Com o advento da Constituição Federal de 1988 que rompeu com a ordem jurídica autoritária até então vigente, observou-se que a supremacia do interesse público, que é um pilar fundamental do Direito Administrativo, começou a ser severamente questionada pela doutrina administrativa brasileira. Assim, esforçavam-se para impor uma verdadeira desconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, a fim de adequá-lo aos novos paradigmas trazidos pela nova Constituição.
A doutrina clássica que atribuía ao referido princípio um verdadeiro fundamento e fator de legitimação aos privilégios materiais e processuais que constituem o cerne do regime jurídico-administrativo viu emergir diversos autores que criticavam este posicionamento.
Primeiramente, a doutrina indicava que a imprecisão conceitual do termo interesse público permitia as mais distintas ações estatais, que não guardavam compromisso com as prescrições da Carta Cidadã (BINENBOJM, 2006, p. 19). Com isso, tais autores indicavam que nos conflitos entre o interesse público e o privado fossem realizados “juízos de ponderação sob o critério da proporcionalidade, entre os direitos fundamentais e os outros valores
e interesses metaindividuais consagrados pelas normas constitucionais” (MOURA, 2014, p. 167). Vejamos:
Assim, do princípio da supremacia do interesse público alcança-se o dever de proporcionalidade, de forma que compete a Administração Pública à luz do caso concreto e dos valores constitucionais concorrentes buscar a solução que realize o máximo dos interesses em jogo, garantindo que entre as necessidades coletivas e as privadas prevaleça aquela que for de “melhor interesse público” (p. 167).
As críticas ao princípio da supremacia do interesse público também se concentram em sua natureza. Dentre tais autores, Humberto Ávila é o mais incisivo, eis que sustenta que deve haver uma desconstrução do referido princípio. Ávila, ao estabelecer sua crítica, define o que seria: princípio como axioma, princípio como postulado e princípio como norma.
Nesse sentido, o axioma denotaria uma proposição cuja veracidade é aceita por todos e, com isso, não era necessário que fosse comprovada. Postulado, como condição do conhecimento de determinado objeto, e, postulado normativo, como condição de possibilidade de conhecimento do fenômeno jurídico. Por fim, princípio jurídico ou norma-princípio, como norma de otimização concretizável em diferentes graus, que permite e necessita de ponderação.
Afirma o autor que o chamado princípio da supremacia do interesse público teria sido definido como axioma por Celso Antônio Bandeira de Mello, assim, seria uma “proposição cuja veracidade é aceita por todos” e que não necessitava ser comprovada (ÁVILA, 2001, p. 161). Além disso, Ávila afirmava que Bandeira de Mello considerava a supremacia do interesse público também como um princípio jurídico, cuja função é regular as relações entre Estado e particular.
Para Ávila, a supremacia do interesse público não deve ser considerada um princípio, uma vez que princípios admitem um juízo de ponderação entre si, sendo que “a solução de uma colisão de princípios não é estável nem absoluta, mas móvel e contextual”, com isso, ao haver um choque entre princípios, a prevalência de um sobre outro deve ser analisada de acordo com cada caso concreto e com base na proporcionalidade (2001, p.161).
