Origens Históricas da Corrupção no Brasil

O estudo da corrupção no Brasil deve ser historicizado para compreensão mais abrangente do fenômeno e identificação de suas consequências.  Apresentar uma definição para a corrupção, e comprovar sua prática desde o Brasil Colonial, é o desafio do presente estudo.

No Antigo Regime não se vislumbrava corrupção diante da indistinção entre os conceitos de público e privado, o que legitimava as práticas hoje consideradas ilegítimas, em Estados absolutistas e centralizados.

 

Em vez de ir diretamente às fontes documentais, caminho aparentemente óbvio e acertado, tomei a resolução de explorar a fascinante literatura moral e política produzida na Península Ibérica, entre os séculos XVI e XVIII, em busca das formulações então correntes sobre o tema da corrupção. Graças a ela pude perceber não só que a corrupção existia como um conceito bem fundamentado na tradição político-moral da época, mas também que havia um enorme consenso sobre as suas consequências para a saúde das repúblicas. E, como a organização do livro reflete com fidelidade todo o percurso da investigação, é esse, em linhas gerais, o conteúdo do primeiro capítulo, “A corrupção na história: conceito e desafios metodológicos.” Ele é sobretudo uma espécie de acerto de contas com uma parcela ampla da historiografia sobre o Antigo Regime, que rechaça firmemente a possibilidade  de se falar em corrupção para aquele período, sob a alegação de que a indistinção entre público e privado tornava legítimas as práticas hoje tidas como espúrias e ilegais. Nesse capítulo, busco mostrar que, a despeito dessas particularidades, o conceito de corrupção não só circulava no imaginário político da Época Moderna, mas também recobria condutas identificadas ao mau governo das gentes, consideradas como desvio das suas formas ideais. Há, sem dúvida, uma distância entre o conceito atual de corrupção- e as práticas a ela associadas- e o conceito e as práticas que, entre os séculos XVI e XVIII, foram identificadas como responsáveis pela corrupção do corpo da República.(...). (ROMEIRO. 2016.p.14)

No Brasil, em período colonial (século XVI a fins do século XVIII), é possível identificar práticas de corrupção, mesmo considerada a latente cidadania, e a noção de bem público dissociado da concepção de servir à população. Imperioso, assim, delimitar o aspecto temporal em que a corrupção será analisada- Brasil Colônia-, quando iniciado, efetivamente, o processo civilizatório pela metrópole portuguesa. 

O Brasil pré-colonial não será desconsiderado (1500-1530), inobstante não ter sido de grande relevância para o presente estudo diante do pouco interesse da metrópole por terras brasileiras nesse período. Registre-se:

O período imediatamente posterior à chegada portuguesa ao Brasil em 1500 caracterizou-se pelo envio de expedições costeiras a mando da coroa, com o objetivo de explorar e conhecer os segredos do novo território incorporado ao império colonial luso. O reconhecimento sobre o território, no tangia às riquezas, o relevo, a população indígena e o clima, permitiu que Portugal dirigisse com maior segurança o seu projeto colonizador, delimitando com clareza as etapas a serem seguidas para a plena ocupação da região. Em um primeiro momento, os olhares da coroa portuguesa estiveram direcionados para o lucrativo comércio de especiarias das índias e exploração do litoral africano. Dessa forma, tornou-se inviável a Portugal transferir recursos, navios e homens para o território do Brasil sem uma efetiva compensação financeira. O Brasil representava, nesse momento, papagaios, frutos exóticos e tintura extraída da madeira do pau-brasil. Muito pouco, comparado aos lucros do comércio de especiarias. (...) Faltavam, porém, a Portugal recursos monetários e humanos para tamanho empreendimento: colonizar o Brasil e manter o lucrativo comércio com as índias. O descaso inicial português com o Brasil refletiu essa realidade. A ausência de outro e de outros metais preciosos, no litoral, também atuou como fator que desestimulou a colonização portuguesa do território. Seria preciso esperar cerca de trinta anos para que tivesse início o processo colonizador português no Brasil. As constantes ameaças de fundação de feitorias francesas no litoral da colônia, juntamente com a redução dos ganhos da coroa no comércio das índias, provocaram uma reviravolta na política lusitana no Brasil. A partir desse momento, explorar o território brasileiro passou a ser uma meta desejada. (AQUINO, FERNANDO, GILBERTO, HIRAN, 2008, p.99-100)   

