Os Atos de Corrupção no Brasil Colonial

O termo corrupção no período colonial brasileiro era desconhecido, mas o significado da expressão, consideradas as relações de poder e regime impostos à época, pode ser identificado através do termo “delinquir”, quando empregado ao mau governo, em especial, na obtenção de vantagens ilícitas e favoritismos. É necessário considerar todas as peculiaridades do Antigo Regime, aplicado ao Brasil colonial, diante do trato da coisa pública girar em torno da fidelidade ao monarca, distanciando-se da concepção moderna de que os bens são públicos e seus gestores são detentores transitórios da representação popular. Adriana Romeiro explica:

Ações que resultassem em corrupção política eram designadas por delitos, desordens, práticas delituosas ou ilícitas, maus procedimentos, violências, abusos. Assim, o que está em jogo nos textos políticos e jurídicos do Antigo Regime não é tanto a corrupção, e sim as ações que a originam. E, de fato, como aponta Michel Bertrand, aquelas expressões são relativamente abundantes na época, em vez de “corromper”, preferia-se o verbo “delinquir”1, a exemplo de um parecer do Conselho Ultramarino, datado de 1703, em que, desvanecidas as suspeitas de envolvimento do governador Francisco Naper de Lencastre no contrabando de madeira e breu na região platina, os conselheiros observaram que ele “de nenhuma maneira delinquiu”, acrescentando ainda que tais denúncias eram “gravíssimas”. As palavras “delinquir”, que Bluteau explica como “cometer um delito, uma falta,um pecado”, e “delinquente” eram mais comuns para designar ato de corromper e o indivíduo que corrompe, respectivamente (ROMEIRO. 2016. p. 26)

Delinquir, crimes de lesa-majestade, limpeza de mãos e devassas, foram termos amplamente utilizados no Brasil Colônia. Indicativos do que hoje se concebe por corrupção. Crime de Lesa-Majestade foi previsto nas Ordenações Filipinas, que correspondia a uma traição cometida contra a pessoa do Rei, um soberano, ou contra o erário. O temor poderia ser constatado através da punição imposta, eis que alguns condenados eram punidos com execução pública por meio de tortura, sem prejuízo do confisco de bens em favor da Coroa e condenação da família do condenado à infâmia.

Como registro histórico de extrema importância sociopolítica para analisar a origem, o período que sucedeu à pré-colonização, extraem-se os termos da Carta de Pero Vaz de Caminha, citado por Lilia Schwarcz: 

A corrupção se manifesta em qualquer época histórica, mas seu significado é amplo, pode variar muito, e não existe uma linha única de continuidade. Não obstante, a corrupção que hoje assola a política nacional, e tem indignado os brasileiros, faz parte, em maior ou menor escala do cotidiano do país desde os tempos do Brasil colônia. Por isso, estratagemas usados pelas elites coloniais lembram, de forma direta ou mais distante, as várias práticas ilícitas perpetradas por alguns de nossos governantes atuais. Desde os fins do século XVI, nas sátiras, sermões, poemas e ofícios, políticos do Brasil eram acusados de enriquecimento ilícito e de práticas como favorecimento, tráfico de influências, nepotismo e abuso de autoridade. Até mesmo na carta de Pero Vaz de Caminha, escreveu quando chegou ao território, há vestígios, se não de corrupção, ao menos de patrimonialismo. No final da missiva, considerada o primeiro documento escrito sobre o Brasil, o escrivão aproveita a oportunidade e roga ao rei português, d. Manuel, que dê uma mão para seu genro. Ele pede que o parente seja liberado do degredo em São Tomé por “furtos e extorsões á mão armada”. Corrupção, favorecimento ou patrimonialismo, o recado de Caminha oscila na sua definição, mas com certeza, indica o uso de vantagens privadas a partir da entrada privilegiada no espaço público (SCHARCZ. 2018. p.90-91).

