Panorama Histórico do Direito Penal

A partir do livro “O Direito Penal como Disciplina Científica”, de Günther Jakobs, apresenta-se um panorama histórico do Direito Penal Alemão.

No livro “O Direito Penal como Disciplina Científica”, Günther Jakobs recorre a aspectos históricos para sedimentar um ponto apriorístico para o desenvolvimento da disciplina penal. Faz-se assim um apanhado de teorias que fizeram parte da disciplina penal alemã durante vários séculos e que serão analisadas abaixo.

Carpzov e o Papel das Jurisprudências

Já fora destacado, nesta resenha, que as três faculdades mais antigas formam seus estudantes para uma práxis, sempre com o escopo de elevar o conhecimento prático. No século XVII, a prática penal se mantém sem maiores influências das correntes modernas de pensamento. A obra principal, nesse período, é a “Practica Nova Imperialis Saxonica Rerum Criminalium” de Bento Carpzov (1595-1666), a referida obra foi editada muitas vezes entre os anos de 1635 e 1758. Carpzov desenvolve uma audaciosa doutrina penal, a qual é baseada nas jurisprudências prolatadas pelos Tribunais de Leipzing e nas jurisprudências italianas, essas tinham por base a “Consitutio Criminalis Carolina”, além de terem por base, também, o Direito Romano (Civil Law) e o Direito Saxão (Common Law).

Essa doutrina penal fora desenvolvida de forma dedutiva, que se consubstanciava na exposição e na ponderação das opiniões jurídicas presentes na época. Por causa de tal obra, Carpzov é reconhecido como o verdadeiro fundador de uma Ciência Penal Alemã de Direito Comum e como o jurista mais influente na prática e na ciência penal.

Dessarte, pode-se observar que Carpzov elabora um conteúdo harmônico de proposições dogmáticas jurídicas penais, esse conteúdo é conexo à práxis judicial. Essas compilações são legitimadas pelas autoridades do Tribunais que prolataram tais decisões.

A grande problemática desses estudos de Carpzov é o fato de só se considerar como legítimas as proposições que são adstritas às jurisprudências do Tribunais da época, mutatis mutandis, são refutadas todas as proposições que não são emanadas de alguma autoridade. O que se pode perceber é que nem sempre uma proposição emanada de um Tribunal ou de alguma outra autoridade será justa ou legítima per si, apesar de dar um grande passo evolutivo na disciplina penal, o trabalho de Carpzov mostra-se atinente a um positivismo excessivo.

 

Uma Nova Legitimação do Direito Penal - Feuerbach

À medida que surge uma nova maneira de se lidar com a disciplina penal, ou seja, quando se começa a ser elaborada uma nova legitimação, a era de Carpzov começa a entrar em declínio. Nessa nova ordem não é suficiente que se sistematizem as fontes jurídicas já preexistentes, mas devem ser consideradas quais fontes terão legitimidade para fazer parte da dogmática penal. Dessa forma, passa a ter papel central a razão e o entendimento em detrimento da autoridade na disciplina Penal. Pode-se perceber que as jurisprudências emanadas das autoridades, como havia prelecionado Bento Carpzov, não são as únicas que irão constituir o entendimento da disciplina penal nesse momento.

À luz da modernidade, o Direito Penal passa a ser elucidado como uma forma de garantir a liberdade. Um dos juristas dessa época – segunda metade do século XVIII- Feuerbach tinha uma concepção do Direito Penal como um instrumento fundado na razão da sociedade, a fim de garantir a liberdade dos cidadãos. Em decorrência disso, nessa época muito por influência das ideias , há uma transformação de toda a política criminal, pode-se perceber que com essa tutela da liberdade do cidadão, tem-se que o Direito Penal passa a fazer parte da estrutura normativa social, ou seja, o Direito Penal faz parte da constituição estatal da sociedade (aqui tem-se os primórdios de uma sistematização penal funcionalista).

