A nova ordem constitucional inaugurada pela Constituição Federal de 1988 estabeleceu limites racionais ao exercício do poder pelo Estado, a fim de tutelar e proteger um núcleo de direitos fundamentais, atingindo, sobretudo, a Administração Pública que vinha de sucessivos governos ditatoriais. Logo, a nova ordem constitucional passou a estabelecer a dignidade da pessoa humana como o centro de todo o ordenamento jurídico pátrio.
Nesse contexto, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, que historicamente fora utilizado como legitimador dos mais diversos atos dos donos do poder, ganhou uma nova releitura com o escopo de se compatibilizar com os pilares de um Estado Democrático de Direito e assim não violar aqueles direitos considerados fundamentais pela Constituição.
A definição de interesse público é dotada de certa imprecisão teórica e uma série de divergências doutrinárias, sendo considerado pela literatura dominante um conceito jurídico indeterminado. Não obstante a sua designação como conceito jurídico indeterminado, esta deve ser entendida como uma qualificação que se destina a proporcionar, ante a concretude de um caso, uma aplicação mais adequada.
Assim, a todo momento, surgem conflitos entre os interesses públicos e os interesses privados e é aqui que se revela a importância do presente trabalho para a sociedade, eis que a tensão entre os interesses públicos e os direitos fundamentais deve ser analisada à luz dos ditames constitucionais, sobretudo tendo por base a dignidade da pessoa humana, e não à luz de uma pretensa supremacia em abstrato que integra o conceito de interesse público.
A hipótese deve se concentrar na desmistificação da supremacia em abstrato que integra o conceito de interesse público, a fim de verificar o uso de mecanismos de ponderação de valores no embate entre os interesses públicos e privados, com vistas a atender o máximo de interesses em jogo à luz do princípio da proporcionalidade e dos ditames constitucionais.
Para tanto, busca-se contextualizar a aplicação do princípio da supremacia do interesse público no ordenamento jurídico brasileiro, verificando a abordagem do tema pela doutrina clássica do direito administrativo, bem como investigando como surgiu o referido princípio e se a ideia de supremacia sempre esteve presente em seu conceito.
Nesse ponto, verifica-se o surgimento de alguns problemas como a imprecisão que caracteriza o termo interesse público e a sua divisão entre interesse público primário e secundário, a qual sofre severa reprovação por parte da doutrina mais crítica do direito administrativo. Arremata-se, ainda, no sentido de aferir o conteúdo jurídico que integra a noção de interesse público.
A Questão do Interesse Público no Estado Republicano Brasileiro
O princípio da supremacia do interesse público é um dos pilares fundamentais do direito administrativo, eis que comporta, em última análise, a satisfação das necessidades coletivas em detrimento do atendimento aos interesses exclusivamente privados. Nesse sentido, foi conferida ao poder público uma série de prerrogativas e privilégios capazes de efetivar as dinâmicas de ordem administrativa.
Diferente das relações privadas, que se observa uma estrutura de tratamento horizontal entre as partes - eis que uma parte se encontra em pé de igualdade com as demais -, nas relações que envolvem o interesse público, nota-se que este ocupa uma posição de superioridade em relação aos interesses particulares, assim, verifica-se uma estrutura verticalizada nas relações entre administração pública e particular. Daí, decorre tal postulado denominado: supremacia do interesse público sobre o privado.
Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que o Poder Público se encontra em uma verdadeira situação de autoridade em face aos particulares, como indispensável condição para gerir os interesses que são conflitantes. Assim, surge a possibilidade de a Administração compelir os particulares em obrigações por meio de atos unilaterais, implicando no direito de modificar, sem a participação do particular, as relações já estabelecidas (MELLO, 1967, v. 89, p. 12).
