As práticas assistencialistas e o paternalismo estatal, apesar de serem categorias da modernidade, já poderiam ser identificados, ontologicamente, em todo o período colonial, já que o fomento à dependência econômica e social fora constatado a partir do próprio exemplo da Metrópole em seu nítido propósito econômico.
Com espectro amplo e ruidoso porque muito distante de qualquer objetivo filantrópico, tais práticas ampliam a dependência de seu povo. Os donos das casas grandes, os coronéis, os oligarcas para se manterem em posição hierarquicamente superior impõem um sistema de favores, de dependência econômico-social, a uma grande rede que os fortalecem. São equações quase absolutas, uma vez que a não emancipação, impõe dependência, que para tal, faz surgir o assistencialismo e o paternalismo estatal.
No Brasil colonial o denominado sistema de mercê (economia do dom), e a ele ínsito o sistema da reciprocidade, foi o precursor do paternalismo estatal. O senhor de engenho era o provedor, era o garantidor, e o Monarca concedia pequenas benesses à população como forma de não só manter a dependência, mas como forma do poder estatal ser fortalecido. Tratava-se do embrião do que hoje se denomina paternalismo, ou de sua prática ontológica, guardadas as vicissitudes próprias de períodos históricos distintos. Lilia Schwarcz ilustra:
Fazia parte do “cabedal do senhor”, ainda, cuidar de todos aqueles que o rodeavam e suprir-lhes. Era desse modo que proprietários ampliavam seus deveres, mas também acumulavam direitos. Enrijecia-se, pois, uma sociedade marcada pela autoridade do senhor, que a exercia cobrando caro pelos “favores” feitos e assim naturalizava o seu domínio. Capital, autoridade, posse de escravizados, dedicação à política, liderança diante de vasta parentela, controle das populações livres e pobres, postos na Igreja e na administração pública, constituíram-se em metas fundamentais desse lustro de nobreza que encobria muita desigualdade e concentração de poderes (SCHWARCZ. 2019.p. 67)
E Malerba arremata:
Retomando a antiga tópica do lugar das ideias, a concepção paternalista de sociedade e de Estado, própria aos valores escravistas, apresenta um sólido argumento contra as teses que sustentam o liberalismo como doutrina vigente no Brasil imperial. As ideais revolucionárias inspiradas na filosofia da ilustração, fundamentadas na derrubada do absolutismo francês, cuja teoria do poder se expressa no jus-naturalismo, assenta-se nos seguintes traços principais: laicização do Estado e subordinação do príncipe às leis naturais- que são as leis da razão; primado da lei sobre o costume; relações impessoais entre o príncipe e o funcionário de onde nasce o Estado como estrutura burocrática, e entre o funcionário e o súdito; donde o Estado de direito; e, finalmente, como ensina Bobbio, uma concepção anti-paternalista do poder estatal, harmônica com os princípios do iluminismo,” definido como a era na qual o homem finalmente se tornou adulto, no Estado que tem como meta não fazer os súditos felizes, mas torná-los livres (MALERBA. 2017.p. 318).
O sistema se retroalimentava como se tudo girasse em torno de um círculo, um círculo vicioso, e não emancipatório. Dominantes e dominados interessava a poucos, que detinham poder e capital, fomentando práticas assistencialistas e paternalistas. Diante da expressiva demanda populacional, já que os serviços públicos eram ou ausentes, ou muito precários, poucos eram contemplados diante desse ambiente inóspito.
À medida que a aristocracia no período colonial brasileiro, de caráter puramente econômico, adotava as mesmas práticas da Coroa- assistencialismo/paternalismo, consideradas as dificuldades da administração à distância e a ausência de comunicação e tecnologia para a comunicação próprias da época, o poderio político dessa classe cresceu sobremaneira. Analisa Malerba:
Mas tirante as considerações sobre o poder da Coroa, que enquanto não fosse posto à prova não poderia ser realmente determinado, os donos de propriedades tinham de contra com o próprio poder, a cujo respeito poderiam estar mais certos. Ao avaliar suas forças individuais, os senhores poderiam apontar para muitos fatores em seu favor (o isolamento, os arsenais de que dispunham, etc.) mas, quanto a estender seu poder contra a Coroa, a arma mais importante com que podiam contar era o número de indivíduos que controlavam e podiam mandar a campo. E, nesse sentido, tinham carradas de razões para encarar a situação com o otimismo pois, como indiquei, a autoridade deles se estendia além das fronteiras imediatas e incluía vastos territórios. Fosse em virtude do terror, fosse em razão do patriarcalismo, fosse em resultado de uma combinação dos dois, a situação de dependência cobria grande percentagem da população rural e era, potencialmente, a mais séria ameaça à Coroa (MALERBA. 2017.p.139).
A visão de Freyre, citado por Malerba, de certa forma romantizada, acerca dessa importante fase e fenômeno político, deve ser registrada, inobstante o caráter real ser distinto da narrativa clássica:
Mas o grande formulador da onipresença do patriarcalismo na sociedade brasileira é sem dúvida Gilberto Freyre. Na primeira página do primeiro volume de sua clássica trilogia, que tem por subtítulo justamente Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil, Freyre lavrava sua tese tão fértil e duradoura no nosso pensamento social. A base, a agricultura; as condições, a estabilidade patriarcal da família, a regularidade do trabalho por meio da escravidão. A união do português com a mulher índia, incorporada assim à cultura econômica e social do invasor (...) formou-se na América portuguesa uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na composição (...) defendida menos pela ação oficial do que pelo braço e a espada do particular(...) A formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto em suas virtudes como nos seus defeitos, menos em termos de raça e religião do que em termos econômicos, de experiências, de cultura e organização da família, que foi a unidade colonizadora(...) Vivo e absorvente órgão da formação social brasileira, a família colonial reuniu, sobre a base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e econômicas. (MALERBA. 2017.p.303)
Assim se comportaram as classes dominantes política-publica (Monarca) e privada (senhores de engenho e clero): soberanos e súditos, numa relação vertical alimentada pelo assistencialismo e paternalismo para angariar dependência, apoio e, consequentemente, fortalecimento de Poderes.Importante frisar que
um Estado paternalista, porém, não é um pai que nega diretamente aquilo que o filho quer ou de que tem vontade. Ele usa a lei para criar a ilusão de que esse ou aquele direito é necessário ou devido, mas é impossível resolver problemas com a promessa de concessão de mais direitos máximos. Quando o pai fracassa em fazer a vontade do filho, recusa-se a atribuir responsabilidades individuais a questões individuais. O resultado é a decepção com o pai. Os direitos máximos concedidos pelos políticos parecem ser migalhas concedidas para que a sociedade não se revolte contra a classe política e a retire do poder pelo voto ou por algum tipo de revolta ou golpe de Estado. (GARSCHAGEN.2018. p.297)
Este trabalho faz parte de uma série de artigos sobre as origens históricas e sociológicas da corrupção no Brasil. Clique no currículo da autora para acessar os demais artigos.