Na obra Jakobs fala sobre uma crítica feita por  Feuerbach à obra de Carpzov:

“Feuerbach proclama en 1799, y rebelándose explícitamente contra la tiranía de Carpzov, que carecen de carácter científico todos los empeños que no se caractericen  por la formulación de conceptos determinados, así como de principios generales firmes que resulten de una reflexión clara y explícita”

É possível perceber que a crítica se baseia no argumento de que não haviam sido fornecidos conceitos (esses podem ser expressados como a extensão das definições de alguma teoria) determinados, bem como não foram estabelecidos princípios gerais que consubstanciassem uma clara e explícita reflexão sobre a disciplina penal. O que é fundamental contraditar em tal crítica é que a obra de Carpzov não é, necessariamente, indeterminada, no entanto por atender a uma heterogeneidade de fontes jurídicas, esses conceitos nem sempre são cristalinos, mas sim uma conformação entre jurisprudências alemãs e italianas, e compilamentos de leis romanas.

Além disso, conforme fala Jakobs: “(…) la perspectiva de Feuerbach no cabe hablar de la existencia de principios generales”. O que é necessário ter em mente é que Feuerbach tenta preconizar reflexões penais sob o lema da precisão e da criação de princípios gerais em lugar da arbitrariedade, porém ao que parece Feuerbach quer dizer razão social em lugar da autoridade.

Com a Revolução Francesa (1789), é cediço que o programa científico modifica-se de maneira drástica, os programas científicos tradicionais, como o caso do Direito Romano, não ficam mais em voga. Com isso, Feuerbach vem com a proposta de limitar as interferências da filosofia no Direito Penal e tenta trazer para a Ciência Penal conceitos que possuam validez geral. Uma crítica passível é que tenta desenvolver a disciplina penal dessa maneira pode levar a uma certa submissão a leis, além disso quem determina quais conceitos terão validade geral?

Feuerbach tenta elucidar essa formação de uma Ciência Penal com validade geral já em seu primeiro trabalho “Crítica del Derecho Natural” de 1796. Nessa obra, o o jurista elucida que o Direito deve separar posições meramente morais, não deve haver punição pelo fato ser apenas imoral. O Estado deveria conferir proteção aos direitos de cada cidadão, assim como o direito do próprio Estado, e apenas utilizar o jus puniendi, quando tais direitos fossem lesionados. Intenta-se, assim, encontrar um fundamento de Direito, que seja intrínseco ao sujeito e distinto de uma simples lei moral.

O Direito Penal, para Feuerbach, é a possibilidade de coação determinada pela razão, ou de certa forma, uma permissão de coação, por parte de uma razão social oriunda de uma lei moral (salienta-se que essa lei moral é diferente de uma lei divina, aqui não se tem apenas em mente um fato exclusivamente moral, mas há também um injusto penal regulada em tal lei).

Feuerbach, que é destacado como um dos fundadores da ciência penal moderna, ainda preconiza em sua reflexões o papel preventiva da pena. Antes do jurista, a pena só era enxergada em seu modelo retributivo, por exemplo, Kant falava que a pena deveria ser imposta ao criminoso simplesmente pelo fato de haver delinquido, haja vista que o homem jamais pode ser tratado como um mero instrumento para realizar as intenções de outra pessoa, esse pensamento kantiano é explicado por Jakobs:

“ (…) Kant tenía claro qué era lo que correspondía compensar simétricamente: el daño causado a la víctima – em este sentido se pronuncia respecto del asesinato, muerte com muerte, o más exactamente, muerte por muerte, sin considerar la desestabilización general de la prohibición de matar (...)”

Outro ponto de destaque de grande monta, o qual qualifica Feuerbach como um dos fundadores da ciência penal moderna, é o fato de ele ter elucidado, em suas reflexões, o papel preventivo da pena. Antes de Feuerbach, a pena tinha um papel meramente retributivo, por exemplo, Kant aduzia que a pena deveria ser imposta ao criminoso simplesmente pelo fato de haver delinquido, haja vista que o homem jamais pode ser tratado como um mero instrumento para realizar as intenções de outra pessoa. Kant, na sua acepção de pena, tinha por base o jus talionis. Conforme destaca Jakobs: “ (…) Kant tenía claro qué era lo que correspondía compensar simétricamente: el daño causado a la víctima – em este sentido se pronuncia respecto del asesinato, muerte com muerte, o más exactamente, muerte por muerte, sin considerar la desestabilización general de la prohibición de matar (...)”

