Neste artigo da série sobre direito à saúde, temos a análise de um caso concreto em que tal direito restou totalmente restringido em virtude da condição de preso.
No caso concreto em questão, diz respeito a vida de um jovem que foi interrompida pelo descaso e negligência estatal, quando estava sob sua tutela cumprindo pena privativa de liberdade.
O caso foi mais um dos casos de pessoas vulneráveis e hipossuficientes que estão em situações críticas e que buscam que seus direitos sejam resguardados, através do órgão da Defensoria Pública, que de acordo com a Constituição Federal de 1988, em seu Art. 134 diz que a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial a função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.
Sendo assim, nas palavras de Edilson Santana Gonçalves Filho, o papel da Defensoria Pública é dar voz e defender os mais necessitados que por vezes é negligenciado, assim, a expressão instrumento do regime democrático, quer dizer sobre inclusão democrática dos mais vulneráveis na promoção dos direitos humanos (GONÇALVES FILHO, 2017).
Diante disso, dentre tantos casos onde pessoas vulneráveis tem seu direito ameaçado, um caso se destacou na Defensoria Pública de Seropédica, não por ser um caso isolado e singular, mas por percebermos que casos como este tem sido cada vez mais comuns.
O presente caso trata-se de um jovem negro, de classe baixa, morador da cidade de Seropédica que fica localizada na baixada fluminense, sendo este município deveras carente no sentido de estruturas públicas que atendam a população, apesar de ficar localizada uma das maiores Universidades públicas brasileiras, a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, a cidade não conta estruturas básicas como saneamento básico, asfalto, escolas públicas de qualidade, e até mesmo a ausência de um hospital público.
Sendo assim, em um contexto social geográfico podemos ver que como a cidade não oferece estruturas básicas, o índice de carência das pessoas moradoras de Seropédica é de fato maior do que em cidades com maiores estruturas, sendo o município o reflexo de toda a baixada fluminense que sofre com o descaso do poder público.
Como dizemos, Carlos era um dos moradores de Seropédica, morador inclusive de um dos bairros ditos como carentes do município, tinha 28 anos e entrou para a criminalidade, cometendo o crime Tráfico de Drogas, tipificado no Art.33 da Lei nº 11.343, onde foi condenado a cumprir a pena em regime fechado, começando pela pena privativa de liberdade, em uma das unidades prisionais da capital fluminense, a Penitenciária Alfredo Trajan.
A perda da liberdade foi no ano de 2011, e a partir dali o mesmo ficou sob a tutela estatal, a partir dali começou os diversos atos que violaram os principais direitos à dignidade da pessoa humana de Carlos, o que o levou infelizmente ao final à sua morte.
No ano de 2017 o assistido passou mal na penitenciária e foi atendido no Hospital Penal sendo diagnosticado com Tuberculose, apresentando caquexia com lesão pulmonar por tuberculose de forma extensa, sendo indicado pelo médico da unidade a iniciar o tratamento da doença.
Neste contexto, vale ressaltar que Carlos entrou saudável na prisão apenas machucado em virtude da abordagem policial pesando 92kg, e quando recebeu esse atendimento e foi diagnosticado com essa doença o assistido já pesava 45 kg.
A mãe de Carlos, pessoa que até então procurou assistência da Defensoria Pública, já que o filho não podia procurar pelos seus direitos em razão da pena privativa de liberdade, notou que a cada visita realizada ao presídio que se dava semanalmente, em um curto espaço de tempo o filho estava com um aspecto debilitado, a cada dia perdendo mais peso.
Diante daquela situação, ao observar que o atendimento médico oferecido pela unidade prisional não estava dando nenhum resultado, e pior, estava agravando o seu quadro, a mãe decidiu procurar a ajuda à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Primeiramente a ajuda foi diretamente na Comarca em que reside, no entanto foi direcionada à um setor próprio da Defensoria, a NUSPEN (Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro) que cuida em especial na prestação jurídica integral e gratuita à população prisional nos estabelecimentos penais e hospitais de custódia do Estado do Rio de Janeiro, tratando das questões concernentes ao cumprimento de pena, bem como na defesa quando há violação de direitos humanos e a promoção no acesso à saúde, etc.) (DPGE/RJ, 2018).
No NUSPEN a mãe de Carlos foi atendida, onde foi emitida para a unidade prisional diversos ofícios com o pedido para o atendimento adequado, devido a urgência do caso apresentado, e o quadro avançado de tuberculose.
