Neste artigo da série sobre sentenças aditivas, vamos destacar alguns casos debatidos no direito pátrio
Uniões Homoafetivas
Por via de ação direta de inconstitucionalidade (ADIn 4.277/2011), o Supremo Tribunal Federal foi chamado para se posicionar sobre o caso das uniões homoafetivas. Ficou-se decidido, de forma unânime, que as uniões homoafetivas estavam equiparadas as uniões estáveis. Abaixo trecho da decisão da referida ação constitucional de relatoria do Ministro Ayres Britto:
“O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de promover o bem de todos. (...) Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana: direito a autoestima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual.”
O grande entrave para prolatar a decisão de perfil aditivo era o art. 226, §3º da Constituição Federal, o qual preconiza que a união estável é entre homem e mulher. Só que na verdade o histórico do dispositivo apontava que ele fora criado com o escopo de acabar com a discriminação com a mulher não casada. Portanto, não poderia uma norma que tutelava uma minoria servir de base para excluir uma outra minoria, era necessário, indubitavelmente, a utilização da sentença aditiva para solapar esse pensamento arcaico.
A decisão sobre as uniões homoafetivas foi um dos marcos que corroboram com a recepção das sentenças aditivas dentro do ordenamento jurídico pátrio. No caso de tais uniões, é perceptível a atuação do Judiciário como legislador positivo, fato que reforça a superação do pensamento do Supremo Tribunal Federal de não atuação como legislador positivo, pugnando pela prevalência do princípio da isonomia em detrimento da separação de Poderes.
Sendo assim, no caso de união entre casais do mesmo sexo, existia um vão normativo, no entanto, a homossexualidade, que é um fato da vida, necessitava de conformação pela Ciência Jurídica. Tal conformação de cunho progressista foi feita pela via judicial, engendrando como se sabe uma sentença de perfil aditivo. No caso específico dessa sentença, consubstanciou-se o que vem sendo chamado de iluminismo judicial.
Por iluminismo judicial, entende-se que é um fenômeno em que as Cortes Constitucionais de cada país devem agir, em momentos pontuais, de forma mais ativa com a missão de realizar a progressão cultural, social e histórica de cada nação. São produzidas, pois, decisões de perfil aditivo para proteção de direitos fundamentais e, mormente, para a superação de discriminações e preconceitos. Nas palavras do Ministro Barroso:
“Por fim, em situações excepcionais, com grande autocontenção e parcimônia, cortes constitucionais devem desempenhar um papel iluminista. Vale dizer: devem promover em nome de valores nacionais, certos avanços civilizatórios e empurrar a história”
Em outras palavras, o caso das uniões homoafetivas é um caso de construção do Direito (um caso polêmico), que só poderia ser obtido pela via judicial, haja vista que num processo legislativo isso dificilmente passaria. E certamente tais uniões constituem um direito fundamental que seria impedido de ser gozado caso não fosse prolatada a sentença (acórdão) aditivo.
Fetos Anencefálicos
Outro caso que corrobora para aceitação das sentenças aditivas dentro do ordenamento jurídico foi a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no caso dos fetos anencefálicos.
Como é cediço o aborto é tipificado no Código Penal, as únicas ressalvas feitas pelo referido código seriam no caso de estupro (aborto ético, art. 128, II do Código Penal) e no caso de gravidez de risco para a gestante (aborto humanitário, art. 128, I do Código Penal). Logo, a interrupção da gravidez dos fetos anencefálicos não estaria abarcada pelas ressalvas do Código Criminal, constituindo, por conseguinte, assim um vazio normativo.
No julgamento da Ação de Descumprimento Fundamental nº 54/2012 (ADPF 54) de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello, o Supremo Tribunal Federal julgou, por 8 votos a 3, a ADPF 54 para declarar a inconstitucionalidade da interpretação que lastreava a interrupção deste tipo de gravidez como conduta tipificada.
A Corte Suprema firmou o entendimento de que o feto sem cérebro, ainda que biologicamente vivo, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica, uma vez que a inviabilidade da vida do feto é um fato notório. Numa ponderação de interesses é fácil observar dois valores: os desgastes psicológico e físico da mulher (e também do homem que acompanha todo o processo gestacional de sua mulher) em manter uma gravidez que será inócua e de outro lado o direito à vida do feto. Nesse caso, acertadamente, o Supremo deu maior relevância ao direito de interrupção da gravidez dos fetos anencefálicos, porque seria um desgaste extremo para a mulher manter tal gravidez. Nas palavras do relator da ADPF 54: “Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica.”
Pode-se perceber mais uma decisão com perfil aditivo, desta vez em sede de ADPF, ou seja, mais um caso de criação do direito pelo Judiciário, o que corrobora ainda mais para solapar a corrente que são contrárias à recepção das sentenças aditivas.
