O Conflito entre Interesses Públicos e Direitos Fundamentais

Por Lucas Varella Silva - 05/04/2024 as 21:28

A Constituição Federal de 1988 surgiu em um momento histórico de superação às arbitrariedades vigentes na ordem anterior, uma vez que o período antidemocrático que vigeu no Brasil durante o período de 1964 a 1985 “relegava os direitos fundamentais a um plano secundário e periférico” (ARAGÃO, 2008, p. 135) . Em razão disso, a Constituição visando superar o sombrio passado, tratou de assegurar imediatamente aqueles direitos considerados fundamentais ao ser humano, antes mesmo de normatizar a estrutura, os poderes e as competências do Estado. 

Assim, a Carta Cidadã de 1988 trouxe, em seu Título II, os Direitos e Garantias Fundamentais, subdividindo estes em cinco capítulos. Em apertada síntese, direitos e garantias fundamentais são o gênero da qual decorrem as seguintes espécies: Direitos individuais e coletivos; Direitos sociais; Direitos de nacionalidade; Direitos políticos e; Direitos relacionados à existência, organização e a participação em partidos políticos. 

Conforme explica Paulo Ricardo Schier, "é a partir dos direitos fundamentais (pois são os direitos vinculados à proteção do homem) que se deve compreender uma Constituição” (2011, p. 4), isso porque o constitucionalismo surgiu como tentativa de estabelecer limites ao exercício irrestrito de poder que marcava a era dos Estados Absolutistas. Logo, a Constituição tem por escopo proteger um núcleo de direitos fundamentais face às arbitrariedades dos donos do poder. Por isso, qualquer forma de regulação estatal não comprometida com a proteção dos direitos fundamentais, por óbvio não pode ser considerada uma Constituição. 

Por esta razão que Paulo Ricardo Schier ao citar Hans Peter Schneider assinala que “a lei fundamental pode ser considerada como a Constituição dos direitos fundamentais, e interpretada e desenvolvida sempre em função destes direitos fundamentais; e o Estado existe para servir aos indivíduos e o não o indivíduo para servir o Estado” (2011, p. 5). 

Com isso, podemos conceituar os direitos fundamentais como: um conjunto de princípios e regras constitucionais, cujo escopo principal é o respeito à dignidade da pessoa humana, protegendo o indivíduo dos arbítrios emanados pelo Estado e garantindo-lhes condições mínimas de vida e de desenvolvimento, a fim de respeitar o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à dignidade para o pleno desenvolvimento de sua personalidade. 

Como se sabe, a promoção e a proteção dos direitos fundamentais exigem omissões e ações estatais. Em sua atuação negativa ou omissiva, cita-se como exemplo a liberdade de expressão, na medida em que o Estado deve se policiar para que não a restrinja ou a submeta a condições desproporcionais. A omissão, nesse caso, será fundamental. Essa mesma liberdade, no entanto, poderá ser mitigada, a fim de que a dignidade da pessoa humana não reste violada, quando, por exemplo, o direito à privacidade e à intimidade é atacado.  

Portanto, verifica-se que é plenamente possível a colisão entre os direitos fundamentais. Em razão disso, será exigido um conjunto de estruturas estatais que irão emitir um juízo com base na técnica da ponderação de valores e no princípio da proporcionalidade para dirimir o embate entre os direitos fundamentais.

Isto porque já é consenso na doutrina e na jurisprudência brasileira que, apesar da extrema relevância que os direitos fundamentais desempenham nos ordenamentos jurídicos que se pautam pela democracia, tais direitos fundamentais não são absolutos, exigindo-se, a depender do caso concreto, uma ponderação constitucional de interesses feita pelo Poder Judiciário e também pela Administração Pública, com vistas a solucionar o conflito entre princípios constitucionais que não foram previamente solucionados pelo legislador. 

O ponto é amplamente conhecido e debatido pela doutrina e jurisprudência pátria e não há necessidade de discorrer sobre ele, contudo no caso do embate entre direito fundamental e interesse público, qual deve prevalecer? 