Vale ressaltar para um perfeito entendimento, conquanto extenso, o ensinamento de Humberto Ávila:
Em face de todo o exposto [...], entendemos que o "princípio da supremacia do interesse público sobre o privado" não é rigorosamente, um princípio jurídico ou norma-princípio: - conceitualmente ele não é uma norma-princípio: ele possui apenas um grau normal de aplicação, sem qualquer referência às possibilidades normativas e concretas; - normativamente ele não é uma norma-princípio: ele não pode ser descrito como um princípio jurídico-constitucional imanente; - ele não pode conceitualmente e normativamente descrever uma relação de supremacia: se a discussão é sobre a função administrativa, não pode "o" interesse público (ou os interesses públicos), sob o ângulo da atividade administrativa, ser descrito separadamente dos interesses privados. As ponderações feitas tornam também claro que este "princípio" não pode ser havido como um postulado explicativo do Direito Administrativo: - ele não pode ser descrito separada ou contrapostamente aos interesses privados: os interesses privados consistem em uma parte do interesse público; - ele não pode ser descrito sem referência a uma situação concreta e, sendo assim, em vez de um "princípio abstrato de supremacia" teríamos "regras condicionais concretas de prevalência" (variáveis segundo o contexto). Dessa discussão orientada pela Teoria Geral do Direito e pela Constituição decorrem duas importantes conseqüências. Primeira: não há uma norma-princípio da supremacia do interesse público sobre o particular no Direito brasileiro. A Administração não pode exigir um comportamento do particular (ou direcionar a interpretação das regras existentes) com base nesse "princípio". Aí incluem-se quaisquer atividades administrativas, sobretudo aquelas que impõem restrições ou obrigações aos particulares. Segundo: a única idéia apta a explicar a relação entre interesses públicos e particulares, ou entre o Estado e o cidadão, é o sugerido postulado da unidade da reciprocidade de interesses, o qual implica uma principal ponderação entre interesses reciprocamente relacionados (interligados) fundamentada na sistematização das normas constitucionais. Como isso deve ser feito, é assunto para outra oportunidade. O esclarecimento dos fatos na fiscalização de tributos, a determinação dos meio empregados pela Administração, a ponderação dos interesses envolvidos, pela Administração ou pelo Poder Judiciário, a limitação da esfera privada dos cidadãos (ou cidadãos contribuintes), a preservação do sigilo etc. são, todos esses casos, exemplos de atividades administrativas que não podem ser ponderadas em favor do interesse público e em detrimento dos interesses privados envolvidos. A ponderação deve, primeiro, determinar quais os bens jurídicos envolvidos e as normas a eles aplicáveis e, segundo, procurar preservar e proteger, ao máximo, esses mesmos bens. Caminho bem diverso, portanto, do que direcionar, de antemão, a interpretação das regras administrativas em favor do interesse público, o que quer que isso possa vir a significar.[...] (2001, p. 177, 178)
Logo, Ávila sustenta que a supremacia do interesse público não seria um princípio, pois não admite um juízo de ponderação, uma vez que, por ser intrinsecamente dotado de superioridade, a prevalência do interesse público seria o único caminho a ser traçado no embate entre um direito fundamental e o princípio da supremacia do interesse público, contudo, não seria possível determinar, desde logo, que no embate entre interesses públicos e particulares, aqueles deveriam prevalecer, em razão de sua superioridade.
Emerson Moura é preciso ao sintetizar o pensamento de Humberto Ávila:
Neste tocante, a supremacia do interesse público não é norma-princípio, uma vez que sua descrição abstrata não permite uma concretização gradual, sendo a prevalência a única possibilidade (ou grau) normal de aplicação, independente das possibilidades fáticas e normativas, o que exclui a possibilidade de sua ponderação, pois o interesse público já tem peso maior que o interesse particular (MOURA, 2014, p. 173).
Com a mesma linha de raciocínio, Gustavo Binenbojm entende que “um princípio que se presta a afirmar que o que há de prevalecer sempre prevalecerá não é um princípio, mas uma tautologia” (2005, p. 167). Entretanto, abre-se um parêntese para citar os ensinamentos de Emerson Gabardo que, discordando de Ávila e BinenBojm, preceitua:
não há qualquer sentido em ser sugerido um equívoco lógico no fato de que o princípio se auto-afirma; ou seja, de que o princípio da supremacia do interesse público propõe que “algo que deve prevalecer deve sempre prevalecer”.Por certo que o princípio da legalidade ao afirmar que a lei deve ser cumprida, prescreve que ela deve ser cumprida sempre; o princípio da publicidade, ao afirmar que o ato administrativo deve ser público, propõe que ele deve ser público sempre. Isso, por princípio. O que não afasta a possibilidade (1) da existência de exceções legais estabelecidas pelo próprio sistema e (2) da potencial possibilidade da presença da cláusula hartiana “a menos que...”). Assim sendo, o fato do princípio estabelecer um pressuposto não indica que ele sempre será aplicado, pois o sistema não admite decisões com base em apenas um pressuposto. Isso significa que o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado não é um critério exclusivo de decisão, assim como o da legalidade, o da publicidade ou da impessoalidade também não são (GABARDO, 2017, p. 106).
Em razão disso, para Gabardo, a noção de supremacia que integra o conceito de interesse público não deve ser levada para todo e qualquer caso em que tal princípio deva se fazer presente, pois, em muitos casos, assegurar um direito fundamental também é assegurar a concretização do interesse público, uma vez que, conforme assevera o autor, “O elemento a adquirir supremacia é o ‘interesse público’; não é o ‘princípio da supremacia do interesse público” (2017, p. 106).