Nepotismo
No caso do nepotismo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou norma proibindo a nomeação de parentes para cargos em comissão. Os Tribunais de Justiças Estaduais desrespeitaram amplamente a resolução do CNJ, alegavam tais tribunais que a referida vedação só poderia ser criada por lei.
Dado isso, a Associação dos Médicos do Brasil ingressou com uma ação declaratória de constitucionalidade (ADC nº 12), tendo por escopo declarar a constitucionalidade da proibição. Na decisão o Supremo editou o entendimento de que não precisava de lei, uma vez que a proibição encontrava fundamento na própria Constituição (mais especificamente no princípio da impessoalidade e da moralidade), ou seja, a resolução do CNJ apenas fez menção explícita a princípios constitucionais. Portanto, mais uma vez ficou o Supremo com o papel de conformação do Direito diante de uma penumbra constitucional. Vale destacar que mais tarde a decisão aditiva ficou consolidada na Súmula Vinculante nº 13.
Terra Indígena Raposa Serra do Sol
No caso da decisão da raposa serra do sol, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu, ao findar o julgamento da PET 3388/RR, em 2009, dezenove salvaguardas institucionais que devem ser observadas na demarcação de terras indígenas, ou seja, estabeleceu um comando cristalino de condições que devem ser seguidas de forma obrigatória em todo o procedimento de mesma natureza.
Vale destacar que, inicialmente, não teve efeito vinculante, tendo inclusive o Ministro Barroso aduzido, numa análise em embargos de declaração opostos pela Procuradoria Geral da República (a qual acusou o STF de atuar como legislador positivo), que a decisão valia apenas para o caso em questão. No entanto, Barroso ressaltou que a ausência de uma vinculação formal não impediria que a jurisprudência construída pelo Supremo fosse seguida pelas as demais instâncias, nas palavras do ministro: “a decisão ostenta força intelectual e persuasiva da mais alta Corte do País”.
Ocorre que em julho de 2017, a referida decisão do Supremo Tribunal Federal passou a ser seguida em todos os processos de demarcação de terra indígena pelo governo federal, isto pelo fato de o presidente Michel Temer aprovar parecer da Advocacia Geral da União que manda a União seguir as salvaguardas institucionais do STF. Entre as principais salvaguardas institucionais estabelecidas pelo Supremo para o caso da Raposa Serra do Sol estão: as terras indígenas só são aquelas ocupadas por índios na data da promulgação da Constituição, a proibição de expandir as áreas demarcadas e a determinação de que os direitos dos povos indígenas não se sobrepõem à segurança nacional.
Portanto, as “salvaguardas institucionais” estabelecidas pelo Supremo para o caso da Raposa Serra do Sol valem para todos os processos de demarcação de terras indígenas. Entre as salvaguardas estão a definição de que só são terras indígenas as ocupadas por índios na data da promulgação da Constituição, a proibição de expandir as áreas demarcadas e a determinação de que os direitos dos povos indígenas não se sobrepõem a questões de segurança nacional.
Pode-se perceber que mais uma vez o Supremo foi instado para se manifestar sobre uma questão constitucional que era eivada de omissão, criando as condições para a implementação do direito em tela. Sendo assim, não se pode olvidar que o Supremo atuou fora das suas funções constitucionais - atuou como legislador positivo -, haja vista que uma das missões do Supremo é a salvaguarda das questões constitucionais, se estas questões ficam abandonadas pelo Poder que deveria realizar a conformação, cabe ao Supremo, portanto, implementar as condições para se conformar as questões constitucionais.
Todos esses casos citados corroboram para o entendimento de que as sentenças aditivas são uma realidade dentro do ordenamento jurídico. É papel do Judiciário resolver problemas que não estão sendo resolvidos ou que estão sendo negligenciados pelos outros Poderes, por isso as sentenças manipulativas cumprem papel de suma importância dentro do ordenamento jurídico.
Portanto, as sentenças aditivas foram recepcionados pelo ordenamento jurídico pátrio como demonstram os casos acimas. Elas são fundamentais para a Ciência Jurídica, uma vez que implementam direitos que carecem de norma regulamentadora ou fazem uma adaptação da norma à realidade fática. As sentenças aditivas possibilitam a quebra do misoneísmo e realizam a máxima extração das potencialidades do texto constitucional.
Referências
BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, Representativo e Ilumista: Os Papéis das Cortes Constitucionais Nas Democracias Contemporâneas. Disponível em: <https://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2015/12/O-papel-das-cortes-constitucionais.pdf>. Acesso em: 13 out. 2017.
“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”
https://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=251738