Tanto a doutrina majoritária quanto a jurisprudência predominante reconhecem o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado como eixo fundamental para o direito administrativo. Com isso, os clássicos doutrinadores do direito administrativo brasileiro, como os professores Celso Antônio Bandeira de Mello, Hely Lopes Meirelles e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, afirmam que a supremacia do interesse público sobre o particular constitui-se em um princípio do ordenamento jurídico brasileiro, embora não esteja expressamente previsto no texto constitucional, contudo sua aplicação decorre da lógica do regime jurídico administrativo.
Conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello
a prevalência dos interesses da coletividade sobre os interesses dos particulares é pressuposto lógico de qualquer ordem social estável e justifica a existência de diversas prerrogativas em favor da Administração Pública, tais como a presunção de legitimidade dos atos administrativos, os prazos processuais e prescricionais diferenciados para as relações que envolvem a administração pública, o poder de autotutela, a natureza unilateral da atividade estatal, entre outras (FISCHGOLD, 2015).
Hely Lopes Meirelles, por sua vez, defende
a observância obrigatória do princípio da supremacia do interesse público na interpretação do direito administrativo. Sustenta que o princípio se manifesta especialmente na posição de superioridade do poder público nas relações jurídicas mantidas com os particulares, superioridade essa justificada pela prevalência dos interesses coletivos sobre os interesses individuais. Para ele, o interesse coletivo, quando conflitante com o interesse do indivíduo, deve prevalecer (FISCHGOLD, 2015).
Por fim, Di Pietro ressalta
a importância de se observar tal princípio no momento tanto de elaboração da lei quanto de sua execução pela Administração Pública. Para Di Pietro, todas as normas de direito público têm a função específica de resguardar interesses públicos, mesmo que reflexamente protejam direitos individuais. Firme na premissa de que a Constituição da República de 1988 está em sintonia com as conquistas do Estado Social, Di Pietro entende que a defesa do interesse público corresponde ao próprio fim estatal. Por tal razão, o ordenamento constitucional contemplaria inúmeras hipóteses em que os direitos individuais cedem diante do interesse público (FISCHGOLD, 2015).
Emerson Gabardo, citando Bandeira de Mello, afirma que o autor especifica “o caráter duplo da idéia republicana de interesse público como fundamento do regime jurídico administrativo, que deve ser pautado tanto pela ideia de supremacia, quanto de indisponibilidade do interesse público” (GABARDO, 2017, p. 101).
Assim, nota-se que a doutrina clássica do direito administrativo pátrio entende que quando o interesse público é posto para a análise de um caso concreto deve prevalecer sobre os ditos interesses privados, eis que se reveste daquilo que se entende por supremacia. Mas então se pergunta: Em que consiste a supremacia que caracteriza o interesse público?
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, o interesse público é uma categoria contraposta ao interesse privado, uma vez que objetiva a persecução das necessidades de todos os indivíduos, não se confundindo, entretanto, com a somatória dos interesses individuais subjetivos de cada sujeito (MELLO, 2010, p. 59)
Esse é inclusive o posicionamento da professora Dora Maria de Oliveira Ramos, ao afirmar que “nos tempos atuais, não há que se confundir interesse público com a soma dos interesses individuais. O poder Público busca o interesse geral e não o das diferentes partes que constituem seu todo” (RAMOS, 2000, p. 92).
Portanto, considerando a complexidade inerente às sociedades atuais, não há que se falar que o interesse público seria a soma de interesses individuais, uma vez que a sociedade é composta por diferentes núcleos de interesses que por muitas vezes são incompatíveis entre si. Logo, é dever do Estado conciliar todos esses interesses, a fim de extrair deles vontades universais e, além disso, proteger aqueles interesses titularizados por minorias que historicamente foram reprimidas.
Para que a Administração Pública alcance tais vontades universais, a lei lhe confere diversas prerrogativas sem as quais não seria possível ao gestor público atuar. Daí decorre a chamada supremacia do interesse público sobre o privado. Em razão disso, Humberto Ávila ao citar Bandeira de Mello afirma o seguinte:
Decorreria desse “princípio” a posição privilegiada do órgão administrativo nas relações com os particulares, malgrado sua limitação pelo ordenamento jurídico. No bojo desse “princípio” — descrito como um “princípio de supremacia” — está a ligação das normas administrativas ao interesse público que visam a preservar, bem como o exercício da função administrativa pelos órgãos administrativos, aos quais é defeso representar interesses meramente pessoais, senão que devem atuar sob o influxo da finalidade pública instituída pela lei. É também a partir desse “princípio” que se procura descrever e explicar a indisponibilidade do interesse público e a exigibilidade dos atos administrativos, assim também a posição de supremacia da administração e os seus privilégios frente aos particulares, especialmente os prazos maiores para intervenção ao longo de processo judicial e a presunção de validade dos atos administrativos (ÁVILA, 2001, p. 1, 2).