Diante do solicitado, Carlos chegou a ser atendido pelos médicos da direção da unidade prisional, em razão das solicitações da Defensoria Pública, no entanto não estava sendo realizado o tratamento adequado, pois não havia na unidade estrutura necessária para tratar a doença já identificada, não havendo a falta de equipamentos, profissionais etc. E ainda, além de não haver as estruturas básicas e necessárias para o tratamento na unidade prisional, a SEAP (Secretaria de Administração Penitenciária) não fazia a transferência de Carlos para lugar que pudesse oferecer o tratamento adequado, conforme determina a Lei de Execução Penal.
Sendo assim, ao ver que o filho não estava sendo atendido adequadamente pela falta de estrutura na unidade hospitalar da penitenciária, a mãe de Carlos voltou a socorrer-se ao NUSPEN que teve que acionar o judiciário para que atendessem o que estava sendo solicitado com urgência.
Diante disso, a defensoria fez um pedido para que o juízo expedisse determinação para que Carlos fosse transferido de unidade hospitalar, ainda que fora do presídio para que fosse possível a realização de exames, bem como o tratamento correto para que a doença fosse curada.
Diante de idas e vindas entre a busca no judiciário para o atendimento médico adequado, Carlos foi ficando cada dia mais doente e sem o tratamento correto da doença que contraiu em virtude de sua condição de preso, seja pelas más condições físicas de superlotação de cela, falta de ventilação, seja pela má alimentação, seja pela falta de manutenção da saúde. Todos os fatores que envolvem o falido sistema prisional e as suas estruturas contribuíram para que Carlos contraísse doença infectocontagiosa e não conseguir o tratamento.
A tuberculose é uma doença totalmente tratável, diminuindo de forma gradativa, em geral em 15 dias de tratamento com o tratamento de antibióticos, sendo necessárias além da medicação as medidas de controle para a negativação da baciloscopia, sendo uma dessas medidas manter-se em locais bem ventilados e com bastante luz solar, conforme diz o Ministério da Saúde (2018).
Assim, o indivíduo que se encontra fora de condições de cárcere consegue de forma muito mais fácil tratar da doença, o que não podemos dizer o mesmo daqueles que se encontram sob a custódia do Estado, dependendo totalmente da sua ação para o tratamento e vivendo em condições insalubres de má ventilação e superlotação.
Diante disso, todo o esforço da mãe de Carlos em procurar a ajuda do órgão da Defensoria Pública, e acionar o judiciário para que seus direitos fossem atendidos, não foram suficientes para a manutenção da saúde do assistido e o fim em que a mãe mais temia veio a acontecer. A mãe de Carlos em uma das visitas ao filho no presídio dias depois, inclusive para saber notícias de sua saúde e se havia sido realizado o atendimento solicitado, recebeu a notícia do falecimento do filho em decorrência de seu quadro de saúde com a doença da tuberculose.
Ainda diante de todo o descaso estatal em promover a saúde dos seus tutelados, ainda houve a má organização de seus agentes, visto que a mãe de Carlos 5 dias após recebeu ligação informando sobre seu falecimento, data esta que a mesma já havia enterrado seu filho.
O jovem que entrou na unidade prisional em plenas condições de saúde, ao passar dos anos cumprindo pena adoeceu na penitenciária e dali não mais saiu, tendo vários de seus direitos violados por parte da omissão estatal.
Diante do caso, não há dúvidas da violação ao direito à saúde, bem como a violação do princípio da dignidade da pessoa humana do assistido da Defensoria Pública. A falha estatal começa desde a falta de condições básicas para manter pessoas presas e cumprirem de forma digna, condições estas impostas por lei específica (LEP), e asseguradas por diversos dispositivos Constitucionais.
Diante das situações precárias que atingem todas as unidades prisionais brasileiras, também já narradas nos capítulos anteriores, o jovem contraiu doença de tuberculose enquanto estava em ambiente prisional. Doença esta que assola grande parte da população prisional brasileira.
De acordo com Bernard Larouzé, Miriam Ventura, Alexandra Roma Sánchez e Vilma Diuana (2015)
O risco de desenvolver tuberculose (TB) durante o encarceramento é considerável para os 580 mil detentos no Brasil 1, inclusive para aqueles que ainda aguardam julgamento (40% do total), frequentemente encarcerados nas mesmas condições que os condenados. A incidência de TB ativa nas prisões é cerca de vinte vezes superior à da população geral.