Aproveitando a obra do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, verifica-se que a supremacia do interesse público sobre o privado consiste em
verdadeiro axioma reconhecível no moderno direito público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último. É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados (MELLO, 1967, p. 12)
Ocorre que esta supremacia do interesse público, por vezes, adquire a forma de argumento legitimador dos mais diversos e obscuros desejos dos donos do poder. Não se nega que esta supremacia seja considerada o pilar de todo o regime jurídico administrativo, eis que é onde se estruturam as prerrogativas das potestades públicas, porém propicia graves problemas, conforme afirma Justen Filho:
No passado, o governante adotava fórmulas imprecisas (tal como o “poder de império”, o “poder discricionário”, o “poder de polícia” ou a natureza política do ato) para justificar suas decisões subjetivas, incompatíveis com a ordem jurídica. A evolução democrática eliminou essas práticas. Na atualidade, o exercício do poder político refugia-se no princípio da supremacia do interesse público para evitar o controle ou o desfazimento de atos defeituosos, violadores de garantias constitucionais. Mais ainda, a teoria da supremacia e indisponibilidade do interesse público não esgota o regime de direito público, que comporta outros princípios ainda mais fundamentais (FILHO, 2005, p. 36).
A desvirtuação da aplicação da supremacia do interesse público no ordenamento pátrio possui origem desde os primórdios de sua importação do direito francês. O Brasil marcado por um modelo de administração pública patrimonialista encontrou no referido princípio a redenção para legitimar e institucionalizar atitudes autoritárias que se concretizavam através de instrumentos como a imperatividade, a insindicabilidade do mérito administrativo, o poder de polícia, dentre outras prerrogativas. Nesse sentido, Emerson Moura ao abordar a origem histórica do interesse público no regime administrativo brasileiro é preciso quando afirma:
Por efeito, estruturou-se o Direito Administrativo em torno de conceitos como imperatividade, insindicabilidade do mérito e poderes administrativo, de forma que tornou-se “quase unânime a articulação dogmática da disciplina sobre a idéia central de que o interesse público é um interesse próprio da pessoa estatal, externo e contraposto aos dos cidadãos. De modo que, o Brasil marcado por um modelo de Administração patrimonialista encontrou no “figuro francês” do direito administrativo material “farto” para institucionalizar e legitimar essa ação administrativa, de forma que as “peculiaridades da Administração Pública brasileira aguçaram as contradições intrínsecas que o modelo jus-administrativista europeu continental trazia já desde a sua gênese” (MOURA, 2014, p. 165, 166).
Utilizada para legitimar ações estatais dotadas de autoritarismo que restringem direitos fundamentais e, principalmente, mitigam o postulado basilar do sistema constitucional pátrio: a dignidade da pessoa humana. A supremacia do interesse público é colocada, portanto, como verdadeiro escudo imunizante para os mais distintos atos da Administração, eis que a sua incidência protege o seu utilizador do crivo do Poder Judiciário em nome de um suposto respeito ao mérito administrativo, sob pena de uma suposta violação à separação dos poderes.
Com efeito, esta não é a finalidade a qual se insere a supremacia do interesse público. Pelo contrário, as prerrogativas conferidas à Administração Pública, tais como a presunção de veracidade e legitimidade de seus atos, as cláusulas exorbitantes nos contratos que celebra, o poder de polícia, a insindicabilidade do mérito administrativo, entre outras, são de extrema importância na persecução das necessidades públicas, uma vez que, sem tais prerrogativas, o Estado não cumpriria a sua principal função consistente em assegurar sempre o interesse de seu povo.
Nas palavras de Alice Gonzalez Borges, se a Administração Pública não pudesse gozar de suas prerrogativas, “ficaríamos com uma sociedade anárquica e desorganizada, e os cidadãos ver-se-iam privados de um de seus bens mais preciosos, que é o mínimo de segurança jurídica indispensável para a vida em sociedade” (BORGES, 2007, p. 2, 3).
Posto isso, faz-se necessário investigar em que consiste a supremacia que integra a noção de interesse público, a fim de verificar se esta continua sendo base fundamental do regime jurídico administrativo, mesmo sob a égide de um modelo constitucional que coloca os direitos individuais no centro de todo o ordenamento jurídico nacional, não obstante existam exceções constitucionais em que os direitos individuais cedem espaço aos interesses públicos.