A ideia de supremacia do interesse público pode ser concretizada pelas seguintes prerrogativas conferidas ao Estado: a presunção de legitimidade dos atos administrativos, as cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos, o poder de polícia administrativo, a insindicabilidade do mérito administrativo, bem como as prerrogativas processuais conferidas à administração pública, como: prazo em dobro para suas manifestações, reexame necessário, intimação pessoal, entre outras espalhadas pelo ordenamento jurídico pátrio.
Ademais, a expressão “interesse público” possui passagem em diversos artigos da Constituição Federal de 1988. A título de exemplo, menciona-se sua necessidade para que se promova qualquer desapropriação, para que ocorra qualquer requisição de propriedade particular em caso de iminente perigo público, para que se dê a exploração de atividade econômica diretamente pelo Estado, bem como para uma eventual restrição de publicidade de atos processuais, como mencionado no Art. 5o da Constituição da República Federativa do Brasil.
Diante dos numerosos aparecimentos da expressão na Carta Magna, em um primeiro momento, verifica-se que o constituinte garantiu, nas hipóteses supramencionadas, a superioridade em abstrato do interesse público, uma vez que, quando houver conflito entre o interesse coletivo e o interesse individual, deve o gestor público buscar atender aos anseios da coletividade, caso contrário, incorreria em desvio de finalidade, tornando, desse modo, o ato nulo.
A desapropriação é um dos exemplos mais claros do tratamento que a Constituição confere a determinados interesses públicos, vez que o constituinte traz a possibilidade de expropriação de bens particulares e, portanto, mitiga o direito individual à propriedade, mas estabelece que o particular tenha direito a uma indenização em decorrência desta desapropriação. Veja que o principal fundamento é a utilidade ou necessidade pública ou o interesse social.
Ocorre que fazer com que o interesse público prevaleça em todas as situações significa colocar em risco os direitos fundamentais do homem, principalmente o direito à liberdade. Em razão disso, a Administração deve ter muita cautela porque, ao mesmo tempo que a Constituição da República lhe outorgou prerrogativas a fim de atingir o interesse público em determinados casos, a Carta Magna também garantiu aos cidadãos a observância de seus direitos fundamentais contra o abuso de poder estatal, razão pela qual, conforme ensina o professor Juarez Freitas, o” princípio do interesse público exige a simultânea subordinação das ações administrativas à dignidade da pessoa humana e o fiel respeito aos direitos fundamentais.” (FREITAS, 2004, p. 34, 35)
Esse também é o entendimento de Daniel Sarmento, ao sustentar a importância da denominada dimensão objetiva dos direitos fundamentais, pois, para o autor, a proteção dos direitos fundamentais é também um interesse da coletividade, veja:
Como se sabe, a ideia da dimensão objetiva prende-se à visão de que os direitos fundamentais cristalizam os valores mais essenciais de uma comunidade política, que devem se irradiar por todo o seu ordenamento, e atuar não só como limites, mas também como impulso e diretriz para a atuação dos Poderes Públicos. Sob esta ótica, tem-se que os direitos fundamentais protegem os bens jurídicos mais valiosos, e o dever do Estado não é só o de abster-se de ofende-los, mas também o de promove-los e salvaguarda-los das ameaças e ofensas provenientes de terceiros. E para um Estado que tem como tarefa mais fundamental, por imperativo constitucional, a proteção e promoção dos direitos fundamentais dos seus cidadãos, a garantia destes direitos torna-se também um autêntico interesse público (SARMENTO, 2005, p. 171-2016).
Destarte, fixa os seguintes parâmetros: A supremacia do interesse público sobre o privado é figura patente no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive integrando diversos dispositivos da Constituição Federal; A supremacia que caracteriza o interesse público consiste naquelas prerrogativas que o próprio legislador concedeu ao Estado, com vistas à pacificação social por meio do atendimento das necessidades coletivas; A supremacia do interesse público exige subordinação da Administração Pública à dignidade da pessoa humana, eis que a garantia desta também é um autêntico interesse público.