Diante da já falha do poder público em preservar a saúde de quem está sob a sua custódia, visto que quando o indivíduo vai para a prisão, este já não tem a autonomia sobre si, começa-se aí a primeira violação dos direito social assegurado pela nossa legislação, o direito à saúde, visto que as contrações de doenças como a tuberculose está condicionada ao ambiente em que os presos ficam submetidos – não por escolha.
Diante da primeira falha inicial em negligenciar a saúde do preso, fazendo com que a enfermidade ocorresse em razão da omissão estatal, esperava-se uma espécie de retratação estatal para que essa situação se revertesse, visto que se não há a promoção do direito à saúde, ao menos que houvesse a remediação da doença contraída com o fornecimento ao atendimento médico adequado, para que o mesmo pudesse se recuperar a seu estado saudável, assim como chegou na prisão.
Ocorre, que o Estado além de negligenciar na “raiz do problema” este não consegue fornecer solução quando este ocorre, necessitando por vezes que o indivíduo ou sua família procure socorro ao poder judiciário em busca de ajuda.
As falhas estatais ocorreram com Carlos, assim como ocorre todos os dias diante dos inúmeros presos que estão nas unidades prisionais brasileiras, e diariamente o judiciário tenta sanar violações de direitos que são assegurados pelas nossas leis, mas por vezes são medidas infrutíferas, vez que o Estado se omite em promover as condições para que essas leis sejam de fato eficientes e aplicáveis a realidade. Diante desse problema, temos a utopia e toda a problemática também já estudada que envolve quando o poder judiciário tem que interferir para o intuito de fazer valer o dispositivo legal.
Conforme vimos no caso concreto, o esforço e a interferência judicial em promover o direito à saúde, nem sempre consegue sanar o problema. Por vezes a interferência no judiciário além de não conseguir resolver um problema individual, ainda interfere em todo um coletivo, acabando em atrapalhar em razão dos gastos com individual.
Além do que a morosidade do judiciário acaba também não conseguindo suprir necessidades tão emergenciais.
Vejamos, Carlos Magno estava doente – doença esta ocasionada estritamente em razão das más condições da unidade prisional – e além de tudo não tinha o atendimento necessário para sua recuperação, que apesar de existir, este era precário, não sendo o suficiente. Sendo assim, uma ação judicial que por sua vez requer tempo, por mais que a Defensoria Publica cumpra seu papel em seus plantões judiciais, não é o suficiente para uma pessoa que corre o risco de morrer.
Tanto que em nosso caso concreto, infelizmente diante de todos os esforços, o judiciário não foi capaz de conseguir com que o preso pudesse ter o tratamento efetivo para sua recuperação, visto que o mesmo veio a óbito logo após as tentativas.
Ainda nesse contexto, vejamos, se houver um número expressivo de ações individuais para que seja cumprido o direito à saúde dos apenados, isso compromete de fato as verbas para a aplicação dos recursos necessários para atendimento a população prisional, sendo que muita das vezes essas ações acabam não sendo eficazes na prática, pois quando há a procura do judiciário para reparar eventual ferimento de algum direito o mesmo já foi lesionado de modo que não consegue mais sanar, o que ocorreu neste caso.
Há inúmeros casos como o de Carlos Magno todos os dias em unidades prisionais brasileiras, sendo que no presente caso, ocorreu no estado do Rio de Janeiro onde ainda temos um órgão da Defensoria Pública bem atuante, o que não ocorre em outros estados do país, ou seja, Carlos Magno não conseguiu sua tutela jurisdicional, mas ainda teve acesso a justiça para ao menos tentar, o que se difere de Estados que o acesso a justiça aos mais pobres é quase inexistente.
Referências Bibliográficas
GONÇALVES FILHO, Edilson Gomes. O papel da Defensoria na busca da inclusão democrática de grupos vulneráveis. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2017-jan-10/tribuna-defensoria-defensoria-publica-defesa-vulneraveis>. Acesso em: 12 ago. 2017.
LAROUZÉ, Bernard; et al. Tuberculose nos presídios brasileiros: entre a responsabilização estatal e a dupla penalização dos detentos. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 1, n. 6, jan. 2015.