Voltando às críticas proferidas pela doutrina contemporânea, esta indica que a noção de supremacia do interesse público sobre o privado como uma cláusula geral de restrição dos direitos fundamentais abre margem para atuações autoritárias por parte do Estado, no qual “os direitos, liberdades e garantias fundamentais devem ceder aos reclames do Estado que, qual Midas, transforma em interesse público tudo aquilo que é tocado” (MOURA, 2014, p. 174).
Assim, preceituam que as restrições aos direitos fundamentais não ocorrem pelo simples juízo de conveniência e oportunidade do Administrador, mas tão somente nos casos expressamente admitidos pela Constituição, seja quando estipulado pelo próprio constituinte originário de forma direta ou quando autorizada a restrição por meio da lei (2014, p. 175).
A restrição aos direitos fundamentais, também, não pode chegar ao ponto de atingir o núcleo essencial do direito fundamental, sendo legítima apenas quando servir de proteção a outro direito de cunho constitucional e sempre adstrita ao princípio da proporcionalidade, encontrando, portanto, limites (MOURA, 2017, p. 175).
Por fim, considerando que o princípio da unidade da Constituição prescreve uma coexistência entre diversos valores e princípios, verifica-se que, em muitos casos, os interesses públicos e privados são complementares e se harmonizam, visto que o conteúdo jurídico de interesse público também reflete a observância dos direitos fundamentais, pois a sua inobservância quando colocado frente ao interesse público, pode legitimar atos governamentais autoritários que ocasionariam em um verdadeiro Estado ditatorial.
Cabe ressaltar que, em eventuais colisões entres os interesses público e privado, deve-se verificar primeiramente se o constituinte originário previu o embate, optando pela prevalência de um ou outro. Caso não haja tal previsão, recorre-se ao campo da ponderação infraconstitucional observado o princípio da reserva legal e, em último caso, deve ser realizado um juízo de ponderação de valores diante do caso concreto por meio da mediação jurisdicional feita de forma imparcial e sem a adoção de critérios predeterminados de preferência entre os interesses em jogo (MOURA, 2017, p. 175).
Posto isto, a doutrina contemporânea ganhou diversos adeptos que concordavam com as críticas à noção de supremacia do interesse público, razão pela qual a doutrina tradicional que consagrou o referido princípio como base fundamental do Direito Administrativo, esforçou-se no sentido de buscar fundamentos que permitissem a manutenção do referido princípio como pilar central do regime jurídico administrativo.
Buscou a doutrina tradicional enfatizar a importância do princípio para a manutenção da paz social, uma vez que as prerrogativas que a Administração Pública possui são extremamente importantes para evitar o caos e a anarquia da sociedade (BORGES, 2007, p. 2) , logo, tais prerrogativas são essenciais para garantir o “mínimo de estabilidade e de ordem necessária para a vida em sociedade” (2007, p. 20).
Continuando a contracrítica, recorre-se aos ensinamentos do Professor Emerson Moura que, ao citar a doutrina tradicional, mostra que esta não considera que o direito administrativo lastreado pelo princípio da supremacia do interesse público possua caráter autoritário, uma vez que o referido princípio está condicionado às prescrições da lei que, por sua vez, refletem a vontade geral da sociedade, vejamos:
Já outros, indicam que a visão histórica dos “novos críticos” buscam igualar o momento pré-revolucionário francês como o momento pós-revolucionário, mediante a indicação “simplista de uma origem do Direito Administrativo em práticas autoritárias” que ignora os modelos de normatização de ontologia diversa de cada um desses, o que, por si só, “resulta na existência de uma realidade distinta. Ressaltam que com o Estado Moderno e o reconhecimento da submissão à lei, o Direito Administrativo torna-se “sem dúvida” um instrumento de “libertação e não somente de dominação”, pela substituição da idéia de superioridade da posição do Rei e do Direito costumeiro tradicional, para autodisposição da sociedade, através da vontade geral surgida do pacto social, expressa pela lei geral e igualitária. Por efeito, da incorporação da soberania popular, com a supremacia da lei e da prevalência do Poder Legislativo sobre os demais, assegurava-se que a realização da vontade geral “só poderia se expressar” através da lei elaborada pelo povo. Por efeito, o interesse público decorreria da vontade geral expressa na lei e mediante o respeito à legalidade que a proteção das liberdades individuais estaria garantida. Assim, segundo tais adeptos, o Direito Administrativo em sua origem não é autoritário: mas se “pauta” na vontade geral de proteção dos direitos individuais, cristalizado na lei, figurando a Administração Pública como executora dessa vontade geral e intérprete do interesse público, responsável por concretizá-lo em atos e medidas” (2014, p. 179, 180)
De mais a mais, a doutrina tradicional indica que o conceito de interesse público reflete o somatório de interesses individuais que possuem um bem da vida em comum, isto é, “um conjunto de interesses privados que tornam-se públicos quando passa a ser também identificado como interesse de todo o grupo, ou, pelo menos, como um querer valorativo predominante da comunidade” (2014, 179-181).