Feuerbach, que é atinente à função preventiva da pena, preconiza uma teoria da coação psíquica: a pena deve ser imposta porque ocorreu uma transgressão, no entanto a pena deve causar um temor para que não mais se delinqua. Esse temor deve ser de uma grandeza que se suprima a vontade de realizar o fato criminoso.

O problema da prevenção geral negativa (teoria da pena seguida por Feuerbach), é que se estabelece (ou tenta se estabelecer) um fator inibitório perante a sociedade. No entanto, ao estabelecer tal inibição, algumas problemáticas podem ser trazidas à lumen: se, hipoteticamente, um criminoso achar que “os lucros auferidos pelo crime” compensam mais do que a pena, ele continuará a delinquir; o fato de se tratar a sociedade como um animal adestrado: se o delinquente é punido, sua pena deve servir de exemplo para os demais cidadãos, no entanto o simples fato de se impor o medo numa sociedade para evitar crimes é problemático, haja vista que pode se criar um Estado Policial; e a intensidade do motivo que se deseja obstaculizar no seio da sociedade não guarda uma correlação com o dano social.

O último motivo destacado acima é o que para Jakobs faz com que a  teoria de Feuerbach desmorone: “Por eso fracasa Feuerbach, porque atiende a la individualidad del delincuente y sus motivos en lugar de atender a la totalidad, al daño  social.”

O Conceito de Delito - Hegel e os Hegelianos

Antes de falar sobre o conceito do delito para Hegel, faz-se necessário entender que, em suas reflexões, ele destaca o papel da eticidade como força motriz de sua teoria. A eticidade pode ser classificada como uma relação entre subjetividade moral e a objetividade do direito, expressando-se assim em um movimento de liberdade (manifestação da substância). Em outras palavras, há uma interconexão entre querer e saber, que é manifestada por meio de uma autoconsciência, implicando em uma verdadeira efetividade. Tal operação considera o fato da produção da objetividade substancial ser consubstanciada no bem como ser ético.

Esse conceito de eticidade irá influenciar na concepção de delito hegeliana. Para Hegel, o delito como lesão do direito - enquanto direito - tem uma existência per si nula, isto é, não se vai oferecer uma base de orientação durável no tempo e, sendo assim, não tem aptidão para ser fundamento de uma sociedade real. O delito, então, deve ser visto com uma negação do direito, que deve ser cancelado pela pena.

A pena seria a restauração do direito, adotando-se a dialética triádica hegeliana, percebe-se que: delito (negação do direito) mais pena (cancelamento da negação) tem-se a reafirmação do direito. Jakobs ainda preleciona:

 “La pena es reconstitución del Derecho y com ello al mismo tiempo un reconocimiento de la racionalidad del delincuente, que mediante la pena no es eliminado como si fuera una fuente de peligros, sino honrado com el ser racional que es”.

 Tem-se, então, que a pena, ao fazer a reconstrução do direito, realiza, ao mesmo tempo, um reconhecimento da racionalidade do delinquente, o qual não é simplesmente eliminado, como se fosse uma fonte de perigos, mas é qualificado como ser racional.

Insta destacar que a medida da pena deve corresponder não à forma do fato típico, mas ao seu valor, ou mais exatamente ao seu desvalor. Vincula-se a medida da pena à periculosidade da ação penal para a sociedade, isto é, a pena vem retribuir ao delinquente o fato praticado, coadunando o quantum da negação do direito com o quantum da pena (negação da negação do direito).

Em suma, conforme o pensamento de Hegel, o Direito vem a ser a expressão de uma vontade racional (vontade geral), sendo uma organização racional, elucida-se uma liberação da necessidade. Sendo assim, a racionalidade e a liberdade são o sustentáculo do Direito para uma concepção hegeliana. O delito, entendido com a negação do Direito, é a manifestação de uma vontade irracional - vontade particular - a qual deve ser cancelada pela pena, essa tendo uma função meramente retributiva.

