instrumento do poder pessoal. O poder do governo terminava na porteira das grandes fazendas. A justiça do rei tinha alcance limitado, ou porque não atingia os locais mais afastados das cidades, ou porque sofria a oposição da justiça privada dos grandes proprietários, ou porque não tinha autonomia perante as autoridades executivas, ou, finalmente, por estar sujeita à corrupção dos magistrados. Muitas causas tinham que ser decididas em Lisboa, consumindo tempo e recursos fora do alcance da maioria da população. O cidadão comum ou recorria à proteção dos grandes proprietários, ou ficava à mercê do arbítrio dos mais fortes. Mulheres e escravos estavam sob a jurisdição privada dos senhores, não tinham acesso à justiça para se defenderem. Aos escravos só restava o recurso da fuga e da formação de quilombos. Recurso precário porque os quilombos eram sistematicamente combatidos e exterminados por tropas do governo ou de particulares contratados pelo governo. Frequentemente, em vez de conflito entre as autoridades e grandes proprietários, havia entre eles conluio, dependência mútua. A autoridade máxima nas localidades, por exemplo, eram os capitães-mores das milícias. Esses capitães-mores eram de investidura real, mas na sua escolha era sempre feita entre os representantes da grande propriedade. Havia, então, confusão, que era igualmente conivência, entre o poder do Estado e o poder privado dos proprietários.(...). (CARVALHO. 2017.p.27-28).
Diante desse quadro em que os direitos da grande maioria populacional eram relegados a último plano, fomentado por um círculo de poder bem estruturado entre as elites, a cidadania no Brasil passou por um íngreme e longo caminho até a conscientização das pessoas como partes integrantes da mesma sociedade.
A Corrupção Brasileira: Capitanias Hereditárias, Sesmarias e o Senhoriato
O projeto administrativo da metrópole se materializou com a divisão do Brasil em capitanias hereditárias e, em um segundo momento, sesmarias como subglebas. Descentralizar era a meta porque a insuficiência humana e de recursos da Coroa era incontestável diante do vasto território brasileiro. A metrópole, no entanto, não concebeu uma forma de controle eficaz, ou menos errático, o que não seria difícil prever não só pelas denúncias de desvios e desmandos, mas pelas já conhecidas dificuldades de administração presencial.
Os donatários e os sesmeiros passaram a exercer domínio forte na sociedade colonial, ingressando no ápice da pirâmide social pelo poderio econômico e social. Nada se constatava quanto aos atributos meritórios dos mesmos, cingindo-se, nessa escolha, o potencial econômico que deveriam, em tese, investir na terra cedida. No entanto, a metrópole foi cautelosa quanto à proibição imposta ao donatário de ceder sesmaria para parentes diretos e indiretos.
O grande empreendimento português para colonizar um país extenso se tornou um desafio. De clima tropical, solo fértil e composto por uma grande camada de nativos indígenas, avessos à imposição de um novo modo de vida imposto pela civilização ocidental, à terra de Santa Cruz - o Brasil -, se apresentava como um grande território desconhecido em suas potências naturais e econômicas.
No processo de imposição de uma nova cultura, os nativos aqui encontrados foram covardemente exterminados, além de outras tentativas terem sido desenvolvidas para conter a rebeldia do povo considerado selvagem, a exemplo da catequização desenvolvida pelos Jesuítas da Igreja Católica e da escravização.
Ao analisar a história e política brasileiras, não é difícil contatar uma sucessão de nomenclaturas distintas que, em essência, possuem o mesmo significado. Assim, donatários, sesmeiros, donos de casas grandes, coronéis, no início da fase republicana, assim como os integrantes das oligarquias e os latifundiários possuem o mesmo traço comum: camada social de privilegiados que exerciam grande poder e relações clientelistas perante a população local
Idealizou-se um sistema composto por donatários de posses, que poderiam empreender em terras brasileiras, principalmente no plantio de cana-de-açúcar, que se sucedeu ao pau-brasil quanto à importância econômica. Desconsiderou-se o outro método, que seria a divisão de terras a pequenos produtores rurais diante da pequena expressão econômica que, singularmente, representavam.
Apesar do insucesso do sistema das capitanias hereditárias, e do verdadeiro abandono pela metrópole nos anos iniciais ao descobrimento, tentou-se implementar o sistema de “sesmarias”, atribuindo-se glebas menores de terras e, da mesma forma que as anteriormente concedidas, condicionando a doação ao efetivo cultivo. Outra tentativa, no entanto, não exitosa, o que aprofundou a desigualdade econômica entre a população brasileira composta pelos donatários, agregados, índios e escravos, além do clero. Caio Prado Júnior apresenta sua análise pontual:
Numa palavra, e para sintetizar o panorama da sociedade colonial: incoerência e instabilidade no povoamento; pobreza e miséria na economia; dissolução nos costumes; inércia e corrupção nos dirigentes leigos e eclesiásticos. Nesse verdadeiro descalabro, ruína em que chafurdava a colônia e sua variegada população, que encontramos da vitalidade, capacidade renovadora? (PRADO JR. 2000, p.365).
E Boris Fausto (2015,p.21), arremata:
A instituição de um governo-geral representou um esforço de centralização administrativa, mas o governador-geral não detinha todos os poderes nem, em seus primeiros tempos, podia exercer uma atividade muito abrangente. A ligação entre as capitanias era bastante precária, limitando o raio de ação dos governadores. A correspondência dos jesuítas dá claras indicações desse isolamento. Assim, em 1552, escrevendo da Bahia aos irmãos Coimbra, o padre Francisco Pires queixa-se de só poder tratar de assuntos locais porque “às vezes passa um ano e não sabemos uns dos outros, por causa dos tempos e dos poucos navios que andam pela costa e às vezes se veem mais cedo navios de Portugal que das capitanias”. Um ano depois, metido no sertão de São Vicente, Manuel da Nóbrega diz praticamente a mesma coisa: “Mais fácil é vir de Lisboa recado a esta capitania que da Bahia.”
O Estado português não era laico e a Igreja Católica, com a ingerência de sua sede em Roma, atuava fortemente nos empreendimentos de navegação e exploração, a exemplo do caso brasileiro. A participação dos jesuítas nesse processo, não só de catequese e difusão dos princípios cristãos, era bem mais ampla. Segundo Boris Fausto:
Como se sabe, na história do mundo ocidental, as relações entre Estado e Igreja variam muito de país a país e não foram uniformes no âmbito de cada país ao longo do tempo. No caso português, ocorreu uma subordinação da Igreja ao Estado através de um mecanismo conhecido como padroado real. O padroado consistiu em uma ampla concessão da Igreja de Roma ao Estado português, em troca da garantia de que a Coroa promoveria e asseguraria os direitos e a organização da Igreja em todas as terras descobertas. O rei de Portugal ficava com o direito de recolher o tributo devido pelos fiéis, conhecido como dízimo, correspondente a um décimo dos ganhos obtidos em qualquer atividade. Cabia à Coroa criar dioceses e nomear os bispos. (FAUSTO, 2015, p.29)
Este trabalho faz parte de uma série de artigos sobre as origens históricas e sociológicas da corrupção no Brasil. Clique no currículo da autora para acessar os demais artigos.