A análise em si da forma pela qual a colonização brasileira foi implementada deverá ser destacada, eis que predominantes relações pessoais, casuísmos e o agravamento pela dificuldade da metrópole administrar sua colônia à distância, já que a transferência da família real só ocorreu em 1808 quando, de certa forma, muitas práticas e hábitos já estavam cristalizados na cultura brasileira. Tais hábitos e práticas reiteradas, ao se sedimentarem na cultura brasileira, merecerão análise especial quando relacionados às práticas corruptivas.

Associados a esses aspectos, presente se fazia a grande burocracia no Brasil Colonial, como sistema complexo e confuso à compreensão por uma população desigual social e economicamente. A burocracia condicionante ao exercício de direitos por uma população iletrada, nesse contexto, se apresentava como outro fator de fomento às tergiversações, ao suborno, às práticas corruptivas no Brasil colonial.

Outro fator relevante a ser destacado é a desigualdade econômica, que se deu na origem com a distribuição de grandes glebas de terras a poucos donatários. Tais donatários foram eleitos pela metrópole e, em momento posterior, as grandes glebas restaram desdobradas em sesmarias, sem qualquer controle efetivo de função social fundiária, em sua grande maioria, absolutamente improdutivas.

Importante destacar, também, o longo período de escravidão em território brasileiro que, ao certo, agravou a desigualdade social e econômica de sua população retardando o desenvolvimento cultural e emancipatório do seu povo.   

Adriana Romeiro, em obra dedicada ao exame da corrupção no Brasil colônia, alerta para os riscos do anacronismo, isto é, o cuidado necessário ao identificar o contexto em que as práticas sociais estão inseridas, levando-se em conta, principalmente, o período histórico, o regime e as organizações políticos vigentes. Tal preocupação é salutar para impedir equivocados paralelismos e errôneas conclusões. 

A ética se apresenta como pressuposto de exame necessário ao estudo da corrupção face à sua concepção valorativa e integrativa inerente ao exame de qualquer conduta humana. Assim, comportamentos éticos/antiéticos, e corruptos/não corruptos, podem assim ser categorizados em uma sociedade e, no mesmo período de tempo, não ser configurado em outra sociedade, face à concepção cultural de ética adotada.

Nessa ordem de ideias, o exame da ética será destacado para refletir o que deve ser concebido por comportamento corrupto, independentemente de sua tipificação penal. Há de ser estabelecer o conceito de corrupção e o liame para condutas antiéticas, mas não corruptas. 

Imprescindível ingressar no âmago da colonização portuguesa em território brasileiro para identificar o que, de certa forma, foi repetido, e até mesmo naturalizado pelos brasileiros até os dias atuais.

O empreendimento colonial no Brasil teve início numa fase histórica em que Portugal se encontrava, como salientou Alexandre Herculano, em estado de completa ruína econômica e decadência moral. Daí o fato de que entre os colonizadores, com raras exceções, sempre predominou o interesse privado sobre o bem público. A bem dizer, tal predomínio já se fazia sentir desde há muito na própria metrópole, onde o próprio soberano assumiu, como assinalado, o papel de Comandante-Mor do reino, fazendo com que o interesse particular da Coroa se sobrepusesse, em várias ocasiões, ao bem comum dos súditos (ROMEIRO. 2017.p.14).

O exame do patrimonialismo, e os estamentos serão relevantes para a distinção entre público e privado.  Da mesma forma, os limites do uso da máquina pública, e sua distinção com  à “casa”, nomenclatura utilizada pelo antropólogo Da Matta quanto à esfera privada do representante público, se afigura ponto relevante ao entendimento das práticas corruptivas desde o período colonial brasileiro.

Em última análise, examinar a origem da corrupção no Brasil revela aspectos inerentes à cultura e à identidade do seu povo com vistas a maior compreensão da sociedade brasileira contemporânea.

Este trabalho faz parte de uma série de artigos sobre as origens históricas e sociológicas da corrupção no Brasil. Clique no currículo da autora para acessar os demais artigos.