A Teoria da Pena em Köstlin - Escola Hegeliana

No modelo de Köstlin, tinha-se por base uma teoria penal absoluta que guiou por mais de meio século o saber científico da época. Conquanto tal teoria fosse absoluta, possuía uma determinação flexível sobre pena, fato que fez com houvesse uma grande subsunção ao pensamento iluminista da época, qual seja, pena com finalidade preventiva. Essa subsunção explica o fato de a teoria manter-se em voga por tanto tempo,sendo possível se manter em posição de destaque, por tanto tempo, graças à sua elasticidade.

Entre os juristas da escola hegeliana, que não eram meros replicadores dos pensamentos de Hegel, mas que, pelo contrário, procuravam manter um pensamento crítico para desenvolver o Direito Penal, estava Köstlin. Indubitavelmente, ele foi quem empreendeu de forma mais audaciosa a tarefa de incorporar a prevenção à teoria da pena.

Para Köstlin, se faz necessário considerar fins relativos da pena, então tais fins devem ser desenvolvidos, a partir de um conceito necessário. Ao constatar o desenvolvimento de tal conceito, Köstlin chega a um resultado diverso do de Hegel, também atribuindo um papel diferente para o Estado. Köstlin não preconiza que o Estado é a substância ética da qual os sujeitos participam de forma acidental, para ele a substância ética é estabelecida por seres livres e para seres livres, haja vista que o indivíduo não é só uma forma acidental da substância do Estado, mas um organismo livre, dessarte os sujeitos encontram no Estado seu próprio bem.

Sendo assim, para o jurista, o direito deve existir também em razão do homem, para seu bem, ou seja, o Direito é a condição do bem comum. Por isso, o delito não é somente uma lesão a um bem jurídico isolado, mas é também a lesão a um bem geral, já que todos podem se sentir inseguros com o delito. Portanto, o delito não pode ser enxergado como algo destacado de um todo, no entanto deve ser vislumbrado como um ato que ameaça a sociedade de forma holística, porquanto o mal erigido do delito em parte provém do indivíduo que comete o delito, mas também dos demais sujeitos que podem seguir o exemplo do delinquente, aqui pode-se constatar, na teoria de Köstlin, uma pena com prevenção geral negativa.

Ademais, para Köstlin, a pena não deve somente compensar o delito, ou seja, não deve ser algo meramente retributivo, mas deve fazer com que as normas jurídicas não caiam em descrédito perante a sociedade. Faz-se necessária, com a pena, a manutenção da credibilidade das normas; em outras palavras, a finalidade da pena é uma prevenção geral positiva. Junto a essa finalidade de prevenção geral, aparece também nas obras de Köstlin como finalidade da pena uma prevenção especial positiva: deve-se dar ao criminoso a oportunidade de corrigir-se, mediante a sua livre determinação.

ZAFFARONI, E. Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – volume 1- parte geral. Editora: Revista dos Tribunais, Porto Alegre 9ª edição, 2011 p.189“(…) sancionada em 1523 por Carlos V, a Constitutio Criminalis Carolina ou Ordenança de Justiça Penal (Peinliche Gerichsordnung). Embora a Carolina não pudesse ser imposta pelo Imperador aos senhores, em seus Estados, o certo é que praticamente foi a base do direito penal comum alemão, que de alguma forma, vigorou até o triunfo do movimento codificador”

JAKOBS, Günther. El Derecho penal como disciplina científica. Tradução de Alex Van Weezel. Editorial Civitas: Espanha, 200, p.38

JAKOBS, Günther. 2008, Op Cit p.39

Alguns doutrinadores contemporâneos, como Raul Zaffaroni, criticam essa ideia de direito de punir do Estado, para eles existiria uma potentia puniendi, ou seja, o Direito Penal deve ser empregado de forma mínima e quando todas as medidas para restabelecer o direito fracassaram.

JAKOBS, Günther. 2008, Op Cit p.48

JAKOBS, Günther. 2008, Op Cit p.49

JAKOBS, Günther. 2008, Op Cit p.50

 JAKOBS, Günther. 2008, Op Cit p.47.

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