Inicialmente, faz-se necessário enfatizar que, na maioria das vezes, não existe colisão entre direito fundamental e interesse público. Pelo contrário, o que existe é uma convergência entre estes e aqueles, pois é incontroverso que a garantia dos direitos fundamentais favorece o bem estar coletivo até porque “as sociedades que primam pelo respeito aos direitos dos seus membros são, de regra, muito mais estáveis, seguras, harmônicas e prósperas do que aquelas em que tais direitos são sistematicamente violados” (ARAGÃO, 2008, p. 119). O exemplo a seguir é cristalino para identificar esta convergência:

Toma-se  como exemplo um caso em que a Administração quisesse proibir a realização de uma manifestação no centro de uma metrópole, sob o argumento de que ela comprometeria gravemente o trânsito de vias importantes, invocando, para tal fim, a supremacia do interesse público sobre o particular. Talvez, a maioria das pessoas daquela comunidade até apoiasse a medida, por não se identificar politicamente com os objetivos da manifestação, e sentir-se prejudicada por ela nos seus interesses mais imediatos. Mas, decerto, a leitura mais adequada do interesse público seria aquela que prestigiasse em primeiro lugar não as conveniências do trânsito de veículos, mas sim a relevância do exercício da liberdade de reunião para o bom funcionamento de uma sociedade democrática. Portanto, aqui, a rigor, não existia conflito, mas convergência entre os interesses públicos e os direitos fundamentais (2008, p. 119).

Todavia, apesar de frequente a convergência entre os direitos fundamentais e o interesse público, há casos em que de fato o interesse coletivo entra em rota de colisão com os direitos fundamentais e, certamente, não é com base em soluções simplistas - que se fundamentam na supremacia do interesse público sobre o privado em abstrato - que se devem restringir os direitos fundamentais. 

Em verdade, existem casos em que os direitos fundamentais frente aos interesses públicos são restringidos e tais casos estão expressamente previstos na própria Constituição Federal de 1988. O exemplo mais nítido é aquele que autoriza o Poder Público, visando promover algum interesse público ou necessidade social, desapropriar um bem particular, mediante o pagamento de prévia e justa indenização. Assim, o próprio legislador constituinte antecipou-se e definiu a hipótese de restrição a este direito fundamental - a propriedade. 

Há casos, também, em que o constituinte atribuiu ao legislador infraconstitucional a missão de restringir determinados direitos fundamentais para assegurar interesses coletivos. O caso mais emblemático é o do direito à liberdade profissional, delineado no art. 5º, inciso XIII, da Carta Magna de 1988 que prevê ser “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício, ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. 

Verifica-se que a intenção do legislador é garantir que o exercício de determinadas profissões em razão da sua alta complexidade e importância para a sociedade seja submetido a regras de habilitação, visto que é de interesse público que um médico, por exemplo, se submeta aos parâmetros de formação acadêmica e cumpra integralmente as exigências legais para habilitar-se e exercer a profissão da medicina, sendo completamente inconcebível que qualquer pessoa exerça tal profissão pela sua própria conveniência. 

Ademais, consoante ensina o Professor Emerson Moura, para restringir os direitos fundamentais é necessário cautela para não esvaziá-los por completo, eis que todo direito fundamental deve ter sempre preservado o seu núcleo essencial de forma que não há interesse público que fundamente a restrição deste núcleo. Nesse sentido,

tratando-se de um conflito entre direitos fundamentais e o interesse público tais autores postulam, em razão da sua centralidade no ordenamento jurídico, bem como, do dever de proteção pelos poderes públicos que devem abster-se de sua violação, uma precedência prima facie dos direitos fundamentais, com aplicação de peso inicial superior a estes, com ônus argumentativo maior para o interesse da coletividade sobrepuja-lo. Ademais, relembram que tratando-se de restrição de direitos fundamentais deve-se observar o “limite dos limites” que corresponde ao “núcleo essencial” do direito, de forma que no juízo de ponderação entre o interesse público e privado, não cabe a prevalência do interesse da coletividade quando isto importar em atingir o núcleo essencial do direito fundamental, o que resultará não em sua restrição, mas esvaziamento do seu conteúdo (.2014, p. 172)

Há ainda casos em que é possível restringir direitos fundamentais sem expressa autorização constitucional, muito embora isso possa causar certa estranheza, uma vez que os direitos fundamentais demandam amplo respeito do Estado, sob pena de este incorrer em atitudes antidemocráticas e inconstitucionais. 

Ocorre que ao constituinte não seria possível prever todos os arranjos e conflitos sociais que poderiam ocorrer nas sociedades cada vez mais complexas e plurais. Logo, a possibilidade de restrições não expressamente autorizadas decorre da própria Constituição, eis que é frequente a possibilidade de colisão de interesses ou direitos em casos concretos que não foram previamente previstos pelo legislador constituinte. Certo é que “a justificativa para a limitação ao direito fundamental deve ser a proteção de algum bem jurídico também dotado de envergadura constitucional - seja ele outro direito fundamental, seja algum interesse do Estado ou da coletividade” (ARAGÃO, 2008, p. 129).