Há ainda aqueles que analisam a supremacia do interesse público por meio de uma ótima econômica social, pois entendem que descaracterização da “supremacia” do interesse público reflete um modelo de Estado Liberal, onde deve-se o máximo respeito ao interesse particular e tão somente a este, não havendo que se falar em interesses coletivos. Assim, partes dos autores:
identificam que a doutrina “inovadora” compõe o chamado “Direito Administrativo Econômico que volta-se à proteção do interesse econômico em detrimento de outros protegidos pelo ordenamento jurídico brasileiro e demonstra-se “retrógrada” porque prega a “volta dos princípios próprios do liberalismo” quando “inexistia” a preocupação com o bem comum. Alegam que a “desconstrução” da supremacia do interesse público sobre o privado serve tanto a um “discurso ultraliberal” – para restaurar a liberdade incondicionada do particular para buscar seus fins sem a indevida intervenção estatal – bem como a um “discurso neoliberal” – que objetiva impor restrições ao intervencionismo estatal na economia, no intuito de “restaurar um projeto de Estado Mínimo (2014, p. 184, 185).
Há de ressaltar, porém, que essa dicotomia proposta de que interesse público se identifica com interesses privados em um Estado Liberal e que interesse público se identifica com interesses coletivos em um Estado Social não se sustenta, uma vez que “no Estado Brasileiro a ordem político-jurídica consagra tanto um quanto outro, de forma que são finalidades públicas tanto a tutela das necessidades coletivas, quanto a promoção dos interesses privados.” (2014, p. 185)
Como exemplo, temos o Título VII da Constituição Federal que trata da ordem econômica e financeira, sendo certo que em seu artigo 170 dispõe que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano (Fundamento típico de um Estado Social) e na livre iniciativa (Fundamento típico de um Estado Liberal).
Ademais, o Estado Social de Direito consagra a autonomia do indivíduo e não a sua submissão ao poderio estatal, porquanto o Estado Social só corresponde a um Estado de Direito quando, para atingir os seus objetivos sociais, respeite os direitos fundamentais, “garantindo que a busca do vetor igualdade mediante a justiça distributiva não ocorra em detrimento ao vetor liberdade, algo que ocorre nas intervenções asfixiantes dos regimes totalitários.” (2014, p. 185)
Quanto ao entendimento dos adeptos da doutrina tradicional de que o interesse privado nunca deva prevalecer quando no embate com interesse público, ressalta-se que não se nega a supremacia que integra os interesses coletivos, todavia, não há que se falar em uma supremacia abstrata, eis que a prevalência de um interesse sobre o outro deve ser analisada em concreto, sob a égide de um juízo de ponderação, “pois sustentar que o interesse público ou privado sempre prevalecerá, afasta a própria natureza de princípio que, como visto, não se aplicam as regras no esquema ‘tudo ou nada” (2014, p. 187).
Há ainda o argumento de que a supremacia do interesse público sobre o privado se extrai implicitamente do ordenamento jurídico como decorrência dos fins almejados pelo Estado e em razão disso sustentam que a supremacia se exterioriza através das normas constitucionais que garantem vantagens à Administração Pública em detrimento ao particular.
Contudo, neste tocante, tais prerrogativas devem ser analisadas sob o olhar do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, para assim verificar se existe fundamento no caso concreto para restringir o interesse privado em face do interesse público, eis que fundamentar tal restrição simplesmente pela prevalência absoluta e abstrata da “supremacia” é agir de forma contrária à Constituição.
Nesse sentido, aquelas normas, sejam constitucionais ou legais, que consagram a prevalência do interesse público sobre o privado refletem, simplesmente, que o Constituinte ou o legislador ordinário realizaram um juízo de ponderação entre os interesses em jogo e naquelas hipóteses fez o interesse público prevalecer sobre o interesse privado.