O Surgimento do Princípio do Interesse Público: A Ideia de Supremacia Sempre Existiu?

Por Lucas Varella Silva - 05/04/2024 as 21:34

A expressão “Interesse Público” é figura presente na literatura do direito administrativo pátrio. Desde os primórdios desta ciência, a expressão vem sendo empregada pelos estudiosos do direito público. Travestida por meio de expressões sinônimas como: “bem comum”, “interesse coletivo”, “vontade geral”, o termo é frequentemente utilizado nos mais diferentes espectros da sociedade. 

Embora o termo interesse público - compreendendo suas expressões sinônimas - possa ser encontrado durante toda a literatura administrativa brasileira, sua noção contemporânea é recente. Conforme afirma Emerson Gabardo:

“A noção de interesse público adquiriu centralidade há pouco tempo, não fazendo parte das reminiscências proto-históricas do Direito administrativo. Mário Masagão atribui a Waline e a Marcelo Caetano esta nova construção que chama de “moderna” e que é fulcrada no interesse público como critério de definição do objeto do Direito administrativo.” (GABARDO, 2017, p. 95-139)

Nesse sentido, Eunice Ferreira Nequete afirma que: “A expressão ‘supremacia do interesse público’ parece ter sido cunhada, no Direito Administrativo Brasileiro, por Celso Antônio Bandeira de Mello, em 1983” (NEQUETE, 2005, p. 182). E segue: 

Como tivemos ocasião de referir no Capítulo II do presente trabalho, na doutrina pátria não houve qualquer enunciado expresso de tal princípio até a obra de Celso Antônio Bandeira de Mello. Este, a seu turno, e no Brasil, só parece ter encontrado terreno adequado sobre o qual desenvolver sua teoria em autores tais como Themístocles Brandão Cavalcanti, ou como Caio Tácito, que referiria à supremacia dos interesses da coletividade, especialmente em sua defesa do poder de polícia, e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, que propugnava pela supremacia do Estado para a realização de seus fins como critério fundante do Direito Administrativo e pela subordinação e sacrifício dos direitos dos particulares ao interesse coletivo, ante o direito de supremacia do Estado (p. 183, 184).

Assim, o princípio do interesse público desenvolve-se na conjuntura de um Estado Social, visto que neste modelo estatal é imprescindível a atuação positiva do Estado, ocorrendo, portanto, a interferência na atividade econômica do país, visando à regulação do setor privado, não apenas fixando as regras do mercado, mas atuando de outras formas com vistas a alcançar objetivos que vão desde o primeiro estímulo ao crescimento da economia até à redução de desigualdades profundas causadas pelo liberalismo. 

Recorrendo às lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, nota-se que:

em sua face inicial, o interesse público a ser protegido pelo direito administrativo era aquele de feição utilitarista, inspirado nas doutrinas contratualistas liberais do século XVIII e reforçadas pelas doutrinas de economistas como Adam Smith e Stuart Mill. O direito administrativo tinha que servir à finalidade de proteger as liberdades individuais como instrumento de tutela do bem-estar geral. Com o Estado Social, o interesse público a ser alcançado pelo direito administrativo humaniza-se na medida em que passa a preocupar-se não só com os bens materiais que a liberdade de iniciativa almeja, mas com valores considerados essenciais à existência digna; quer se liberdade com dignidade, o que existe maior intervenção do Estado para diminuir as desigualdades sociais e levar toda a coletividade o bem-estar social. O interesse público, considerado sob o aspecto jurídico, reveste-se de um aspecto ideológico e passa a confundir-se com a ideia de bem comum (DI PIETRO, 2010, p. 93-34).

Com isso, depreende-se que pelo primado do interesse público sob uma ótica social, inúmeras transformações ocorreram na atuação estatal até então vigente, passando este a figurar como verdadeiro ator nas relações sociais, uma vez que se ampliaram suas atividades, a fim de atender as necessidades coletivas, com a consequente ampliação do próprio conceito de serviço público.

À medida que o Estado se desenvolvesse, seus indivíduos o demandavam cada vez mais atuações, sendo certo que não cabia mais ao Estado uma atuação puramente omissiva para assegurar as liberdades individuais, pelo contrário, exigia-se do Estado uma atuação positiva, prestando outros serviços além daqueles típicos de um Estado liberal (segurança, justiça e polícia). 

Ocorre que com o novo Estado Social prestador de serviços, a liberdade individual foi sendo mitigada para assegurar o bem-estar coletivo. Isto é, a supremacia do interesse público, sob a égide de um Estado intervencionista, passou a ser a pedra de toque que legitimava os mais diversos atos da administração na persecução do bem-estar social. 

Ademais, o Estado se via impossibilitado de assegurar às complexas demandas sociais, seja pela falta de técnica especializada, seja pela falta de recursos financeiros. A falência do Estado social, portanto, colocou também em xeque a supremacia caracterizadora do interesse público. 

Em relação à ideia de supremacia que integra o interesse público quando no embate com interesses privados, nota-se que esta nem sempre esteve presente em seu conceito. A obra de Augusto Olympio Viveiros de Castro publicada em 1906 é um exemplo disso, senão vejamos:

em 1906, é publicado o Tratado de Sciencia da Administração e Direito Administrativo de Augusto Olympio Viveiros de Castro (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional), o qual ao tratar da distinção entre Direito Público e Direito Privado, invocando a concordância de Posada, afirma a insuficiência do critério do interesse público na caracterização do direito administrativo, eis que, segundo seu entendimento, haveria direito público também não relativo ao Estado. Ademais, nega, expressamente, a superioridade de um interesse público sobre outro privado, através da negação da superioridade do Estado, enquanto sujeito de uma relação jurídica, relativamente ao particular, ao afirmar que o Estado não é superior, com o interesse público, relativamente ao particular, com seu interesse privado grifei (NEQUETE, 2005, p. 1212).

