Nem sempre o Poder Público atua para perseguir os interesses da coletividade, visto que, em diversos casos, a Administração atua puramente na persecução de seus próprios interesses enquanto pessoa jurídica.
Assim, entende tanto a doutrina, através de professores como Celso Antônio Bandeira de Mello, Renato Alessi e Calmon de Passos, como a jurisprudência nacional, tanto do Supremo Tribunal Federal, como do Superior Tribunal de Justiça, que o interesse público se subdivide em interesse primário e interesse secundário. Desse modo, para exemplificar a jurisprudência uníssona, será transcrita as seguintes decisões:
ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATAÇÃO DIRETA DE EMPRESA ORGANIZADORA DE CONCURSO PÚBLICO, COM FUNDAMENTO NO ART. 24, II, DA LEI DE LICITAÇÕES. VALOR DO CONTRATO ADMINISTRATIVO INFERIOR A R$ 8.000,00 (OITO MIL REAIS). RECEBIMENTO PELA EMPRESA CONTRATADA DAS TAXAS DE INSCRIÇÃO DO CONCURSO, EM MONTANTE SUPERIOR AO PERMISSIVO DA LEI DE LICITAÇÕES. NECESSIDADE DE PRÉVIO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. [...] 3. É imprescindível ponderar, também, a distinção entre interesse público primário e secundário. Este é meramente o interesse patrimonial da administração pública, que deve ser tutelado, mas não sobrepujando o interesse público primário, que é a razão de ser do Estado e sintetiza-se na promoção do bem-estar social. Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello: "O Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação, pois, inteiramente diversa da dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles." (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19ª edição. Editora Malheiros. São Paulo, 2005, pág. 66.) [...] (REsp 1356260/SC, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/02/2013, DJe 19/02/2013, grifos nossos)
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO SUPOSTAMENTE INDEVIDA ORIUNDA DO FUNDO DE INDENIZAÇÃO DO TRABALHADOR PORTUÁRIO AVULSO - FITP. PRETENSÃO VISANDO A RESTITUIÇÃO DA QUANTIA PAGA. REPETIÇÃO DO INDÉBITO. CONFLITO LEGAL DE CARÁTER TRIBUTÁRIO. INTERESSE SECUNDÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA MOVIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. INTERVENÇÃO DO PARQUET COMO CUSTOS LEGIS. DESNECESSIDADE. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. [...] 3. Consectariamente, a rubrica receita da União caracteriza-se como interesse secundário da Administração, o qual não gravita na órbita dos interesses públicos (interesse primário da Administração), e, por isso, não guarnecido pela via da ação civil pública, consoante assente em sede doutrinária: Um segundo limite é o que se estabelece a partir da distinção entre interesse social (ou interesse público) e interesse da Administração Pública. Embora a atividade administrativa tenha como objetivo próprio o de concretizar o interesse público, é certo que não se pode confundir tal interesse com o de eventuais interesses próprios das entidades públicas. Daí a classificação doutrinária que distingue os interesses primários da Administração (que são os interesses públicos, sociais, da coletividade) e os seus interesses secundários (que se limitam à esfera interna do ente estatal). "Assim", escreveu Celso Antônio Bandeira de Mello, "independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhes são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoas. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer sujeito". Nessa linha distintiva, fica claro que a Administração, nas suas funções institucionais, atua em representação de interesses sociais e, eventualmente, de interesses exclusivamente seus. Portanto, embora com vasto campo de identificação, não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse da Administração. [...] Genericamente, como Calmon de Passos, pode-se definir interesse público ou interesse social o "interesse cuja tutela, no âmbito de um determinado ordenamento jurídico, é julgada como oportuna para o progresso material e moral da sociedade a cujo ordenamento jurídico corresponde". A Constituição identifica claramente vários exemplares dessa categoria de interesses, como, por exemplo, a preservação do patrimônio público e da moralidade administrativa, cuja defesa pode ser exercida inclusive pelos próprios cidadãos, mediante ação popular (CF, art. 5.°, LXXIII), o exercício probo da administração pública, que sujeita seus infratores a sanções de variada natureza, penal, civil, e política (CF, art. 37, § 4.º), e a manutenção da ordem econômica, que "tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (CF, art. 170). São interesses, não apenas das pessoas de direito público, mas de todo o corpo social, de toda a comunidade, da própria sociedade como ente coletivo. (ZAVASKI, Teori Albino, Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 52-54.) [...] (REsp 786.328/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/10/2007, DJ 08/11/2007, p. 168, grifos nossos)
Em razão disso, podemos verificar que determinados atos da administração não são dotados da supremacia que caracteriza o interesse público, eis que são meros interesses das pessoas jurídicas que integram o Estado. Nas palavras de Marçal Justen Filho:
O interesse público não se confunde com o interesse do Estado, com o interesse do aparato administrativo ou do agente público. É imperioso tomar consciência de que um interesse é reconhecido como público porque é indisponível, porque não pode ser colocado em risco, porque suas características exigem a sua promoção de modo imperioso (2005, p. 39-41)
