No tocante ao interesse público (primário), Bandeira de Mello entende que este consiste na “dimensão pública dos interesses individuais” (MELLO, 2009, p. 65). Logo, ao se entender que interesse público é a comunhão de diversos interesses individuais, conclui-se que este é titularizado pela sociedade e não pelo Estado, visto que é formado a partir dos cidadãos (GABARDO, 2017, p. 29).
Ocorre que tal constatação, segundo Gabardo, "não dá maiores liames para a delimitação do que viria a ser, de fato, o conteúdo do mesmo” (GABARDO, 2017, p. 29). E continua o professor Gabardo ao afirmar que
De fato, também Celso Antônio Bandeira de Mello, ao encarar a questão, alude genericamente que o interesse público é qualificado pelo sistema normativo. Ou seja, “o seu conteúdo jurídico não pode ser encontrado em outro lugar senão no próprio direito positivo”, o que leva a conclusões singelas (embora de muita valia e clareza), como a de Lúcia Valle Figueiredo, de que interesse público é “aquilo que a lei assim quis”.
Em razão disso, denota-se que a titularidade do interesse público, seja do Estado ou da coletividade, pouco importa para aferir o seu conteúdo, bem como se verifica que seu conteúdo pode ser extraído do ordenamento jurídico.
Ao tentar aferir o seu conteúdo jurídico, Marçal Justen Filho assevera que o interesse público possui natureza técnica, ou seja, entende o autor que em decorrência da complexidade e onerosidade de algumas atividades, faz-se necessário a intervenção estatal para obter a concretização de determinados interesses públicos, tendo em vista que o particular, por si só, não possuía os meios necessários para tal concretização (GABARDO, 1999, p. 122).
Gabardo afirma que
Essa dimensão parte de um entendimento de que cabe aos próprios membros da sociedade civil, de modo apartado do aparato estatal, desenvolver seus afazeres, e apenas naquilo que não for possível a realização pelos particulares, há interesse que o Estado seja o mantenedor de tal atividade e, assim, o interesse passa a ser público. Como explicita Justen Filho, para a consubstanciação do interesse público, dentro de tal horizonte, seriam necessários dois elementos: a existência de interesses generalizados na realização de dada atividade e a insuficiência dos esforços individuais para sua satisfação. Assim, “qualificam-se essas teorias como técnicas porque a consistência do interesse público reside na mera impossibilidade de sua satisfação através da atividade individual isolada” (2017, p. 30).
Esta concepção técnica de interesse público trazida por Marçal Justen Filho é plenamente compatível com o princípio da subsidiariedade, segundo afirma Emerson Gabardo, pois tal concepção
brota a partir de realidades concretas ligadas ao desenvolvimento social e do setor privado (i), tecnológicas (ii) e até mesmo políticas (iii) bastante específicas, como se pode observar. Primeiramente, observa-se que, por exemplo, até meados do século XX, a riqueza privada era, na maioria dos países, insuficiente para produzir a satisfação dos interesses coletivos da população. Era imprescindível a intervenção estatal e a utilização dos recursos públicos como instrumento para tanto. Ou seja, essa lógica se impunha pelas necessidades que existiam e pela incapacidade de os particulares as atenderem (i). Ademais, somam-se a isso uma série de dificuldades de natureza técnica (ii) para a satisfação de determinado interesse. Nessas situações, os particulares, não apenas por falta de recursos financeiros e humanos, são restritos a prestar dada atividade, mas, sobretudo em decorrência de uma impossibilidade tecnológica para tal atendimento (GABARDO, 2017, p. 31).
Além disso, a ideia de que o interesse público possui natureza técnica é inata à própria noção de Estado intervencionista, pois neste a prestação do serviço público é feita diretamente pela Administração Pública, sendo por derradeiro concluir que para tal prestação ocorrer de forma satisfatória é necessário um Estado bem aparelhado, isto é, o Estado é detentor do monopólio que tem por objetivo a persecução do interesse público, conservando a titularidade e a execução de forma exclusiva na prestação dos mais variados serviços à coletividade.
Assim, o princípio da subsidiariedade do qual decorre a concepção técnica de interesse público se mantinha enquanto o setor privado não possuísse os meios necessários para prestar determinado serviço. Pelo critério técnico trazido pelo professor Justen Filho, o interesse público consistia na concretização pelo Estado daquelas necessidades que o indivíduo não era capaz de suprir sem a intervenção estatal. s
Ocorre que nas últimas décadas do século XX, propagou-se em todo mundo discursos que promoviam a falência do Estado de Bem-Estar Social, discursos esses influenciados pela conjuntura global após a Segunda Guerra Mundial, na qual os Estados Unidos foi o grande expoente a se observar, porquanto refletia um modelo econômico liberal, democrático e regulatório (MOREIRA NETO, 2005, p. 11).