O contrabando2 comumente é apontado na história brasileira como prática muito comum no Brasil Colônia, em todos os ciclos econômicos (pau-brasil, cana-de-açúcar, café, escravos, mineração). O controle da metrópole era prejudicado pela distância e quadro de pessoal que abrangesse o vasto território brasileiro. Entretanto, percebe-se o fomento da Metrópole a essa prática ilegal como forma de compensação dos baixos salários oferecidos a quem exercesse alguma atividade em nome da Coroa no Brasil. Citando Boxer, Adriana Romeiro:

Para Boxer, a administração- não só a Índia, mas todas as conquistas- pode ser descrita como corrupta e venal, contaminada pelo ambiente de lassidão moral, que teria caracterizado a colonização portuguesa em todos os seus domínios. A participação dos agentes régios em atividade econômicas- alvo constante das queixas dos habitantes, sobretudo as práticas de monopólio e açambarcamento- teria decorrido, segundo ele, dos baixos salários pagos pela Coroa- em suas palavras, “como aconteceu com outros impérios mais roços durante o Antigo Regime, a Coroa portuguesa nunca conseguiu pagar salários adequados a uma grande parte dos seus funcionários e servidores com resultados que foram referidos atrás(...)”.Assim, como forma de compensação, a Coroa os autorizou- e até mesmo estimulou- a lançar mão das possibilidades econômicas à disposição do universo colonial. Essa fórmula- que Laura de Mello e Souza chamou de spoil system- fundava-se num princípio de reciprocidade: se era consentido que os funcionários régios enriquecessem por meios lícitos e também ilícitos, esperava-se, em contrapartida, que pudessem desembolsar parte dos próprios recursos para fazer frente às necessidades da Coroa. Porque a nobreza, como aponta Domingos Ortiz, constituía “uma reserva de pessoal e de riqueza que os reis podiam utilizar caso fosse necessário, e um meio de suprir a insuficiência da estrutura burocrática.” (ROMEIRO 2018.p 35-36)

Não foram poucos os atos de corrupção constatados desde o período colonial brasileiro. Ao revés, as práticas corruptivas já eram esperadas e pairavam no imaginário popular como condutas, de certa forma, aceitáveis3. Saliente-se, no entanto, que o termo corrupção deve ser analisado ontologicamente para identificar sua real ocorrência desde o início da civilização, já que a colonização de exploração aqui desenvolvida fomentava tais práticas: a estrutura social desigual, na sua origem (distribuição de grandes glebas de terras para uma camada de privilegiados), a intensa burocracia imposta a uma sociedade de iletrados, a dependência econômica e social que a grande maioria de população brasileira se submetia, já que a Metrópole administrando à distância e, com muita dificuldade, fornecia serviços públicos essenciais aos brasileiros, de forma amplamente precária.

Diante da condição de dependência que a grande maioria da população colonial se apresentava- para obter segurança, abrigo, trabalho, saúde e mesmo alimento- a aceitação, e conivência, frente aos desmandos era quase inevitável. A denominada “troca de favores” era uma prática comum entre os brasileiros, e rapidamente incorporada à cultura nacional. Nessa linha, citando-se o pensamento de  Pietschamann:

 A contribuição teórica de Pietschmann reside no desdobramento desse último aspecto: para viabilizar seus planos de ascensão econômica e social, os funcionários tiveram de negociar com as elites locais, cedendo-lhes uma parte de suas atribuições, de acordo com o princípio do do ut des, isto é, troca de favores. As demandas das elites- nem sempre incorporadas à legislação e à política colonial- encontraram na burocracia um meio eficiente de negociação. O resultado é que a corrupção “fazia parte do sistema, pois cumpriu uma função política importante ao facilitar o equilíbrio de interesses entre a metrópole e as sociedades coloniais já formadas em princípios do século XVII”.  Tal quadro explicaria, segundo ele, não só a generalização da corrupção, mas também a sua ampla aceitação social- esta última comprovada pela existência de inúmeros recursos legais à disposição daqueles que quisessem denunciar os abusos. Esse delicado equilíbrio entre os interesses locais e os metropolitanos entraria em colapso com a implantação das reformas bourbônicas, a partir de Carlos III, destinadas a submeter a administração americana a um controle mais efetivo. Conclui então Pietschmann que “a corrupção na América teve caráter de sistema e será preciso explicá-la em termos de uma tensão mais ou menos permanente entre o e estado espanhol, a burocracia colonial e a sociedade colonial, como já intentou fazer van Klaveren.” (ROMEIRO.2016. p.73).