O interesse público primário não se confunde, portanto, com o interesse da Administração Pública, uma vez que como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, com base na doutrina italiana, o interesse público, tomado como interesse da coletividade como um todo, deve ser entendido como interesse primário, ao passo que o interesse da pessoa jurídica de direito público (Estado) é interesse secundário (MELLO, 1993, p. 22). Assim, para um perfeita compreensão da diferença entre interesse público primário e secundário, colaciona-se a aula do atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso:
O interesse público primário é a razão de ser do Estado, e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem estar social. Estes são os interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica - quer se trate da União, do Estado-membro, do Município ou das suas autarquias. Em ampla medida, pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas. [...] essa distinção não é estranha à ordem jurídica brasileira. É dela que decorre, por exemplo, a conformação constitucional das esferas de atuação do Ministério Público e da Advocacia Pública. Ao primeiro cabe a defesa do interesse público primário; à segunda, a do interesse público secundário. Aliás, a separação clara dessas duas esferas foi uma importante inovação da Constituição Federal de 1988. É essa diferença conceitual entre ambos que justifica, também, a existência da ação popular e da ação civil pública, que se prestam à tutela dos interesses gerais da sociedade, mesmo quando em conflito com interesses secundários do este estatal ou até dos próprios governantes. [...] O interesse público secundário não é, obviamente, desimportante. Observa-se o exemplo do erário. Os recursos financeiros provêem os meios para a realização do interesse primário, e não é possível prescindir deles. Sem recursos adequados, o Estado não tem capacidade de promover investimentos sociais nem de prestar de maneira adequada os serviços públicos que lhe tocam. Mas, naturalmente, em nenhuma hipótese será legítimo sacrificar o interesse público primário com o objetivo de satisfazer o secundário. A inversão da prioridade seria patente, e nenhuma lógica razoável poderia sustentá-la (BARROSO, 2005).
Em razão do exposto, não é sempre que deve existir a prevalência irrestrita e absoluta do interesse público sobre o interesse privado, tendo em vista que é necessário analisar a existência de quais são os objetivos a serem perseguidos pelo Poder Público.
Caso tais objetivos não se prestarem ao benefício direto da sociedade, mas apenas aos interesses individuais da administração como, por exemplo, o aumento dos cofres públicos decorrentes da recusa de ressarcimento a terceiros que porventura foram vítimas de danos causados pela Administração, estaremos diante do interesse público secundário, também chamado de interesse da administração.
Por outro lado, quando a Administração age para perseguir o bem comum como, por exemplo, para garantir que todos os indivíduos possuam o direito a se vacinarem e se imunizarem de doenças contagiosas, seria justificável a sua prevalência sobre o particular.
Entretanto, alguns autores, dentre eles, Emerson Gabardo e Celso Antônio Bandeira de Mello entendem que a figura do interesse público secundário é equivocadamente entendida como sendo um legítimo interesse público, visto que, na verdade, o interesse secundário é apenas um interesse individual do Estado, conforme explica Emerson Gabardo:
Desse modo, é comum distinguir o interesse público (o verdadeiro e legítimo interesse público, do qual se está a tratar) sob a alcunha de “interesse público primário” e o interesse do Estado, ou da Administração Pública, enquanto “interesse secundário”. Há quem identifique o interesse estatal enquanto “interesse público secundário”, na perspectiva de que ambos seriam interesse público, com diferenças apenas quanto ao grau de preponderância. Essa noção, no entanto, é equivocada, pois tais interesses “não são interesses públicos, mas individuais do Estado” (2017, p. 267-318).
Logo, há pesada crítica acerca dessa distinção, visto que ao se afirmar que o Estado é detentor de interesse, mesmo que tal interesse seja secundário, implicitamente está se afirmando que o Estado possui o mesmo status de um indivíduo, isto é, de uma pessoa natural.
Ocorre que a pessoa jurídica de direito público é mera ficção jurídica, que tem por finalidade atender às demandas coletivas, conforme ensinou Savigny ao concluir que a pessoa
jurídica é uma criação artificial da lei para exercer direitos patrimoniais e facilitar a função de certas entidades (SAVIGNY, 1840). Assim, não há que se falar que o Estado possua interesses próprios, eis que seu único objetivo é garantir a consecução do interesse da coletividade.
Endossando esta crítica está Justen Filho ao afirmar que nem ao menos são interesses, na acepção jurídica do termo. “São meras conveniências circunstanciais, alheias ao Direito”, vez que “o Estado não possui interesses qualitativamente similares aos interesses dos particulares, pois não foi instituído para buscar satisfações similares às que norteiam a vida dos particulares” (JUSTEN FILHO, 1999, p. 115-135).
Nesse sentido, Emerson Gabardo afirma:
Assim, em uma rápida análise, o que parece prosperar é que, ao Estado, existem tão só “conveniências circunstanciais”, pois o mesmo sequer é dotado de interesse, pois sua função, sua finalidade, como se viu, é perseguir o interesse público (primário), que está em outra ordem de ideias (2017, p. 267-.318)
Dessa forma, superada a distinção entre interesse público primário e interesse público secundário, bem como considerando que o interesse secundário não é dotado da supremacia inerente ao interesse primário, urge a necessidade de análise do conteúdo jurídico que integra o conceito de interesse público.