Entendia-se que, em que pese o Estado fosse bem aparelhado, o mesmo pouco intervia de forma satisfatória na persecução do interesse público. Dessa forma, colocou-se em cheque a execução dos serviços públicos feitos diretamente pela atuação estatal, exigindo-se que ao invés do Estado executar propriamente algumas tarefas, fosse feita a transferência aos agentes econômicos privados de certas tarefas, passando o Estado de ator executor para ator regulador.
Logo, com a ascensão do Estado liberal, os particulares tornaram-se titulares dos meios econômicos e técnicos necessários à produção das mais diversas necessidades e, com isso, verificou-se que a prestação de tais necessidades pelo Estado era ineficiente. É o que Gabardo explica:
Os recursos econômicos privados passam a ser suficientes para os investimentos em infraestrutura necessários ao entendimento dos interesses coletivos, e a tecnologia que possui o setor privado não raro passa a ser mais eficiente e adequada do que a titularizada pelo Estado. Tome-se como exemplo o setor de telefonia fixa, que por longa data foi tido enquanto exemplo típico de monopólio natural e, com o avanço da tecnologia, pôde ser ofertado por diversas empresas, em regime de concorrência e de acordo com a lógica de mercado; logo o Direito veio a coroar tal conjuntura, dentro de uma lógica neoliberal, passando-a ao setor privado. Nesse mesmo contexto, o Estado, por sua vez, passa a ser visto como incapaz de bem atender ao aumento de demandas relativas à satisfação dos interesses coletivos (2017, p. 33).
Denota-se que o interesse público se traduz naquilo que o ordenamento jurídico lhe confere, eis que o serviço público de telefonia, outrora prestado diretamente pelo Estado e sendo uma decorrência do princípio da subsidiariedade, foi concedido ao setor privado, visto que o Estado não era capaz de atender eficientemente às demandas coletivas. Logo, “pelas lógicas da natureza técnica e do princípio da subsidiariedade tais interesses coletivos passariam, automaticamente, a ser perseguidos pela dita sociedade civil” (GABARDO, 2017. p. 33).
Em razão disso, poderia se entender que a persecução do interesse público é plenamente atendida pelo setor privado, eis que, em tese, os agentes particulares possuem meios mais eficientes para prestá-lo, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista técnico.
Todavia, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a concepção de interesse público deve ter como moldura a valorização da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, visto que a subsidiariedade sob a ótica da técnica de Marçal não contempla o plexo de interesses públicos que integram uma sociedade plural, isto porque, determinado interesse subsidiário para determinada classe pode ser um interesse imprescindível para outra classe. O atendimento às demandas de um Legislativo pluriclasse torna a subsidiariedade uma ideia sem nexo.
Assim, partindo-se da constatação de que “o princípio democrático é o critério hermenêutico de toda a Constituição”, o interesse público é verificado em outra ordem de ideias, bastante distinta daquela que atribui residualidade e subsidiariedade ao papel do Estado. Portanto, a solução técnica para satisfação dos interesses coletivos não é mais justificativa adequada para fundamentar o conceito de interesse público” (GABARDO, 2017, p. 35).
Ademais, nem todo interesse coletivo resulta em proveito econômico ao seu prestador, isto é, existem interesses públicos que não geram lucro e, por tal motivo, são ignorados pelos agentes privados.
A lógica da prestação de serviços que atendem ao interesse público pelo setor privado se colide com o seu principal objetivo: o lucro. Conforme ensina Gabardo, “o objetivo de cunho mercadológico (o lucro) não se harmonizará jamais com uma priorização dos valores fundamentais de um Estado democrático, sob pena de comprometer-se ontologicamente e ocasionar perda de produtividade” (2017, p. 36).
Ainda que a satisfação das necessidades coletivas prestadas pelo setor privado possa ser mais eficiente, seu objetivo se resume à aferição de lucro e isso implica na não prestação de serviços essenciais àqueles que não geram lucro aos particulares prestadores de necessidades coletivas. É o que Emerson Gabardo afirma ao expor que
Relegar o interesse público à lógica da técnica, aos particulares com condições de efetivá-lo (mesmo em setor não-lucrativo), implicaria o “enfraquecimento do Estado mediante o fortalecimento dos centros privados, onde a decisão decorre de fatores prioritariamente econômicos (o terceiro setor não foge a esta regra)”.Daí que, mesmo que os sujeitos privados tenham condições técnicas hábeis a uma eficiente satisfação do interesse público, depara-se sempre com um “problema de adequação”, que não consegue ser resolvido apenas pelo critério da eficiência. Afinal, somente o Estado possui legitimidade para a realização de um projeto de transformação social impositivo que busque a mediação dos conflitos sociais. Desse modo, os requisitos inerentes ao princípio da subsidiariedade não combinam com aqueles relativos ao princípio democrático. Portanto, “o conceito de interesse público não se constrói a partir da impossibilidade técnica de os particulares satisfazerem determinados interesses individuais, mas pela afirmação da impossibilidade ética de deixar de atendê-los”. A questão é ética, não técnica. Logo, não há sentido em falar em subsidiariedade, ao menos segundo os pressupostos da atual Constituição da República (2017, p. 37, 38).