 

O detido exame dos fatos históricos de grande valor político girava em torno da ambiguidade do comportamento da população colonial, já que tinham repulsas a determinados abusos, que não conseguiam erradicar pelas queixas, e, de certa forma, eram relativamente silentes ao contrabando, muito provavelmente como forma de garantir “sombra” à intensa rede clientelar e assistencialista presente nessa fase, cuja ingerência da Metrópole era refratária. Adita Adriana Romeiro: 

E isso nos remete à segunda questão levantada pelas fontes: por que, afinal, se denunciava? É um tanto ingênuo supor que as acusações refletiriam necessariamente o comportamento dos governantes ultramarinos. Afinal, denúncias tender a ser, por sua natureza, exageradas ou politicamente orientadas- e, por essa razão, não podem ser tomadas de princípio como verdadeiras ou críveis.  A sua eficácia para uma investigação da cultura política na América portuguesa reside, antes, no fato de apontarem para a existência de noções sobre o certo e o errado, o justo e o iníquo, o aceitável e o inaceitável- isto é, a grelha da apreensão e avaliação do ato de governar- que conformavam o horizonte das normas morais, pondo em evidência, ao mesmo tempo, as margens de tolerância da sociedade colonial em relação a práticas como abuso de poder, desrespeito a direitos e privilégios, atropelo de jurisdições, contrabando, má administração dos fundos públicos, fraude fiscal, favorecimento, extorsão, suborno, entre outras. Na medida em que as fontes permitem captar aquilo que se reputava ser objeto de denúncia, elas expõem, em contraste, o sistema de valores morais socialmente aceitos, com os seus modelos de ação política, a natureza normativa de suas expectativas, que, diferentes formas, os denunciados haviam transgredido e frustrado (ROMEIRO, 2016. p.274).

A estrutura política se cristalizou na cultura brasileira por mais de 300 anos, considerando o longo período por que passou o Brasil, subserviente e dependente da sua Metrópole até 1808. Lilia Schwarz esclarece que

durante o Império brasileiro, o termo “corrupção” foi raramente utilizado o mesmo referido. Conceitos carregam suas próprias datações e a transposição no tempo traz consigo mudanças de significado. A nossa moderna noção de corrupção está vinculada a um tipo de Estado, cuja lógica advém da igualdade de direitos; modelo que não fazia parte das concepções de um governo que, a despeito de seu caráter mais ou menos esclarecido ou constitucional, nunca abriu mão do Poder Moderador; um quarto poder- como vimos, de exclusividade do monarca-, que anulava os demais. Além disso, por meio dos rituais, das gravuras oficiais e dos documentos, largamente disseminados naquele contexto, o sobreano ia sendo associado à imagem do monarca divino; aquele que não era julgado por seus atos entre os homens, mas outra espécie de justiça, a divina- de Deus. Dessa forma, é preciso um esforço de “tradução” do termo, uma vez que ele possui sentido diverso, apesar de muitas vezes paralelo. (SCHWARCZ. 2017. p.96)

Padre Antonio Vieira, um dos maiores críticos ao sistema imposto por Portugal, apresentava sua irresignação em diversos Sermões apontando os desmandos4 e a corrupção, ora de forma explícita, ora subliminarmente5. Comparato rememora:

 No Sermão da Visitação de Nossa Senhora, ferrenho opositor ao sistema aqui imposto, Padre Antônio Vieira: Ou, de maneira mais incisiva, ao saudar em julho de 1640 o Marquês de Montalvão, novo vice-rei do Brasil, que acabara de chegar à Bahia: “Perde-se o Brasil, senhor (digamo-lo em uma palavra) porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm cá buscar nossos bens.” (COMPARATO, 2015.p.46)

Mesmo em período anterior, no século XVI, a história brasileira revela a prática de graves atos de corrupção no Brasil colonial:

As primeiras acusações de enriquecimento ilícito remontam ainda ao século XVI, quando o governador-geral Mem de Sá foi denunciado por Gaspar de Barros Magalhães e Sebastião Álvares, ambos oficiais da Fazenda e também vereadores da Câmara de Salvador. Em 1562, eles enviaram ao rei um longo relatório sobre os diferentes aspectos da administração local, tecendo duras críticas a Mem de Sá. Ao final do documento, pediam ao monarca que mandassem para lá governador que fosse “homem fidalgo”, como fazia o governador-geral, tomando tudo para si, em grande prejuízo do povo, que “perde o proveito que ganhou às custas de seu sangue e seu trabalho, ganhando Não era justo, argumentavam, desfrutar do lucro daqueles negócios “quem não o ganhou, nem mereceu e que as mãos lavadas levem o suor de quem o ganhou”. Concluíam suplicando ao rei: “nos mande governador e ouvidor mais domésticos e misericordiosos e que seus intentos sejam a servir Deus e a Vossa Alteza e libertar consciências e não cobiças e resgates.” (ROMEIRO.2017.p.191)