Ao analisar a obra de Themístocles Brandão Cavalcanti que em 1936 publica sua obra Instituições de Direito Administrativo Brasileiro, verifica-se que o autor utilizava a supremacia do interesse público sobre o privado como um princípio que se extrai do tratamento que a lei dá à matéria. 

Cita-se como exemplo o tratamento que Themistocles dá à desapropriação, quando disserta sobre o direito de propriedade e seus limites, citando a obra de Pisanelli, de 1864, que fundaria o instituto na prevalência do interesse público sobre o privado (CAVALCANTI, 1946, p. 447, 448). Veja o que dizia Pisanelli em 1864:

A faculdade  de ocupar a propriedade privada para execução de obras destinadas a vantagens públicas, decorre de um princípio tão antigo quanto a própria sociedade: que o interesse público deve prevalecer sobre o privado. A comunhão social não seria possível sem a obrigação do indivíduo de sacrificar o seu interesse privado em benefício do bem comum. Como os deveres entre os homens são correlativos e a comunhão social é uma condição de aperfeiçoamento do indivíduo, assim, o direito individual termina onde começa o da sociedade (CAVALCANTI, 1946, p. 447, 448),.

No entanto, Themístocles ensina que "somente por utilidade ou necessidade pública é lícito ao Estado desapropriar a propriedade individual” (p. 450), sendo certo que tal utilidade ou necessidade pública decorreria da lei, dando tratamento ao tema com a análise das legislações brasileiras a respeito, inclusive com as hipóteses de utilidade pública e necessidade pública e concluindo:

A apreciação da necessidade pública constitui hoje faculdade discricionária da administração, e nada pode contrariar a imposição da necessidade pública, cujo conceito varia de acordo com as peculiaridades de cada caso, e a intervenção do Estado na ordem privada representa uma tendência contra a qual não se pode  insurgir doutrinas e interesses individuais (CAVALCANTI, 1946, p. 452, 453).

Por fim, recorre-se à doutrina de Caio Tácito que em 1952 publicou o artigo “O Poder de Polícia e seus limites”. Para o autor, após a revolução liberal, o Estado deveria atuar de forma mais incisiva para superar a desigualdade entre os indivíduos, decorrente do abuso do poder econômico. Nesse sentido, a ação repressiva estatal evoluía no sentido do crescente intervencionismo, aproximando-se do pensamento de Themístocles, no aspecto. Ao dissertar sobre o poder de polícia, o autor deixava clara a existência de uma supremacia do interesse público. Veja:

O poder de polícia é, em suma, o conjunto de atribuições concedidas à administração para disciplinar e restringir, em favor de interesse público adequado, direitos e liberdades individuais. Essa faculdade administrativa não violenta o princípio da legalidade porque é da própria essência constitucional das garantias do indivíduo a supremacia dos interesses da coletividade. Não há direito público subjetivo absoluto no Estado moderno. [nota 29 sugere ver a respeito Seabra Fagundes, Direito públicos subjetivos do indivíduo e sua proteção jurisdicional. Revista Forense, vol 96, p. 35] Todos se submetem, com maior ou menor intensidade à disciplina do interesse público, seja em sua formação ou em seu exercício. O poder de polícia é uma das faculdades discricionárias do Estado, visando à proteção da ordem, da paz e do bem-estar sociais (TÁCITO, 1952, p. 08). grifei 

Ademais, consoante explica Eunice Nequete, para Caio Tácito, a discricionariedade do poder de polícia “não se confunde com arbítrio irresponsável, porque a autodeterminação só se exerce no tocante a determinados elementos do ato administrativo, num sistema de liberdade vigiada" (NEQUETE, 2005, p. 149), e segue:

Portanto, em que pese ser da “própria essência constitucional das garantias do indivíduo a supremacia dos interêsses da coletividade”, por dependerem estes últimos para sua defesa da prática de atos administrativos, estarão submetidos à legalidade, devendo respeito ao fim expresso ou implícito na regra de competência, pressupondo autorização legal expressa ou implícita para o seu exercício e limitação igualmente quanto aos meios ou objeto, porque, como bem ponderaria Roger Bonnard “la fin ne justifie pas tout moyen” (p. 149) grifei

Logo, resta claro que Caio Tácito já fazia uma importante distinção entre interesse público e direito público, pois o direito público não deveria ser absoluto, mas, pelo contrário, deveria estar adstrito ao interesse público. Este interesse público, por sua vez, decorria daquilo que a lei dizia ser de interesse público, ou seja, entendia que a lei atribuía uma relação de superioridade do interesse público face ao interesse privado, bem como entendia que o interesse público era o limitador do arbítrio estatal, sendo uma decorrência da ordem constitucional vigente à época. Assim, a aplicação do princípio da supremacia do interesse público dependia daquilo que as leis diziam ser de interesse do público. 

Portanto, conclui-se que a noção de supremacia do interesse público sobre o privado era criticada desde o início do século, conforme demonstrado através da análise da obra de Augusto Olympio Viveiros de Castro, entretanto, tal supremacia sempre esteve presente no ordenamento jurídico brasileiro, visto que a lei historicamente conferiu prerrogativas à Administração para a persecução das necessidades públicas. 

Ocorre que a aplicação da supremacia do interesse público permite desvirtuações, principalmente porque o seu conceito é indeterminado, podendo legitimar, logo, o autoritarismo dos governantes sob a premissa da busca por um alegórico interesse coletivo.