Portanto, o conteúdo jurídico de interesse público está diretamente ligado à noção de dignidade da pessoa humana, não sendo o bastante defini-lo a partir de critérios técnicos decorrentes do princípio da subsidiariedade, mas sim por meio da interpretação conjunta dos ditames constitucionais, eis que interesse público possui o escopo de garantidor de direitos fundamentais.
Ou seja, o interesse público também reside naquilo que não gera lucro ao setor privado e em razão disso cabe ao Estado viabilizá-lo, mas não é a subsidiariedade que fundamenta a intervenção estatal, mas sim a ética imposta pela aplicação da Constituição Federal em garantir a toda coletividade a concretização de suas necessidades.
Para sedimentar esse entendimento, observa-se que “alguns autores como Daniel Wunder Hachem, Eneida Desiree Salgado, Juarez Freitas e Romeu Felipe Bacellar Filho, chegam a buscar fundamentação jurídica para o princípio da supremacia do interesse público no artigo 3º do texto constitucional.” (GABARDO, 2017, p. 41).
O fundamento do interesse público consiste no atendimento aos ditames constitucionais, na medida em que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Acrescenta-se, ainda, que o autor Romeu Felipe Bacellar Filho assimila o conteúdo analisado aos princípios constitucionais explícitos da Administração Pública no art. 37 da Constituição Federal (Legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência). Para o autor, o respeito às leis denota o respeito ao interesse público (2010, p. 95)
Nesse sentido assevera Gabardo
Assim, o interesse público está no ordenamento, e é de interesse público que este mesmo ordenamento seja estritamente seguido pelo Poder Público. Donde se conclui que a Administração pública, para bem servir o interesse público, deve “respeitar a legalidade formal, obedecendo fielmente às imposições legislativas que refletem a vontade do povo, manifesta através de seus representantes” (2017, p. 42)
Outrossim, Gabardo afirma que “se é verdade que os direitos fundamentais são necessários para o estabelecimento do conteúdo do interesse público, não é correto afirmar que são fundamento suficiente para defini-lo.” (2017, p. 40)
Para o autor
“o interesse público tenderá a identificar-se consigo mesmo, além de adquirir sua essência a partir de um duplo grau de fundamentação: dignidade (condição necessária ou grau satisfatório) e felicidade (condição satisfatória ou grau ótimo).”Ou seja, a essência do interesse público consistiria na garantia da dignidade apenas como um ponto de partida geral. O ideal de felicidade implicaria mais: a satisfação das necessidades sociais em grau ótimo, inclusive para além dos direitos fundamentais. (2017. p. 40)
Portanto, infere-se que o conteúdo jurídico do interesse público busca fundamentação diretamente do ordenamento jurídico, porém essa fundamentação deve ser sempre guiada pelos ditames constitucionais, principalmente no que tange a valorização da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, mas não somente nisso, como também na concretização da observância ao princípio da legalidade, pois é a partir deste que a vontade popular é concretizada, bem como satisfazendo as necessidades sociais, indo além do simples respeito aos direitos individuais, mas também buscando o máximo possível de bem-estar e felicidade do povo.
Com isso, conforme ensina Gabardo:
O conteúdo jurídico do conceito de interesse público não é encontrado pelo critério subjetivo de sua titularidade, ou seja, reporta-se sempre ao interesse público primário, que reside no ordenamento positivo e, portanto, encontra-se alocado a partir de um critério formal – conclusão esta que realoca seu conteúdo para o terreno da hermenêutica; O conteúdo jurídico do interesse público não é definido por critério de exclusão, subsidiariedade ou de residualidade. Independentemente da capacidade dos indivíduos perseguirem ou não dado interesse, ele será público se estiver em consonância com a ética constitucional e com os princípios que regem um Estado Social e Democrático de Direito; A natureza ética do interesse público se fundamenta apenas inicialmente, como ponto de partida, na dignidade da pessoa humana. O conteúdo do interesse público, portanto, não se restringe aos ditames inerentes aos direitos fundamentais, mas é compreendido a partir de todo o ordenamento jurídico estabelecido pela Constituição da República de 1988 – que impõe um modelo de Estado social ao Brasil pautado pelo objetivo geral da felicidade do povo – ou seja, o máximo possível de bem-estar; Os princípios constitucionais que norteiam a Administração Pública também compõem o conteúdo do interesse público, notadamente o princípio da legalidade (pois é a partir dele que se torna possível a explicitação da vontade democrática) (2017, p. 43).
Assim, é possível chegar à conclusão de que o conteúdo do interesse público é aferível a partir de uma interpretação conjunta de todo o ordenamento jurídico, com fulcro, primordialmente, na dignidade da pessoa humana, eis que a ética constitucional é a sua principal fonte. Então, o que fazer quando o interesse público entra em rota de colisão com um direito fundamental, já que o próprio interesse público tem em seu conteúdo a persecução dos direitos fundamentais? A tal, deve-se aprofundar estudos acerca, além da doutrina especializada, do entendimento jurisprudencial pátrio, em busca de respostas que sanem tal questão.