A escravidão em território brasileiro provocou mazelas na cultura brasileira até hoje ressentidas. O trauma da escravidão, cuja permanência aqui foi verificada por quase dois séculos, em muito influenciou para a formação da denominada “brasilidade”, para a formação do povo brasileiro.
Nos anos iniciais do Brasil pré-colônia não havia a presença maciça de escravos. A economia girava em torno, principalmente, da extração do pau-brasil com o emprego do trabalho indígena e do escambo. Em verdade, no relacionamento estabelecido com os nativos indígenas e o europeu colonizador não foi escambo porque não se tratava de troca de mercadoria por mercadoria, mas mercadoria por trabalho humano.
Os demais ciclos econômicos (cana-de-açúcar, café, mineração), no entanto, demandava a multiplicação da mão de obra humana e as dificuldades eram crescentes em adaptar o índio, mesmo catequisado, ao trabalho forçado no campo e lavoura. O trabalho forçado à cultura indígena violentava o âmago de sua vocação cultural, já que era um povo seminômade, o que se fazia chocar com os interesses econômicos do europeu explorador. Assim, a mão de obra composta por escravos africanos em território brasileiro ingressou e perdurou em diversos setores produtivos. Elucidativos os ensinamentos:
Os escravos no Brasil foram alocados principalmente no setor rural, onde trabalhavam em todas as etapas da produção do açúcar e no serviço doméstico da casa-grande. Nas áreas urbanas, os escravos assumiram tarefas domésticas, atuando diretamente no comércio como vendedores, ou mesmo como marinheiros e estivadores nos portos coloniais. Nos centros urbanos ocorreu também a formação dos escravos de ganhos, que recebiam seus proprietários, mediante o pagamento de um salário diário, autorização para trabalhar por contra própria na rua, como alfaiates, carpinteiros, sapateiros ou vendedores ambulantes, e as mulheres muitas vezes como prostitutas. Na prática, a principal força de trabalho no Brasil colonial foi a do escravo, principalmente do negro africano, incorporado ao sistema produtivo colonial mediante o emprego da violência. (AQUINO, FERNANDO, GILBERTO, HIRAN. 2008. p.121)
Diante da grande dificuldade em adaptar o índio a uma realidade imposta unilateralmente- imposição de trabalho-, aos poucos essa mão de obra foi sendo substituída pela mão de obra composta por escravos africanos. Nessa fase, no entanto, não se apresentavam como mercadoria mais importante do mercado.
O grande fluxo do tráfico negreiro ocorre, portanto, por causa do plantio da cana-de-açúcar, que substitui, como mercadoria principal, o pau-brasil, já que tornava-se cada vez mais escasso. Helena aduz:
O tráfico de escravos tornou-se a atividade comercial mais rentável na colônia e contratadores, autorizados pela Coroa portuguesa, traziam negros que já eram esperados por mercadores cristãos-novos nos portos do Rio de Janeiro e da Bahia. Nesses portos, faziam seus carregamentos e os levavam para Minas, onde os revendiam, em geral, a crédito. (LEWIN. 2019. p.71).
No mesmo locus, ainda que cerceados de sua liberdade e submetidos a trabalhos forçados, os escravos em muito influenciaram as relações sociopolíticas brasileiras face à mistura inevitável de culturas. A supremacia e dominação da raça não impediu esse fenômeno.
Muito antes dos movimentos de alforria dos escravos, já se despontavam impactos resultantes da sua chegada no território brasileiro. Raimundo Faoro explica:
A tradicional visão da sociedade da colônia dos dois primeiros séculos reduz as classes a duas, senão a uma, em seus dois polos extremos: o proprietário rural, com engenhos e fazendas, contraposto à massa dos trabalhadores do campo, escravos e semilivres. O proprietário rural, com a economia assentadas na sesmaria latifundiária, ganharia o status aristocrático, em simbiose com a nobreza de linhagem. Mais um passo: o “aristocrata” comandaria a vida política local, controlando e calando muitas vezes a supremacia administrativa reinol (FAORO. 2008, p. 238).
A mescla de raças entre o índio, em território brasileiro aqui já encontrado, o branco europeu e negro, todos de culturas originou a denominada “brasilidade”, termo que se prende às características inatas do Brasil, distante da noção de cidadania, sem espaço no período colonial.
Como toda a escravidão, abjeta, dolorosa, que provoca marcas indeléveis ao escravizado, e à sociedade, não seria diferente a escravidão verificada no Brasil colonial, supostamente dócil e jamais democrática, inobstante o mito da democracia racial, tão difundida por Gilberto Freyre. Importante o registro:
Muitos autores costumam apresentar a opção pela escravização do negro em substituição ao trabalho compulsório do índio argumentando ser o negro mais dócil. Afirmam inclusive que o índio resistia de todas as maneiras: lutava, fugia, se recusava a trabalhar. Em contrapartida, defendem a ideia de que o negro se mostrava mais acomodado e dócil, aceitava mansamente a sua condição de escravo. Esses autores chegam mesmo a sustentar que era doce a escravidão no Brasil, que o escravo não recebia maus-tratos do proprietário branco.