Vale ressaltar que “a admissão de cláusulas muito gerais de restrição de direitos fundamentais - como a da supremacia do interesse público - implica também em violação aos princípios democráticos e da reserva legal” (2008, p. 130), uma vez que a excessiva discricionariedade conferida aos aplicadores do direito na análise conceitual do interesse público gera tamanha insegurança jurídica capaz de tornar impossível ao indivíduo determinar o que seria uma conduta válida ou inválida, visto que a supremacia do interesse público poderia limitar qualquer de suas escolhas individuais. 

Logo, ao se deparar com o embate de interesses, faz-se necessário um juízo de ponderação dos valores em jogo, eis que a fluidez do conceito de interesse público dá azo para a sua aplicação nas mais diversas instâncias da vida concreta e isso pode gerar graves injustiças. Tais injustiças poderiam ser sanadas com a análise do caso concreto à luz do princípio da proporcionalidade, porém, por desleixo, preferiu-se aplicar abstratamente a supremacia do interesse público, restringindo o interesse privado e, por fim, violando a Constituição. 

Com isso, ao se deparar com um aparente conflito de interesses, no qual habita de um lado o interesse público e de outro um direito fundamental, parte da doutrina entende que o uso da proporcionalidade nas situações em que se verifica a colisão entre direitos públicos e direitos fundamentais deve ser feito em detrimento da supremacia do interesse público. Os maiores entusiastas dessa posição são os autores Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm e Alexandre Santos de Aragão, eis que, em síntese, negam que o interesse público seja sempre superior ao interesse particular. Senão vejamos:

O reconhecimento da centralidade do sistema de direitos fundamentais instituído pela Constituição e a estrutura maleável dos princípios constitucionais inviabiliza a determinação a priori de uma regra de supremacia absoluta do coletivo sobre o individual. A fluidez conceitual inerente à noção de interesse público aliada à natural dificuldade em sopesar quando o atendimento do interesse público reside na própria preservação dos direitos fundamentais, e não na sua limitação em prol de algum interesse contraposto da coletividade, impõem ao legislador à Administração Pública o dever jurídico de ponderar os interesses em jogo, buscando a sua concretização até um grau máximo de otimização (BINENBOJM, 2005, p. 1-32).  

Esse juízo de ponderação não deve ser realizado somente pelo Poder Judiciário, mas também pela Administração Pública, pois nem sempre a Constituição ou a legislação ordinária esgotou as possíveis formas de conflito entre interesses públicos e privados. Assim, “caberá à Administração lançar mão da ponderação de todos os interesses e atores envolvidos na questão, buscando a sua máxima realização” (2005, p. 1-32).

Porém, faz-se necessário alertar que o agente público não contém liberdade absoluta para decidir por um ou por outro caminho. Ao ser provocado em um conflito de índole coletiva versus um interesse particular juridicamente assegurado, deve o agente público atingir a melhor solução, à luz das circunstâncias peculiares do caso concreto e dos valores constitucionais em jogo. Nesse sentido, considera-se a melhor solução aquela “solução ótima que realize ao máximo cada um dos interesses públicos em jogo” (2005, p. 1-32).

Outrossim, é o princípio da proporcionalidade quem irá instrumentalizar esse juízo de ponderação, visto que é a proporcionalidade quem guiará o agente público na resolução dos interesses em conflito. Logo, a proporcionalidade deve ser aplicada a partir de três aspectos, quais sejam: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Consoante ensina Binenbojm, tais aspectos devem ser compreendidos da seguinte maneira: 

Assim, na ponderação, a restrição imposta a cada interesse em jogo, num caso de conflito entre princípios constitucionais, só se justificará na medida em que: (a) mostrar-se apta a garantir a sobrevivência do interesse contraposto, (b) não houver solução menos gravosa, e (c) o benefício logrado com a restrição a um interesse compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico (2005, p. 1-32).

Colaciona-se uma parte do importante julgamento do Supremo Tribunal Federal de relatoria do Ministro Gilmar Mendes no Habeas Corpus 96.056/PE em que resta claro como a escorreita aplicação do princípio da proporcionalidade é essencial para o alcance da máxima otimização e racionalidade das decisões em que existem conflitos entre interesses públicos e direitos fundamentais, in verbis: 

Em síntese, a aplicação do princípio da proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais, de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Tal como já sustentei em estudo sobre a proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (...), há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto a produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, estabelece-se uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto).

Com isso, urge uma análise a partir da doutrina que critica a noção de supremacia que integra o conceito de interesse público, bem como aqueles que buscam fundamentar a manutenção da supremacia enquanto princípio central do Direito Administrativo.