No mesmo período histórico, no século XVII, “(...) Ainda em 1627, Frei Vicente do Salvador lamentava que “nenhum homem nesta terra é republico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular. (...)” (ROMEIRO,2016 p.11) 

Em fins do século XVIII, Conde da Cunha, então Vice-Rei do Brasil também demonstrava insatisfação, como nos apresenta Fabio Konder Comparato:

Em 1764, o Conde da Cunha, 9º Vice-Rei do Brasil, em carta a sua Majestade, assim se pronunciou: “ nesta terra ( ou seja, na Bahia, então sede do vice-reinado) e nas vizinhanças, rara é a casa que não tem privilégio; uma o tem da Santíssima trindade, outros da Bula da Cruzada, outros o de familiares do Santo Ofício; outros de Santo Antônio de Lisboa, e as maiores famílias , o (privilégio) de moedeiros, estes não só livram os seus filhos do serviço militar, como os seus criados caixeiros, feitores, roceiros, e os que estão adidos aos seus engenhos de açúcar; pelo que, se esta multidão de privilégios se não derrogar, ao menos enquanto não se completarem as tropas, não será possível haver soldados nelas, que não vierem de Portugal.”(COMPARATO, 2015.p.64)

Os sermões6, relatos, discursos e ontologias se repetiam: todos no mesmo sentido de que em terras brasileiras, desde o período colonial, as práticas corruptivas de diversas ordens eram muito comuns, quase naturalizadas perante a população. Agora no século XIX:

Na mesma época, o comerciante Jonhn Luccock, que para cá viera após a Abertura dos Portos, comentando o costume da aquisição por vizinhos, em hasta pública, de terras penhoradas pelo não pagamento de impostos, observa: Nessa transação, observam-se estreitamente as formalidades legais e tem-se a ilusão de que a propriedade foi adjudicada ao maior ofertante da hasta pública; mas na realidade, o favoritismo prevalece sobre a justiça e o direito, pois que não há ninguém bastante atrevido para aumentar o lance de uma pessoa de fortuna e influência(...). Na realidade, parece ser de regra que em todo o Brasil a Justiça seja comprada. Esse sentimento se acha por tal forma arraigado nos costumes e na maneira geral de pensar, que ninguém o considera errado; por outro lado, protestar contra prática de semelhante máxima pareceria não somente ridículo, como serviria apensas para atirar o queixoso em completa ruína. (COMPARATO. 2015.p.82-83)

Versos e Crônicas de época se sobressaem para identificar o quão arraigadas eram as práticas corruptivas no Brasil Colonial: 

O dito popular: “Quem furta pouco é ladrão/Quem furta muito é barão. Quem furta e esconde/Passa de barão a visconde.”, sinaliza a maneira como, no Brasil, era tudo uma “questão de preço”. Mas ganha ainda outro sentido nesse contexto específico, em que nobres barganham o seu lugar e posição. Há quem diga que a inspiração para o versinho veio de dois importantes personagens de época, que lograram obter o título de barão e, logo em seguida, o de visconde, graças a muita sonegação de impostos. Joaquim José de Azevedo, o Visconde do Rio Seco, e Francisco Bento Maria Targini, visconde de São Lourenço, são considerados pela historiografia dois dos principais representantes da corrupção na primeira metade do século XIX. (SCHWARCZ. 2019. p.96)

Fato não menos grave, também utilizado em larga escala no Brasil Colonial, era a venda de cargos públicos regulados e incentivados pela Coroa. Ora, se para prestar serviços públicos à coletividade a meritocracia era desconsiderada em prol do poderio econômico, o que esperar da qualidade do serviço prestado e de todas as questões antecedentes à sua obtenção?7 

Examinando a gênese dos grandes proprietários rurais, Comparato resume: 

Como se verá em várias passagens deste livro, nas relações entre os potentados econômicos e privados e a burocracia estatal, ou simplesmente no exercício da função pública, a corrupção tem sido um costume sempre vigente em nossa sociedade, desde o primeiro século da colonização. (COMPARATO. 2015.p.33)

Em tempos remotos já se falava em prática de corrupção para aquinhoar recursos indevidos o patrimônio do Imperador. Dera-se o nome de “bolsinho do imperador”, considerando que práticas dessa natureza já estavam enraizadas desde o período colonial. Elucida Lilia Schwarcz:

Não há como elencar todos os incidentes que poderiam, no contexto, ser vinculados á noção de corrupção do Estado. O exemplo mais emblemático da contaminação entre as esferas públicas e privadas ficou conhecido na época como o “Bolsinho do Imperador”. Tratava-se de grandes verbas do Tesouro postas à disposição do monarca, que podia movimentá-las sem prestar contas ao Estado. Sem dúvida, ele investia esses recursos, notadamente, na formação de artistas, cientistas e músicos, que tinham como meta criar e difundir uma cultura nacional, mas não havia controle algum sobre tais operações. (SCHWARCZ, p.99)                          

Incontáveis abusos e atos de corrupção8-“delinquência”- praticados no período colonial brasileiro aqui podem ser catalogados, a exemplo do Governador de Pernambuco Jerônimo de Mendonça Furtado, apelidado de  “Xumbergas”, que praticara diversas práticas irregulares no exercício da função pública, que, protegido por uma grande rede clientelar, restou absolvido. Registra Adriana Romeiro: 

Apesar dessas demonstrações de excessiva leniência, o rei já havia se preocupado com as ladroeiras do Xumbergas, em razão das notícias que chegavam à corte sobre o furto à Fazenda Real e a apropriação indevida de recursos da Coroa. Por isso, antes mesmo da notícia da deposição do governador, ele havia tomado a iniciativa de chamá-lo de volta ao Reino, mandando-lhe um sucessor. Pesaram na decisão régia principalmente as reclamações da Companhia Geral de Comércio do Brasil, que acusara Xumbergas de se intrometer abusivamente no monopólio do pau-brasil. D. Afonso VI o advertia para que cessasse o abuso, sob pena de lhe exigir a restituição dos prejuízos. “Não houve emenda.”, constatava desanimadamente o monarca. Por essa razão, incumbiu o sucessor despachado para Pernambuco de investigar as suspeitas, instruindo-as para que, caso fossem confirmadas, procedesse ao confisco dos seus bens e o remetesse preso para a Relação de Salvador. A deposição, porém, precipitou os acontecimentos, e o Xumbergas foi recambiado a Portugal antes mesmo da chegada do sucessor (ROMEIRO, 2016. p.212).

Para denunciar tais abusos, desde o Antigo regime, e também aplicado ao Brasil colonial, fora admitido o “direito de representação”, que consistia no direito de os súditos apresentarem “queixas” ao monarca. Diante do juízo de valor casuístico, determinava-se, ou não, a abertura de uma “devassa”, que era uma espécie de processo contra o denunciado para apurar a veracidade dos fatos descritos na “queixa”. Nessa linha, Romeiro:

É bem revelador da importância do direito de representação ao rei gozava na cultura política do Antigo Regime um parecer do Conselho Ultramarino, datado de 1645, sobre a ordem do governador-geral D. Antonio Teles da Silva, impedindo os vereadores de Salvador de escreverem ao rei. A proibição causou a mais profunda indignação nos conselheiros, pois se chocava com o princípio de que todos poderiam recorrer ao monarca como a um pai, para clamar por justiça. No parecer, bastante duro, eles defenderam que o sobreano deveria “mandar estranhar dito governador”, advertindo-o de que “este é um meio muito contra o seu serviço, no qual convém que não só a Câmara e ministros, senão ainda qualquer mínimo vassalo tenha liberdade para escrever a Vossa Majestade o que convier a seu serviço e bom governo de seus Reinos e Estados, e das injustiças que se lhe fizerem, porque por este meio terá Vossa Majestade notícia do bom ou mal que procedem seus vassalos e ministros (ROMEIRO.2016. p. 214 - 215): 

Este trabalho faz parte de uma série de artigos sobre as origens históricas e sociológicas da corrupção no Brasil. Clique no currículo da autora para acessar os demais artigos.

Referências:

1 Apesar do termo deliquir, na atualidade, ser sinônimo de prática criminosa, genericamente afeta à transgressão de normas e prática de delitos, no período colonial brasileiro era usado, também, para denotar desvios ou obtenção de vantagens indevidas em prejuízo do erário, em prejuízo à população, ao que hoje denominamos corrupção .Schwarcz  ressalta: “O certo é que corrupção, seja lá o nome, expressão ou forma que recebesse, ou que a prática amparasse, a despeito de não ser exclusividade brasileira, sempe esteve presente na história nacional” (SCHWARCZ .2019, p. 93).