Asseveram que os castigos, quando aplicados, ocorriam em função do mau comportamento do escravo negro. Não hesitam em difundir a ideia de que a maioria dos proprietários de escravos dispensava bom tratamento aos negros e de que constituíam exceção os brancos responsáveis pelas severas punições eventualmente impostas aos escravos. Essas e outras afirmativas semelhantes são falsas. Representam, de fato, mentiras apresentadas como verdades pela história oficial. Representam concepções embasadoras da ideia da democracia racial, um dos mitos mais arraigados no ensino da história do Brasil. (AQUINO, FERNANDO, GILBERTO, HIRAN. 2008. 121-122)
O processo de relegar pessoas à condição de objeto, submetendo seres humanos a trabalhos forçados, e humilhações em diversos graus, como ocorreu no início do processo civilizatório, é ponto forte na formação da cultura brasileira. Acertada posição de Lilia:
“a escravidão minava conceitos como moral e ética; era comercializada diretamente entre proprietários e traficantes, e seu dia a dia vigia à margem do controle do Estado português, que era dono das feitorias africanas, mas não controlava o tráfico, nem os mercados de escravos” (SCHWARCZ. 2019. p. 93).
E arremata:
(...) Como é possível definir o Brasil como um território pacífico se tivemos por séculos em nosso solo escravizados e escravizadas, admitindo-se, durante mais de trezentos anos, um sistema que supõe a posse de uma pessoa por outra? Lembremos que o Brasil foi o último país a abolir tal forma de trabalho forçado nas Américas- depois dos Estados Unidos, Porto Rico e Cuba-, tendo recebido 5,85 milhões de africanos num total de 12,52 milhões de pessoas embarcadas e que foram retiradas compulsoriamente de seu continente para essa imensa diáspora atlântica; a maior da modernidade (...). (SCHWARCZ. 2019. p.22)
Apesar da desigualdade econômica ter se estabelecido na origem, sobressai da cultura brasileira como legado para vários países, que os estigmas raciais nunca foram considerados problemas de Estado, nem vistas guerras por questões de etnia ou raça. Viana analisa:
Nunca tivemos aristocracia de raças. Pelo contrário, o nosso povo caldeia-se e funde-se sem lutas étnicas flagrantes. Mistura cedo o sangue latino e o sangue bárbaro do índio e do negro. Na vida das fazendas, nossa bondade natural adoça o trato dos escravos. Estes são como membros da família e quase sempre ligados aos fazendeiros por terna afetividade. Por outro lado, a rivalidade entre portugueses e brasileiros não chega nunca a tomar um caráter duradouro.
É mais uma questão de privilégio social do que privilégio étnico. Nunca tivemos aristocracia de castas ou de classes. Exceto na fase das capitanias hereditárias, em que se debuxa um meio feudalismo exótico, que, alíás, não perdura, a nossa aristocracia tem sido aqui a aristocracia natural da riqueza e da inteligência- a dos fazendeiros nos campos; a dos capitalistas, nas cidades; a dos doutores, por toda parte. Essa antiga fidalguia de barões e marqueses do Império é puramente honorífica; não tem privilégios. (VIANA. 1973. p. 284)
Assim, a convivência entre brancos e negros, apesar da supremacia racial branca, não gerou grandes revoltas decorrentes da escravidão imposta. A miscigenação trouxe um novo olhar para a cultura própria do negro africano, que fora pulverizada na cultura brasileira.
Para Sergio Buarque de Holanda,
a influência dos negros, não apenas como negros, mas ainda, e sobretudo, como escravos, essa população não tinha como oferecer obstáculos sérios. Uma suavidade dengosa e açucarada invade, desde cedo, todas as esferas da vida colonial. Nos próprios domínios da arte e da literatura ela encontra meios de exprimir-se principalmente a partir dos Setecentos e do Rococó. (HOLLANDA. 2016, p. 91-92).
A denominada democracia racial, diante dos vários movimentos de alforria, formação de guetos e crueldades praticadas contra os escravos no Brasil afigura-se, em verdade, um mito. Ressente-se, em tempos atuais, das mazelas provocadas pelo longo período de escravidão em território brasileiro, a exemplo de discriminações raciais para ingresso dificultadas, ou mesmo permanência no mercado de trabalho em condições desiguais, violência e segregação.
No entanto, havia outra classe que não pode ser confundida com a dos escravos: a dos agregados. Explica Oliveira Viana (1973, p.73)
“Da classe dos escravos é preciso distinguir a dos agregados. Estes se diferenciam dos escravos pela sua origem étnica, pela sua situação social, pela sua condição econômica e pela sua residência fora da casa senhorial.”