2 “ Ambíguas eram as fronteiras entre o comércio legal e ilegal; ambígua também era a posição da Coroa, que, a despeito das reiteradas proibições, autorizava-o e até mesmo favorecia-o, desde que atendesse aos seus interesses econômicos e políticos, como sucedeu na Colônia do Sacramento. Ambígua ainda era a postura das autoridades locais , que oscilavam entre  repressão e o envolvimento ativo nos negócios clandestinos. ( ROMEIRO, 2018.p. 53-54)

3 Os tributos, que pesavam principalmente sobre a agricultura, eram objeto de reclamações das autoridades locais. A má administração e à corrupção juntou-se, ainda, a prodigalidade para com os recém-chegados. Essa prodigalidade criava ressentimentos entre os nascidos no Brasil e europeus, porque os beneficiados eram sempre estes últimos. Tal parcialidade em favor dos nascidos em Portugal não se devia apenas ao desejo de favorecê-los mas, também, ao temor de atribuir poder administrativo a elementos mais predispostos a contestar a ordem estabelecida. Eram sempre portugueses os designados para altos postos, tanto civis, como militares. Portanto, do ponto de vista da administração esboçava-se o conflito não só entre brasileiros e portugueses, mas, também, entre o poder local e o poder sediado no Rio de Janeiro (AQUINO, FERNANDO,GILBERTO, HIRAN  apud   LEITE, GLAGYARA L. p. 394).

4 No século XVII, o padre Antonio Vieira seria um crítico implacável das práticas de favorecimento: “A porta por onde legitimamente se entra ao ofício, é só o merecimento.(...) Uns entram pelo parentesco, outros pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação.” (ROMEIRO,2018. p 38)

5 O padre Antônio Vieira pintou com cores vivas esse quadro da ausência de vigilância metropolitana sobre a atuação dos altos administradores na colônia. No sermão, na ocasião em que o Estado do Grão-Pará e Maranhão se repartiu em dois governos, Vieira caracterizou a impotência do monarca em terras brasileiras, com o emprego da famosa metáfora do sol e da sombra:“A sombra, quando o sol está no zênite, é muito pequenina, e toda se vos mete debaixo dos pés; mas quando o sol está no oriente ou no caso, essa mesma sombra se estende tão imensamente, que mal cabe dentro dos horizontes. Assim nem mais , nem menos, os que pretendem e alcançam os governos ultramarinos. Lá onde o sol está no zênite, não só se metem estas sombras debaixo dos pés do príncipe, senão também dos de seus ministros. Mas quando chegam àquelas índias, onde nasce o sol, ou a estas, onde se põe, crescem tanto as mesmas sombras, que excedem muito a medida dos mesmos reis de que são imagens.”(COMPARATO, 2015.p.65-66)

6 Como o tesouro régio não podia pagar subsídios adequados aos altos funcionários para cá enviados, estes foram, algumas vezes de modo expresso, outras de modo tácito, autorizados a adquirir terras para lavrar, ou então a exercer o comércio em seu próprio nome ou de outrem; sem falar no fato de que os agentes públicos para cá enviados pela Coroa portuguesa em pouco tempo tornavam-se sócios ocultos dos grandes senhores rurais, ou com eles estabeleciam estreitas relações de parentesco, amizade e compadrio. Em carta a D.João IV, datada de 20 de maio de 1653, o Padre Antonio Vieira denunciou “a cobiça dos que governam (no Estado do Grão-Pará e Maranhão), muito dos quais costumam dizer que V.M. os manda cá para que se venham remediar e pagar seus serviços , e que eles não têm outro meio de o fazer senão este.” COMPARATO, Fábio Konder, 2015.p.65)

7 O fato é desde cedo a própria administração pública do reino manifestou seu caráter mercantil, admitindo-se a compra de ofícios públicos, embora sua venda pelos titulares fosse expressamente proibida (Ordenações Filipinas, Livro 2º, título XLVI). (COMPARATO, 2015.p.47)

8 Intromissões nos contratos régios, por parte dos agentes da administração eram consideradas delitos dos mais graves, pois implicavam prejuízos à Fazenda Real. E, como não poderia deixar de ser, tais condutas justificaram uma série de denúncias, uma vez que constituíam os negócios mais lucrativos do universo colonial-, e por isso, também os mais disputados. Para se engajar neles, os governadores lançaram mão dos mais variados artifícios, como a cobrança de propinas aos arrematantes, o favorecimento dos mais amigos, ou ainda o emprego de testas de ferro para a arrematação(...).”(ROMEIRO.2016. p.213):