A questão da dependência econômica ou social (segurança e prestígio) não era imanente ao escravo porque era considerado objeto, uma mercadoria, ao contrário dos “agregados ou dependentes” do Brasil Colônia. Assim, pequenos agricultores, artesãos e outras categorias de trabalhos manuais, se brancos, já que a abolição da escravidão não alcançou o Brasil colônia, formavam uma definida classe de pessoas subservientes, mas não escravos. Nessa linha, Jessé Souza:
O dependente se relaciona com o proprietário como se fosse seu igual. Como explica um membro da classe dominante citado por Carvalho Franco: “não a havia desigualdade entre fazendeiros e sitiantes; havia mesmo amizade. Se um deles chega a nossa porta, vinha para a mesa almoçar conosco”. Por trás dessa igualdade formal, no entanto, se esconde o fato mais fundamental de que a subsistência material do dependente está condicionada à boa vontade do senhor.
È ele, afinal, quem empresta a terra ao sitiante, é ele quem permite (ou não) ao tropeiro o uso de pastagens em suas terras, é ele quem apadrinha e protege a prole de seus cabras e agregados. A contraprestação dos favores e proteção, mais uma vez, na ausência de um código moral objetivo, explícito e autônomo que estabeleça obrigações a ambas as partes, adquire a forma de sujeição absoluta. A identificação do dependente com os interesses e desejos do senhor vai ao limite do assassinato a mando, à subordinação dos interesses da própria família e até a perda da própria liberdade para o atendimento das necessidades e dos interesses do patrão e protetor (SOUZA. 2018. p. 183).
Os escravos contribuíram muito para a formação da cultura brasileira, da formação da “brasilidade”. Ainda que com a liberdade cerceada ou suprimida, e violência de todo o gênero tenha sido praticada contra essa raça humana, desde o início do processo civilizatório não se constatam guerras de etnias, salvo revoltas e fugas motivadas pelas crueldades a eles impostas. O longo período de escravidão no Brasil- quase dois séculos- produziu marcas na sociedade brasileira, até hoje ressentida pela grande desigualdade econômico-social. Maria Yedda Linhares aponta que
A abolição do tráfico negreiro colocaria limites físico à própria reprodução de uma das bases que deram vida à sociedade montada no período colonial. As reações a tal abolição demonstrariam, o entanto, que aquela mesma sociedade ( sua estrutura social, com seus mecanismos de diferenciação econômico-social), já tinha deitado raízes profundas e possuía uma elasticidade superior à da própria escravidão. (LINHARES, 2000.p.147)
E Florestan Fernandes apresenta olhar ainda contemporâneo:
(...) O desaparecimento tardio da escravidão acaba por convertê-la em um dos fatores da “acumulação originária” na cena histórica brasileira. Não se trata pura e simplesmente, de constatar que a escravidão desaparece e é enterrada com “a crise do regime escravocrata e senhorial”. Ela alimentou essa crise, inclusive no plano construtivo, já que sem a persistência da escravidão e a transferência do excedente econômico que ela gerava para as cidades (segundo ritmos históricos lentos), a “história ocorrida” seria inexequível. Não advogamos, com isso, que se ponha a imigração e outros fatores em um segundo plano. Mas, apenas, que não se conte a história tão depressa e tão por cima a ponto de deixar-se na penumbra a verdadeira camada primária desse “mundo moderno” de raízes tão arcaicas. (FERNANDES. 2005. p.41)
Com muita propriedade, identificando as mazelas da escravidão na desigualdade social, de índices alarmantes no Brasil, José Murilo de Carvalho, aponta:
Usar a carta de Caminha como certidão de nascimento do Brasil é uma distorção muito grande da nossa história. A carta refere-se a um raro momento de encontro quase que idílico dos conquistadores com a população nativa. Não representa nem de longe o que foram as relações posteriores. E o que se seguiu foi a escravização dos índios e seu extermínio. Havia aproximadamente 4 milhões de índios no Brasil à época da conquista. Ao final do período colonial, havia 800 mil.
A escravidão generalizou-se com a expatriação de cerca de 4 milhões de africanos que para cá foram trazidos como escravos. Foi sobre os ombros desses escravos africanos que se sustentou a economia brasileira até 1888. A escravidão foi abolida há cerca de 130 anos. No entanto, como dizia Joaquim Nabuco, sequelas, metástases desse câncer ainda estão entre nós e se refletem na desigualdade de raças que acabo de mencionar (CARVALHO. 2017. p. 38).
Assim sendo, constata-se, até nos dias atuais, a percepção de boa parte da população brasileira por razões étnicas, ora na desigualdade de renda, ora na desigualdade de emprego e educação, mazelas do longo período de escravidão por que passou o Brasil.
Este trabalho faz parte de uma série de artigos sobre as origens históricas e sociológicas da corrupção no Brasil. Clique no currículo da autora para acessar os demais artigos.